A Ordem dos Médicos (OM) não aceita um conjuntos de alterações aos seus estatutos, propostas pelo Governo, e que, diz a OM, “são altamente prejudiciais para os doentes”. As alterações, que incidem sobre a formação médica ou sobre as vagas da formação especializada nos hospitais, “podem colocar a população em risco”, avisa Manuel Teixeira Veríssimo, presidente da Secção Regional do Centro da OM, em declarações ao Observador. Já o ex-bastonário Miguel Guimarães acusa o governo de querer “controlar a Ordem dos Médicos”.

A proposta dos novos estatutos da OM foi aprovada esta quinta-feira em Conselho de Ministros, juntamente com os estatutos de outras 11 Ordens profissionais, depois de um período de negociação entre o Executivo e aqueles organismos representativos de várias profissões. O Governo diz que as alterações pretendem “eliminar restrições de acesso às profissões e melhorar as condições de concorrência”. No entanto, a OM (que ainda não conhece a versão final dos estatutos que foi aprovada) considera que cinco das alterações propostas são “linhas vermelhas” e garante que “não vai abdicar de as reverter”, garante Manuel Teixeira Veríssimo.

Numa comunicação enviada a todos os médicos, a que o Observador teve acesso, a OM explica, através de um cartaz, quais as cinco alterações que não aceita, por considerar que as mesmas “alteram substancialmente as competências da OM”. Um dos pontos a que a Ordem se opõe pressupõe, na leitura dos médicos, que o Governo passará a ter a iniciativa de propor os programas de formação médica; outro, alega a Ordem, atribui ao Governo o poder de definir e rever os critérios de idoneidade formativa, bem como a respetiva capacidade formativa (ou seja, o número de vagas para formação dos médicos internos).

Miguel Guimarães, Bastonário da Ordem dos Médicos

O ex-bastonário dos Médicos, Miguel Guimarães, admite que uma das respostas à alteração dos estatutos pode ser a demissão de “médicos com cargos de direção

“A OM deixa de ter controlo sobre a qualidade do ensino. Se temos uma formação de qualidade hoje, corremos o risco de ela vir a piorar“, sublinha o presidente da Secção do Centro da OM. Atualmente, cabe à OM avaliar as idoneidades e capacidades formativas das instituições do SNS, sendo que os resultados são apresentados à Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) e ao Conselho Nacional do Internato Médico (ambos organismos do Ministério da Saúde – MS) que definem o mapa de vagas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Teixeira Veríssimo argumenta que, com estas alterações, o Governo quer “controlar o sistema, orientar as coisas no sentido do que lhe interessa, abrindo mais ou menos vagas” consoante a disponibilidade de médicos em certas especialidades e em certas regiões.

Ao Observador, o ex-bastonário Miguel Guimarães lembra que a “OM é o garante da qualidade da Medicina e da formação médica, nomeadamente regulando a profissão”, e sublinha que as alterações propostas pelo Governo “podem comprometer a qualidade da formação médica”. “O Ministério não pode querer abrir 10 ou 20 mil vagas de especialidade sem se preocupar com a qualidade“, diz.

Miguel Guimarães considera também que uma eventual deterioração da qualidade da formação pode ter impacto “no exercício da Medicina” e nos cuidados prestados aos utentes. “Portugal tem uma Medicina de elevada qualidade. Compete ao Governo, em vez de estar a mexer em coisas que funcionam bem, melhorar as condições de trabalho dos médicos”, realça o ex-dirigente da OM.

“O Governo quer controlar a Ordem dos Médicos”

Outra medida contida na proposta do Governo, e que a OM quer travar, é a que permite ao Ministério da Saúde intervir na criação, composição e competências dos colégios de especialidade da OM. “Neste momento, os colégios determinam o que é necessário para a formação. Deixarão de ter esse peso e perderão força”, antevê o responsável.

Outra alteração é a que dá à ACSS o poder de intervir em várias matérias, como as recusas de inscrição na OM, como órgão de recurso. Por último, a quinta “linha vermelha” diz respeito à oposição a que dirigentes de instituições de saúde possam fazer parte de órgãos da OM. “Até agora, apenas os dirigentes (presidentes de Conselhos de Administração) não poderiam pertencer. Nesta proposta, isso estende-se aos diferentes cargos intermédios (diretores de serviço, por exemplo). Vai criar muitas limitações à OM, afetar a disponibilidade dos médicos”, explica Manuel Teixeira Veríssimo.

Estas medidas “retiram grande parte do poder regulação à OM — ora, o principal objetivo da OM é regular os cuidados à população”, sublinha o presidente da Secção do Centro da OM.

Outra medida, que se estende a todas as Ordens Profissionais, e que tem gerado críticas, é a criação de um conselho de supervisão, com membros externos à OM e à profissão, e que, no caso da OM, vai funcionar como um órgão de recurso para dirimir conflitos entre médicos e a OM ou entre órgãos da OM. “O que está a ser proposto é inédito. O Governo quer controlar a Ordem dos Médicos”, critica o ex-bastonário Miguel Guimarães. Estes membros vão também, diz, ter assento nos conselhos disciplinares. “Como é que alguém que não é médico vai avaliar questões relacionadas com boas práticas médicas?”, questiona.

Legs of medic running with gurney along hospital corridor

As alterações na formação médica são uma das matérias que a Ordem dos Médicas contesta

“Estamos num momento em que quem está no Governo quer controlar politicamente as estruturas independentes. Isto não devia ser permitido pela Assembleia da República”, conclui.

E se o Governo não alterar a lei, respondendo às preocupações da OM, o que deveria ser feito? “Se o Governo não ceder, vai ter novidades dos médicos — novidades a sério. Se a Ordem dos Médicos deixar de colaborar com a saúde, a saúde pára e seria uma desgraça”, vaticina Miguel Guimarães, acrescendo que uma possibilidade é a demissão dos “médicos com cargos de direção”. “A falta de respeito do Governo pode vir a ter consequências devastadoras.” Por todo o país, estão a decorrer nos hospitais sessões de esclarecimento para médicos relativas às alterações dos estatutos que, sabe o Observador, têm sido muito participadas. “Esta é uma matéria que preocupa os médicos”, garante o ex-bastonário.

Sindicatos criticam alterações no internato e na relação Ordens-Sindicatos

A Federação Nacional dos Médicos diz que a proposta de lei do Governo, que altera os estatutos da OM, “é uma tentativa de ingerência política na autonomia técnico-científica da profissão médica”. “O Governo dispõe-se, numa assentada, a eliminar o papel da Ordem dos Médicos e, consequentemente, a existência da carreira médica”, acusa a FNAM.

Em comunicado, o sindicato liderado por Joana Bordalo e Sá critica uma outra mudança proposta pelo Governo, que diz ser o fim do Internato Médico, “substituído por ‘estágios’ para os médicos internos, que passariam a ser considerados ‘estagiários’. Aqui, os seus direitos laborais seriam postos em causa”. A FNAM avisa que o objetivo do Governo é “precarizar o trabalho médico, a começar pelos mais jovens”.

Já o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) critica a intenção do Governo de proibir os membros de sindicatos de pertenceram às estruturas de caráter consultivo da OM. “A proposta do Governo vai num sentido inadmissível e cegamente proibicionista”, diz o SIM. Ao Observador, o presidente do sindicato, Jorge Roque da Cunha, acusa o Executivo de ser “centralista e pouco sensível à sociedade que dele não depende”. Em comunicado, o SIM demonstra preocupação com aquilo que classifica como uma “destruição perspetivada dos garantes da independência técnica da Ordem dos Médicos”. Também a FNAM considera que esta proibição “cria entraves inaceitáveis na sua ação sindical e na prática médica e científica.”