Kozinka e Gora-Podol. As duas aldeias russas, perto da fronteira com a Ucrânia, foram ocupadas por tropas esta segunda-feira — ao mesmo tempo que foi iniciada uma ofensiva em direção à vila de Grayvoron. Os detalhes da ofensiva ainda não são claros, a não ser o facto de que oito pessoas terão ficado feridas e que as autoridades russas decretaram uma “operação de contra-terrorismo” para reagir aos ataques.

A meio da tarde, surgia a reivindicação. A Legião de Libertação Russa, uma milícia de cidadãos russos anti-Kremlin, disse-se responsável pelo ataque, que terá como objetivo a criação de uma zona-tampão perto da fronteira com a Ucrânia, para dificultar o acesso das tropas russas a território ucraniano. Não é a primeira vez que a Legião assume ações em território russo, como alguns ataques com drones. E, como das outras vezes, o governo de Kiev diz que não estava a par da ação militar, mas vê a atitude da Legião com bons olhos.

O que é a Legião de Libertação Russa e que papel tem nesta guerra?

A Legião entra assim de rompante na guerra da Ucrânia, mas o grupo paramilitar não surgiu agora. Tecnicamente, foi criada logo em março de 2022, menos de um mês depois do início da invasão em larga escala da Ucrânia. Segundo revelaram fontes ucranianas à Radio Free Europe, era inicialmente composta por soldados russos que desertaram pouco depois do início da ofensiva.

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A 5 de abril de 2022, o grupo apresenta-se publicamente. Três homens com passa-montanhas pretos falam numa conferência de imprensa, em Kiev, e dizem ser cidadãos russos que estão a lutar contra o regime de Vladimir Putin a partir da Ucrânia. O seu objetivo é o de contribuir para que “um dia a Rússia se torne num país livre”. Convidam os compatriotas a juntarem-se à sua causa e dizem que têm recebido centenas de candidaturas diárias de interessados que se querem juntar ao grupo.

Desde então, as operações do grupo têm sido mantidas em segredo. Mas alguns jornalistas estrangeiros conseguiram ao longo do último ano conhecer pessoalmente membros da Legião e traçar um retrato dos que se juntam a este grupo. São desertores, mas também russos que já viviam na Ucrânia ou que partiram para o país desde o início da ofensiva. “Viemos para cá para ajudar a Ucrânia a alcançar a retirada completa das forças russas do território ucraniano e para conseguir a desputinização da Rússia”, confessou um deles, com o nome de código Zaza, ao The New York Times.

Não é certo quantos soldados compõem a legião. A Radio Free Europe estima que podem ser quase quatro mil homens, já que o grupo terá dois batalhões (em média um batalhão pode ter mil soldados), estando a ser formados mais dois. Um dos seus membros mais destacados é Igor Volubuev — nada mais nada menos do que um antigo executivo do banco estatal russo Gazprombank.

Aquilo que o grupo divulga é que não é fácil qualquer russo juntar-se à milícia. É preciso apresentar uma candidatura e passar uma série de testes e avaliações, que incluem avaliação psicológica e um teste de polígrafo, segundo o Times. Isto porque, disse um dos membros ao jornal americano, terá havido tentativas de infiltração de espiões russos no grupo paramilitar.

Os soldados da Legião identificam-se por uma bandeira azul e branca, versão modificada da bandeira russa sem o vermelho — que o grupo diz representar o sangue derramado pela Rússia. Recorrem a criptomoedas para recolher donativos, de acordo com a revista Time. E comunicam frequentemente pelas redes sociais, nomeadamente o Telegram, onde anunciam as suas ações.

O secretismo explica-se em parte pelas consequências que estes russos podem enfrentar. Afinal, no seu país, o Supremo Tribunal russo reconheceu a Legião como uma organização terrorista. Os cidadãos que se juntem ao grupo podem enfrentar, por isso, penas de prisão de 20 anos.

Certo é que a oposição política na Rússia tem trabalhado os laços com a milícia. Ilya Ponomarev, ex-deputado russo no exílio, tem-se assumido como representante político do grupo. Esta segunda-feira, falou à Newsweek em nome da Legião, sublinhando uma vez mais o caráter anti-putinista do grupo.

Qual a ligação da Legião ao governo de Kiev?

As possíveis consequências para os russos que fazem parte da Legião não são, contudo, a única razão que explica o secretismo em torno desta unidade militar. Segundo o Times, o grupo está inserido na Legião Internacional da Ucrânia, o organismo-chapéu que reúne todos os voluntários internacionais que se juntaram às Forças Armadas ucranianas para combater e que inclui cidadãos de países como os Estados Unidos, Reino Unido, Bielorrússia, Geórgia e outros países.

A Ucrânia reconhece que este grupo existe e que, em certa medida, o coordena, mas tem tentado distanciar-se das ações da Legião de Libertação Russa.

Sim, o Corpo de Voluntários Russos e a Legião da Libertação Russa, que são compostas por cidadãos da Federação Russa, lançaram uma operação para libertar estes territórios da região de Belgorod”, confirmou um porta-voz dos serviços de informação ucranianos esta segunda-feira, a propósito da ação militar em território russo.

Mykhailo Podolyak, conselheiro de Volodymyr Zelensky, apressou-se a notar, contudo, que isso não liga diretamente o grupo ao Exército ucraniano: “A Ucrânia está a acompanhar os acontecimentos na região russa de Belgorod com interesse e a estudar a situação, mas não tem nada a ver com ela“, disse. “Como sabem, vendem-se tanques em qualquer loja militar russa e os grupos clandestinos de guerrilha são compostos por cidadãos russos.”

A análise no terreno, porém, mostra que a ligação da Legião ao comando de Kiev é mais sólida do que o governo ucraniano quer transmitir. Quando o The New York Times esteve com um dos batalhões do grupo, em fevereiro deste ano, não revelou a localização das tropas, mas confirmou que “várias centenas” destes homens estavam nos arredores de Bakhmut. Mais do que isso, deixou uma informação clara: são “geridos por oficiais ucranianos”.