Não chegou a ser a debandada que alguns comercializadores temiam, mas houve uma fuga expressiva de consumidores do mercado livre para a tarifa regulada do gás natural. Desde que esta medida entrou em vigor em outubro do ano passado, como mecanismo extraordinário para mitigar o aumento de dois dígitos na fatura do gás, que a tarifa regulada ganhou quase 183 mil clientes. Os dados são relativos a junho e refletem uma subida de 72% no número de consumidores, domésticos e pequenos negócios, que aproveitaram para regressar ao conforto da tarifa regulada, uma possibilidade que até setembro de 2022 estava vedada na lei.

Se as contas forem feitas ao ano, de junho a junho, o número de consumidores que está na tarifa praticamente duplicou, com um crescimento de 96,7%, o que é explicado pela transferência do mercado livre, mas também pela entrada de novos consumidores que escolheram este tipo de fornecimento. Já o mercado liberalizado perdeu em junho, face ao mesmo mês do ano passado, 15,5% do número de clientes. No final de junho havia 438,4 mil consumidores no regulado, sendo de 1,125 milhões os clientes no liberalizado.

Os dados disponíveis sobre as dinâmicas de ofertas e entradas e saídas no mercado do gás indicam que ainda se verifica um crescimento líquido no número de clientes da tarifa regulada, em grande medida à custa da perda de clientes do mercado livre que é abastecido pelas comercializadoras através de contratos individuais.

No período entre setembro de 2022 e junho de 2023, o número de contratos domésticos assegurados pelas empresas em regime comercial caiu mais de 176 mil para 1,125 milhões, e no último mês continuou a perder clientes (mais do que consumo) para o mercado regulado. Em junho houve 941 consumidores a trocarem a tarifa pelos contratos das empresas, enquanto na direção inversa foram 3.412.

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Os ritmos desta transferência foram mais elevados nos últimos meses do ano passado quando, nas contas divulgadas pelo Executivo, as poupanças resultantes da mudança para a tarifa regulada podiam chegar a 70% da fatura.

O regime excecional foi aprovado para durar um ano — até outubro —  e considerando que os preços internacionais do gás natural registaram um forte recuo face aos máximos do ano e negoceiam a valores normais para esta época do ano, faria sentido que terminasse. Questionado pelo Observador, sobre um eventual prolongamento deste modelo, o Ministério do Ambiente e Ação Climática remeteu a decisão para uma avaliação que está a ser levada a cabo pela ADENE (agência para a energia).

“O regresso dos clientes finais com consumos anuais inferiores ou iguais a 10.000 m3 ao regime de tarifas reguladas de venda de gás natural está previsto no Decreto-Lei n.º 57-B/2022, de 6 de setembro. O artigo 4.º deste DL prevê que esta medida está sujeita a uma reavaliação, consubstanciada por relatório a ser elaborado pela ADENE, ouvida a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, e entregue ao membro do Governo responsável pela área da energia no prazo de 12 meses a contar da data da sua entrada em vigor, com o objetivo de avaliar a evolução do mercado do gás natural e a segurança do abastecimento”.

A impossibilidade de regressar à tarifa regulada do gás natural é uma herança da liberalização total do mercado que foi uma das medidas que a troika fez aplicar em Portugal durante o período do ajustamento e com o objetivo de reforçar a concorrência entre as elétricas. Mas no caso da eletricidade desde 2017 que os clientes podem regressar à tarifa regulada, o que só aconteceu no gás natural no ano passado. Caso esta imposição volte, os novos clientes e os que estão no mercado liberalizado ficam impedidos de regressar à tarifa regulada de gás.

Tarifa regulada permite poupar 70% após aumentos, mas há dúvidas para gás e luz na mesma fatura

A tarifa regulada é fixada anualmente pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) com eventuais revisões trimestrais em função de oscilações mais significativas das cotações. E o gás que abastece estes clientes resulta de contratos de longo prazo que oferecem maior estabilidade e, em particular no ano passado que foi marcado por recordes nos mercados, preços mais baixos do que a concorrência. O mercado livre é fornecido pelas comercializadoras que têm maior margem para fixar (e alterar preços) e que estão mais expostas às variações do mercado do gás natural.

Apesar da descida verificada nos mercados internacionais para preços mais normalizados, as ofertas comerciais disponíveis para domésticos e pequenos negócios (consumos até 10.000 metros cúbicos) relativas ao segundo trimestre ainda mostram que a tarifa regulada é mais atrativa para contratos que forneçam apenas gás natural. Nas ofertas duais de eletricidade e gás, os preços propostos pelas comercializadoras conseguem bater a tarifa regulada, mas estes são preços com condições, desde fidelização até estarem disponíveis apenas para novos clientes. As ofertas duais mais baratas estavam indexadas à variação do mercado.