Facto: um drone explodiu sobre o Kremlin às 2h27, na madrugada de quarta-feira, hora de Moscovo. Facto: às 2h43, 16 minutos depois, um segundo drone explodiu, vindo de outra direção. O primeiro causou um pequeno incêndio, o segundo não. Daqui para a frente, é difícil distinguir factos de opinião, especulação de teorias de conspiração. É certo que a Rússia acusou diretamente a Ucrânia pelo ataque e, mais do que isso, considerou tratar-se de uma tentativa de assassinato do Presidente Vladimir Putin. Em Helsínquia, Volodymyr Zelensky garantiu que Kiev nada teve a ver com o sucedido: “Não atacamos Putin, nem Moscovo”, disse o Presidente ucraniano durante uma visita à Finlândia.

Uma operação de bandeira falsa foi uma das primeiras hipóteses a ser levantada, mas não sem se questionar por que motivo a Federação Russa iria admitir ter sido alvo de um ataque com estes contornos, quando não apontou o dedo à Ucrânia em situações anteriores, como a da explosão da ponte da Crimeia.

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Os dois homens no telhado

Assim que duas pessoas foram detetadas na cúpula do Kremlin, as perguntas nas redes sociais começaram a surgir. Quem são e o que faziam aqueles dois homens no alto do edifício — que é a residência oficial de Putin — no momento em que um drone explode? Anton Gerashchenko, deputado, conselheiro do Ministério do Interior ucraniano e antigo número 2 na mesma pasta, foi um dos que questionou a situação. Resposta oficial não há, mas opiniões não faltam.

Uma delas é de que seriam atiradores, avisados de antemão — partindo do princípio que era uma operação de bandeira falsa — para garantir que o drone era abatido e explodia no momento certo, sem fazer grandes danos.

Outros ironizavam, imaginando membros das forças especiais da Ucrânia a conseguir subir ao topo daquele que devia ser o edifício mais bem guardado do país.

A melhor resposta é a de Mark Krutov, um dos mais conhecidos jornalistas de investigação da Rússia. “Havia dois drones que voaram de direções diferentes. O primeiro causou um incêndio, o segundo não. Verifiquem o relógio: o primeiro diz 2h27, o segundo, 2h43. O vídeo com as pessoas na cúpula é o do segundo drone (sem incêndio causado).” Ou seja, segundo a teoria de Krutov, que foi abraçada por outros, os dois homens teriam subido ao topo do Kremlin depois da primeira explosão para verificar o que tinha acontecido e foram surpreendidos pela chegada do segundo drone.

A qualidade dos vídeos mostra que vieram do Kremlin

Sergej Sumlenny, politólogo e escritor russo, sediado em Berlim, acredita que os vídeos são uma prova de que tudo não passou de uma operação de bandeira falsa. O especialista em questões da Europa de Leste e antigo diretor da organização política ecologista Heinrich-Böll-Stiftung, lembra que é o Kremlin quem controla o circuito fechado de televisão (CFTV).

“Vários vídeos de alta qualidade e a cores apareceram, de câmaras de CFTV. Todas as câmaras CFTV ao redor do Kremlin estão sob controle total do Kremlin. Ninguém pode mostrá-los sem permissão. O Kremlin quer que os vejamos”, argumenta no Twitter.

Além disso, Sumlenny aponta que o Kremlin confirmou o ataque em poucas horas. “Nunca fazem isso, preferem parecer estúpidos, não humilhados. Lembrem-se de todas as histórias sobre ‘o Moskva que se afundou por causa da tempestade’ e ‘foi um incêndio, não um ataque de míssil’. Agora é diferente”, escreve o russo.

Embora assuma que o sucedido até poderá não ser propaganda do Kremlin, se for, o objetivo é que “pensemos que foram ucranianos”, mesmo que em outros casos, os russos “tenham optado por mentiras descaradas apenas para não confirmar” os ataques.

De resto, frisa que os próprios vídeos podem ser falsos — o New York Times, entretanto, confirmou a sua veracidade. Sumlenny também não afasta a ideia de que seja uma jogada russa para desviar a atenção de outras notícias como a da identificação de barcos russos perto da explosão do oleoduto Nord Stream 2.

Demasiado humilhante para ser verdade

Outra hipótese levantada nas redes sociais, por diversos analistas e comentadores internacionais, passa por dizer, por exemplo, que o ataque pode ter sido perpetrado por opositores domésticos interessados em passar a ideia de que a defesa de Moscovo é demasiado frágil.

Outra, é o ataque poder ser usado por Putin para conseguir maior apoio da população para a guerra e até para avançar para uma mobilização geral.

Do lado ucraniano, os vários membros do Governo de Zelensky que falaram ao longo do dia veem nos acontecimentos de quarta-feira um prenúncio de morte: acreditam que a Federação Russa vai aumentar a violência dos ataques ao território ucraniano. 

“Percebo todas as teorias de bandeira falsa sobre o ataque ao Kremlin (e, dada a história de Moscovo, não ponho nada de parte), mas, honestamente, isto é muito humilhante. Quero dizer, um drone atingiu o Kremlin. Como é que pode ser essa a narrativa que queres vender como Rússia?” O argumento é  de Michael A. Horowitz, analista de segurança e geopolítica, que deixa uma pergunta no ar. “O que é que a defesa aérea estava a fazer?”

Gerashchenko, hábil em deixar perguntas sem resposta, foi um dos que avançou com a ideia de que os drones teriam sido postos no ar por guerrilheiros russos a partir da própria região de Moscovo. Além disso, à semelhança de Horowitz, questiona como um drone, enviado seja por quem for, pode ter chegado ao Kremlin.

“Como é que um drone conseguiu passar por toda a defesa aérea de Moscovo? Ah, e como é que o chefe da defesa aérea russa, Shoigu e Gerasimov estão a sentir-se hoje? A Rússia cancelará o desfile de 9 de maio? Ou eles vão esperar por um drone durante o evento?”, questionou o político ucraniano no Twitter.

A 9 de maio os russos celebram o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrota dos nazis. No ano passado, especulou-se muito sobre o que a Rússia faria nesse dia, temendo-se que houvesse uma ofensiva em força sobre a Ucrânia. Não aconteceu.

E se foi mesmo a Ucrânia?

Sean Bell, veterano britânico e analista militar, não fecha a porta a que tenha sido, de facto, a Ucrânia a levar a cabo o ataque com drones, embora sublinhe que nunca fizeram nada de tão audaz. E se militarmente considera o ataque insignificante, “simbolicamente, é absolutamente enorme”. Para o Air Marshall, comentador habitual da Sky News, o ataque levou a “dura realidade da guerra” até Moscovo e em vésperas da celebração do Dia da Vitória.

“Para Putin, conhecido por estar um pouco apreensivo com a sua própria segurança, isto demonstra claramente que a Ucrânia pode alcançá-lo e tocá-lo mesmo quando ele está num reduto do Kremlin”, defendeu o analista militar. Apesar disso, não acredita que tenha estado em causa uma tentativa de assassinato.

“Tudo isso parece a abertura da ofensiva de primavera ucraniana, antes de realmente partirem para o ataque — para enganar, para distrair as forças russas no início dessa campanha”, argumentou Sean Bell.

Já Mark Galeotti, especialista em assuntos de segurança russos, não crê que o alvo do ataque fosse o próprio Putin. “Ele raramente vai ao Kremlin, muito menos passa lá a noite, e não havia reuniões matinais agendadas ou algo parecido que pudesse fazer alguém supor que ele poderia estar no seu apartamento”, escreveu no Twitter, lembrando que o Presidente russo está muito bem protegido, mesmo que o Kremlin não seja “exatamente um bunker”.

Assumindo que pode ter sido um ataque ucraniano, Galeotti vê-o como uma demonstração de capacidade e uma declaração de intenções” e uma forma de dizer à Rússia que “Moscovo não está segura”.