Ici au Portugal, sinto uma enorme necessidade, uma aflição diria, de confirmamos uns aos outros de que o país é bonito e maravilhoso. Parece que existe receio que alguém descubra que Portugal pode ser bonito e especial, sim, mas que outros países também o são ou podem ser. Nessa medida, ao contrário dos meus amigos e de toda a gente que oiço falar acerca disso, não acho o Alentejo especialmente bonito. Para mim, o Alentejo é très alentejano, o que não sei se é um elogio ou uma critique, talvez seja um pouco dos dois, mas sinto-o como se fosse uma maneira de dizer que só há um Alentejo e esse fica no Alentejo. Melhor do que ser-se bonito é ser-se único e especial. Serge Gainsbourg (aquele que foi marido de Jane Birkin) não era beau, ou era? Mas foi único e especial. Como o Alentejo é.

Explico-me melhor, pour éviter les confusions e que desatem a cancelar assinaturas, sei que em Portugal as gentes e as suas terras têm um rapport fortísismo. Digo-o desta maneira: por melhores que sejam, os restaurantes ou os petiscos típicos do Alentejo que haja em Lisbonne, Porto ou Funchal, perdem qualquer coisa por não estarmos no Alentejo. O Alentejo é tão único que só pode ser experimentado lá. Pour moi, ouvir cante ou comer açorda em Lisboa ou Coimbra não é igual a fazê-lo no próprio Alentejo.

Pensei nisto da necessidade de Alentejo verdadeiro nas coisas alentejanas num destes dias, quando demos por nós na pacata vila do Alandroal, ali perto de Vila Viçosa, a comer na Adega dos Ramalhos. Fomos em pleno agosto, para comer e meter cerca de 200 quilómetros entre nós e os peregrinos e os altares, quisemos escapar à confusão que chegou a Lisbonne com o Papa e a Jornada.

Vindos da capital, chegamos em menos de duas horas, atravessando Portugal quase em linha reta até Espanha, com poucos automóveis, paisagem pouco interessante e pouco variada. No carro, a conversa andou pelas possibilidade de Moedas chegar a primeiro-ministro se a Jornadas correrem bem até que alguns quilómetros antes da fronteira e antes que chegássemos a uma conclusão, saímos rumo ao Alandroal, já cheios de fome.

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À entrada da vila, encontrámos uma povoação portuguesa pacata, silenciosa, pintada de branco, rendida à desertificação, porque, como sabemos, o progresso neste país entornou tout le monde para junto do mar. Ou então, como era hora de almoço, as pessoas estavam em casa a comer, também há essa possibilidade a ter em conta.

Naquelas ruas estreitas do Alandroal não é complicado chegar à Adega dos Ramalhos, menos ainda perceber onde é porque tem um boneco grande cá fora, de um chef igual ao do filme Ratatouille. O chef está metido num terrace nem grande nem pequeno, com algumas mesas que pareciam reservadas, confirmando que a Adega é um sítio onde se vai, mesmo que implique fazer quilómetros.

Lá dentro estava fresco e ainda bem. Dentro da pequena sala, ao passar para a mesa que nos calhou em sorte, notei que umas portadas tipo salon dos Western que escondiam uma zona decorada com motivos taurinos, incluindo uma cabeça empalhada de um touro, uma visão estranha e inesperada para quem sofria com a fome, como eu.

Já sentados, pedi a carta para apressar as coisas, mas interromperam-me com brusquidão. Ali, disseram-me, pergunta-se primeiro o que há de bom naquele dia. Verdade seja dita, havia muita coisa. Cozido de grão, lagartos de porco preto, cabrito assado no forno, bacalhau, sobremesas várias e uma prometida incrível sopa de tomate com figos, um prato que comera uma vez em Espanha e decidi repetir. O que em Barcelos ou Loulé seria arriscado, aqui faz sentido, comprenez-vous maintenant?

Uma coisa imperativa destes passeios de comer e beber é poder regressar com uma história para contar. Prometeram-me uma surpresa e tive-a: uma salada de tomate com tomate com sabor a tomate. Insisto neste aspeto. Au risque de vous ennuyer, para quê Alentejo a fingir que é Alentejo e para quê tomate a fingir que é tomate, quando podemos estar no Alentejo a comer tomate que é tomate? Rico em frutose, com a acidez necessária e azeite límpido, foi das melhores partes da refeição.

A sopa chegará aos poucos, em parcelas e explicações. Virá primeiro pão de véspera que devemos colocar no prato vazio para que mais tarde absorva o caldo. De seguida, virão figos gelados para esmigalhar com o garfo dentro do prato da sopa, com o pão. Virá um ovo escalfado que juntamos para ter proteína e substância, até que chegará um caldo quente, feito com tomate dali, num tacho em forma de tomate. La mise en scène foi eficaz e a combinação resultou forte e agradável, sendo que o exotismo de comer figos frescos numa sopa quente ajuda, claro.

Duas ou três colheradas depois, concordamos entre nós que o tempero do caldo está longe de estar apurado (disse um de nós, baixinho, não fosse a empregada ouvir), mas a sensação foi ótima e sentimos mesmo o doce cheio de fragrância do figo a equilibrar o ácido potente do tomate. Um amigo com mais fome pediu lagartos de porco preto na grelha, que chegaram com batata frita verdadeira feita e cortada na casa. Talvez porque a grelha não estivesse quente o suficiente, vinham um pouco rosados por dentro e menos tostados por fora do que deveria ser. Como diziam os persas, a paciência é árvore de raiz amarga, mas seus frutos muito doces. Quem está na grelha precisa de meditar sobre estas palavras antigas e cheias de sagesse.

Quem come figos tem de falar de Luís Figo, outrora o grande jogador português, de figos secos, de Figo Maduro, um dos 44 locais onde podia ser o aeroporto, mas vou poupar-vos às nossas conversas, que voltaram a Carlos Moedas e à Jornada, passaram pela simpatia do Papa, até terem ido parar às nossas trivialidades e à contagem das pequenas nódoas de sopa de tomate que todos conseguimos fazer. Restabelecidos a gozar o sossego alentejano, bebemos um pouco de vinho branco fresco antes de uma sericaia com ameixa de Elvas nos consolar.

É óbvio desde que entrámos que a Adega aposta em cuisine traditionnelle, das entradas às sobremesas, da decoração à simpatia calma dos empregados e proprietários, num profissionalismo de quem sabe o lugar certo de cada uma das partes. Na cozinha já se usa o piloto automático, o que se sente no tempero. Descobriremos em breve que a conta é feita para lisboetas armados em parvos que se metem à estrada para visitar o Alentejo verdadeiro, no Alentejo e que a Adega é um pouco tourist trap, mas por que não haveria de ser? O que faria cada um de nós, no lugar dos simpáticos proprietários dos Ramalhos, se tivesse um restaurante de comida alentejana no Alentejo?
Tout est bien qui finit bien, a verdade é essa.

Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de ameijoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável.