O Corpo Nacional de Escutas (CNE), organismo máximo do escutismo católico em Portugal, está a divulgar esta semana às suas unidades regionais e locais um “posicionamento institucional” sobre os temas da “afetividade e sexualidade no programa educativo do CNE”, documento no qual clarifica que o movimento escutista tem as portas abertas a jovens de todas as orientações sexuais e expressões de género.

O posicionamento institucional, que resulta dos trabalhos do projeto “Entre Linhas” — criado pelo CNE em 2020 para pensar as questões da afetividade e sexualidade no âmbito do escutismo católico —, inclui um extenso glossário com explicações sobre termos como “orientação sexual”, “afetividade”, “sexualidade”, “sexo”, “intersexualidade”, “género” ou “incongruência de género”.

“Não há vida plenamente humana que não integre a sexualidade”, lê-se no documento a que o Observador teve acesso, que também explica o “sexo” como “uma categoria biológica determinada por características anatómicas e fisiológicas que distinguem macho e fêmea”, referindo-se “apenas à herança biológica de uma pessoa como homem ou mulher”.

Já o “género” é descrito, neste glossário do escutismo católico, como uma “categoria sociocultural que resulta de um processo social construído a partir da diferenciação entre homens e mulheres“, incluindo “papéis e expectativas que a sociedade tem sobre comportamentos, pensamentos e características que acompanham o sexo biológico de uma pessoa”.

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“Neste âmbito, expectativas sobre a maneira como homens e mulheres se devem comportar ajudam a construir a conceção de género, e esta pode variar segundo as culturas. Mesmo quando é utilizado para se referir ao sentido psicológico do eu pessoal, como distinto do seu sexo biológico, no entanto, o género é fundamentado ou referente ao sexo biológico. Na verdade, nem todos do mesmo sexo experimentam o seu género, ou o vivem da mesma forma. Apesar de haver uma ampla variedade de formas de ser ‘masculino’ ou ‘feminino’, cada uma é fundada em referência à herança biológica da pessoa“, lê-se ainda.

No posicionamento institucional, o CNE, que é descrito como um “movimento de educação não-formal de crianças, adolescentes e jovens, segundo o método escutista proposto por Lord Baden-Powell of Gilwell, à luz do Evangelho e no cumprimento da sua missão”, assume-se como “membro de uma Igreja sinodal que se abre à escuta de todos e que com todos quer caminhar”.

Além disso, o CNE afirma que “crê no amor incondicional de Deus por cada uma das suas filhas e filhos, na verdade e singularidade da condição existencial de cada um”, em que “se inclui também a orientação sexual“.

O movimento escutista quer “ajudar crianças, adolescentes e jovens a desenvolver um projeto pessoal de vida, no encontro com Jesus Cristo, de modo a que se tornem cidadãos capazes de assumir uma posição construtiva na sociedade e comprometidos na constante transformação do mundo, à luz do Evangelho”, ao mesmo tempo que “entende que o ser humano é um ser sexuado e que a vivência da afetividade e da sexualidade é uma dimensão constitutiva da pessoa, abrangendo a totalidade da sua existência”.

Por isso, o CNE diz defender “que a sexualidade humana deve ser pensada a partir de todas as dimensões constitutivas da condição humana“, reconhecendo o “contributo da afetividade e da sexualidade para um projeto de vida feliz e não ignora a existência de situações de dor, de sofrimento e de exclusão”.

Apesar da abertura conceptual à diferença, o posicionamento do CNE mantém a sua coerência com a doutrina da Igreja Católica, acreditando “na riqueza do sacramento do matrimónio, fundado na relação homem-mulher, como lugar aberto à vida”, mas “reconhecendo, porém, que a vivência cristã do amor não se esgota neste tipo de união“. “A expressão sexual do amor é também querida por Deus no contexto do amor autenticamente humano”, diz o documento.

O organismo máximo do escutismo católico em Portugal reconhece ainda que “sexo biológico (sex) e dimensão sociocultural do sexo (gender) se podem distinguir, mas não separar radicalmente na construção da identidade”.

Desse modo, o CNE diz que tem a missão de acolher “crianças, adolescentes e jovens na situação concreta do caminhar de cada um, acompanhando o processo de construção da sua identidade, em todos os seus aspetos, que inclui também a orientação sexual”.

A todos eles, que são “protagonistas do seu desenvolvimento integral“, o CNE diz propor “um percurso educativo, no qual a vivência da afetividade e da sexualidade está explícita e harmoniosamente presente, ajudando-os a crescer e a tornarem-se adultos ativos, com espírito crítico, capacidade de intervenção social, iluminados pela fé cristã e preparados para encontrar e dar respostas às perguntas do dia a dia”.

No entender do movimento, “a vivência pessoal da sexualidade deve ser direcionada para a construção de um projeto de felicidade, baseado no compromisso e em atitudes fecundas, conduzindo a uma vida em que dons, talentos e qualidades sejam colocados ao serviço do bem comum, mesmo na impossibilidade biológica de geração”.

O CNE aproveita ainda este documento para sensibilizar “os seus membros para as situações de sofrimento de pessoas com diferentes orientações sexuais, decorrentes dos processos de construção da sua identidade pessoal”, bem como para repudiar “todos os comportamentos agressivos e de discriminação injusta, nos relacionamentos interpessoais, afetivos e sexuais, quer no âmbito do CNE, quer nos contextos familiares e sociais, reafirmando que cada pessoa deve ser acolhida e respeitada na sua dignidade, independentemente da própria orientação sexual”.

O CNE admite ainda que os dirigentes escutistas, que são simultaneamente educadores e evangelizadores, também são chamados de acordo com o seu “perfil de maturidade humana e cristã”, bem como os seus “dons, talentos e qualidades”, mas “respeitando a verdade da condição existencial de cada um, em que se inclui também a orientação sexual”.

Ideia é lançar “bases para uma proposta cristã que acolhe a todos”, diz padre responsável pelo projeto

Em declarações ao Observador, o padre Luís Marinho, que foi o assistente nacional do CNE durante os últimos dez anos e que termina este sábado o seu mandato, explica que o objetivo da produção deste posicionamento institucional é o de “colocar um instrumento concreto para agora a associação delinear caminhos de aprofundamento e de concretização“.

“Este texto, no fundo, sintetiza uma reflexão feita de muita escuta, de muito estudo, de muitas sensibilidades, de muitas áreas científicas, da teologia, da teologia moral, da antropologia, da antropologia teológica, da sociologia, da psicologia, da neurobiologia”, diz o sacerdote responsável por acompanhar a nível nacional o escutismo católico. “Daqui para a frente, hão de vir outros instrumentos.”

O padre assume que “na Igreja e fora da Igreja, em torno destes temas, há tantos confrontos e polarizações ideológicas, políticas e religiosas”. Por isso, o que o CNE procurou fazer foi lançar “as bases para uma proposta cristã que acolhe a todos” e que “não põe nenhuma pré-condição” ao acolhimento de cada pessoa “a não ser a disponibilidade para se confrontar com a proposta do Evangelho”.

Questionado sobre se este documento surge também em resposta a eventuais situações de discriminação pela orientação sexual ocorridas no contexto do escutismo católico no passado, Luís Marinho reconhece que “há efetivamente, sobre este tema, muitas incompreensões e equívocos” — e que isso também aconteceu dentro do escutismo. “Somos muitos aqueles que não estamos preparados para fazer este acolhimento generoso”, disse. “Até por causa da nossa identidade católica, muitos adultos teriam alguma dificuldade em ouvir e em acompanhar até ao fim as crianças e jovens na diversidade.”

Identificámos dentro do CNE algumas dificuldades em cumprir a sua missão educativa, como movimento eclesial de educação“, assumiu.

O sacerdote recorda também como as palavras do Papa Francisco na JMJ de Lisboa — que pediu uma Igreja aberta a “todos, todos, todos” — vêm “sublinhar tão fortemente como há um caminho para cada pessoa no seguimento de Jesus Cristo”. É, por isso, necessário “encontrar a linguagem, os métodos e os instrumentos concretos” para chegar a todos.

Questionado sobre se esta iniciativa do escutismo católico pode impulsionar outros movimentos da Igreja a seguir por caminhos semelhantes, Luís Marinho reconhece que o CNE teve a “vantagem” de começar há três anos a pensar nestas reflexões. “Tivemos a possibilidade de uma reflexão com profundidade e de uma procura de sistematização de informação científica”, reconhece.

O documento está esta semana a ser enviado às várias regiões escutistas do país (que correspondem às dioceses católicas) e deverá, em breve, estar nas mãos de todos os agrupamentos (as paróquias) do país, sendo divulgado publicamente na próxima semana.

O CNE – Escutismo Católico Português é a maior associação de jovens do país, contando atualmente com cerca de 70 mil associados. Foi também uma das primeiras estruturas da Igreja Católica a implementar medidas concretas de proteção de menores e de prevenção do abuso sexual, tendo desde 2016 em funções uma estrutura interna chamada “Escutismo: Movimento Seguro”.