A organização venezuelana Caleidoscópio Humano (CH) pediu esta segunda-feira mais ação do Estado para combater o trabalho infantil no país, um fenómeno que tem aumentado devido à crise, causa abandono escolar e que a sociedade tende a ver como normal.

“Desde há mais de dois anos estamos a documentar os casos de trabalho infantil, porque durante a pandemia [de Covid-19] o trabalho de rua diminuiu, mas, no entanto, vemos como, após a pandemia, a deserção escolar aumentou“, disse a diretora da organização não-governamental (ONG) à agência Lusa.

Gabriela Buada Blondell explicou que a organização está “a monitorizar” este fenómeno e verifica que “há cada vez mais crianças e adolescentes a trabalhar, sobretudo na rua”, alertando que é importante também compreender que há uma tendência à “normalização desse trabalho”.

“Estamos numa emergência humanitária complexa, numa crise de direitos, os salários são inferiores a cinco dólares [mensais, equivalente a 4,50 euros] e todos os membros da família têm de ir trabalhar. É um fenómeno que está a acontecer, a aprofundar, a agudizar, e que vemos nas ruas, na nossa vida quotidiana”, disse Gabriela Buada.

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A diretora da CH sublinhou que “é importante compreender que continua a migração forçada e que cada vez mais crianças e adolescentes são deixados ao cuidado dos avós, ou ficam sozinhos, e têm de abandonar a escola para poder trabalhar”.

“Isto está a acontecer, mas há uma espécie de normalização, de ir a um estabelecimento e ver uma criança a trabalhar, desde pequena, (…) isso tem a ver com a cultura patriarcal e machista, de que é bom que as crianças aprendam a trabalhar desde pequenas”, frisou.

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Por isso, alerta que, apesar desta tendência, o trabalho infantil “é uma violação dos direitos humanos” e que “as crianças deviam estar na escola, não a trabalhar”.

O apelo é para que não se normalize esta situação, para que se preste atenção, para que se exija do Estado mais políticas ajustadas, para que os salários, a emergência económica possa acalmar, apaziguar, para que haja menos crianças (nesta situação)”, disse.

Questionada sobre as estatísticas, explicou que de momento não têm números comparativos, que estão a realizar a monitorização através do Monitor Desca (de Direitos Económicos, Sociais, Culturais e Ambientais) em Caracas, Arágua, Anzoátegui, Mérida e Oriente.

“Para ter os dados, devemos ter algo com que os comparar, por isso estamos a compilar o que aconteceu depois da pandemia e este ano, para ter um relatório e números mais palpáveis, mas há, definitivamente, um aumento que está a ser visto através da monitorização”, explicou.

A diretora da CH explicou ainda que a falta de eletricidade e de serviços públicos tem afetado não apenas a saúde mental, mas também a física das crianças, influindo no trabalho infantil e que é importante começar a ouvir os mais novos.

Alertou ainda que na Venezuela existem casos de “prostituição infantil, de troca de comida por sexo”, documentados nos relatórios de 2020 e 2021 da ONU e da Missão de Determinação dos Factos.

“Na região do Arco Mineiro do Orinoco [sul do país], há casos de tráfico e exploração sexual de rapazes e raparigas adolescentes (…), mas há também um silêncio iminente, não só das autoridades, mas também dos vizinhos, das comunidades, por medo”, explicou.

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Segundo a diretora da CH, “do que não se fala não existe”, mas, alertou: “Não podemos continuar a silenciar as vozes das pessoas, destes casos, destes rostos, fingindo que nada está a acontecer e tapando-os com maquilhagem superficial”.

Há prostituição infantil, há tráfico e exploração [de pessoas], violações dos direitos humanos contra pessoas LGBTQ+ [lésbicas, gay, bissexuais, travestis e transsexuais], crimes de ódio, violações contra mulheres (…) e o Estado tem de tomar consciência disso, formar os seus funcionários, resgatar as campanhas de prevenção, que são inexistentes nos meios de comunicação social, e, além disso, atender os casos”, enfatizou.

Para Gabriela Buada, é primordial “judicializar” os casos, sem discriminação, “para que as vítimas possam confiar no acesso à justiça”.

Explicou ainda que as ONG venezuelanas e ativistas dos direitos humanos estão a ser “estigmatizados nos programas de Estado, perseguidos” e que no país estão a tentar impor leis que podem pôr em risco o trabalho destas organizações e a informação das vítimas que denunciam.

A Caleidoscópio Humano é composta por uma dezena de jornalistas, criativos e ativistas que documentam casos de violações dos direitos humanos para lhes dar visibilidade.