Fruto esférico que deu nome a uma cor e prestígio a um país de navegadores (hoje globalmente conhecido por causa dum jogador de futebol petulante identificado por um acrónimo…), a laranja tem uma história com muito sumo, que neste pequeno livro Anabela Ramos sintetiza de forma exemplar e de leitura proveitosa e limpa. Organizado em quatro partes — “Laranjas do mundo em Portugal”, “Laranjais: produção para usos diversos”, “Laranjais: uma geografia histórica”, e, por último, “Receitas culinárias” —, beneficia de ilustrações de Ana Hoo que pontuam o livro de forma sugestiva, fazendo crer — juntamente com a escolha para a capa de belos quadros barrocos localizados num museu andaluz e com a evidência dum tipo e mancha gráfica informados — que a pequena editora Ficta, de Vila das Aves (Santo Tirso), sabe o que faz e ganhará progressivamente uma presença distintiva no nosso panorama livreiro, ocupando também ela um nicho que por décadas foi expandido pela Colares Editora, de Maria Rolim, passou pela Assírio & Alvim, com autores como José Quitério e Alfredo Saramago, e hoje se aloja maioritariamente — aliás, muito bem — na Tinta da China, com os livros de Maria Manuel Valagão, Nídia Braz, Bertílio Gomes, Vasco Célio e outros: Alimentação, Natureza e Paisagem: plantas silvestres alimentares, aromáticas e medicinais é simplesmente maravilhoso.

Anabela Ramos descasca a história da laranja e exibe-nos, um a um, os gomos das suas variedades, recorrendo a todo o tipo de fontes documentais, dos tombos dos conventos à literatura de viagem, dos tratados de botânica e medicina aos velhos livros de cozinha, incluindo os de casas reais europeias (p. 40). O fruto é originário da China, mas já na Idade Média era degludida na Península Ibérica a sua versão amarga, que ainda hoje serve para compotas inglesas muito apreciadas. Há séculos que diferentes civilizações e culturas reconhecem as propriedades medicinais e culinárias da flor da laranja, e o cultivo de laranjeiras em jardins privados tornou-se moda entre burgueses e aristocratas europeus, depois de ter sido um ócio de príncipes árabes da Andaluzia. Orangeries foi o nome dado às estufas de vidro aquecidas, no Norte da Europa, onde laranjeiras cresciam, perfumavam e frutificavam, para distinção das classes altas que as detinham e respetivos palácios ou castelos. Na década de 1650, embaixadores portugueses em Roma encantaram cardeais e um papa com a oferta de pés, fruta e conservas (pp. 36-38). Como muitos outros, o claustro do Mosteiro dos Jerónimos foi ornamentado com laranjeiras, e em numerosas cercas monásticas mesas de lousa e assentos de pedra proporcionavam aos monges um enquadramento paisagístico de campo agrícola e jardim-pomar confinantes, enriquecido pela beleza ornamental e pelo perfume das laranjeiras.

“Até aos finais do século XVI, — diz Anabela Ramos — esta planta estava bem disseminada por todo o país. Dela se retirava em primeiro lugar a flor, utilizada na doçaria e na medicina, e depois o fruto, que se comercializava e exportava para a Europa e que poderá ter dado origem a algum entusiasmo europeu relativo às laranjas de Portugal”, ou “de Lisboa” (pp. 32, 35), a ponto de influenciar os termos adotados em diferentes países e línguas — os bem conhecidos portocállo na Grécia e portogallo em Itália, mas também portakal na Turquia, portokalli na Albânia e purtugâli no Irão (p. 39) —, e o receituário de grandes cozinheiros, que regista “água de laranjas de Portugal” e “torta de laranjas de Portugal”. “Às bicais [indianas] do século XVI e às da China do século XVII, soma-se, nos inícios do século XIX, a laranja de umbigo, ou da Bahia”, “mais aprazível e deliciosa” (pp. 41, 44), e um “fruto resistente, capaz de fazer longas travessias em perfeito estado de conservação, [que] rapidamente alcançou grande sucesso e suplantou todas as outras variedades” (p. 42).


Título: “Laranjas de Portugal. Séculos de cultivo e consumo”
Autora: Anabela Ramos
Prefácio: Dulce Freire
Ilustrações: Ana Hoo
Editor: Ficta
Páginas: 136

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Em 1611, um cozinheiro espanhol criou uma receita de besugos en escabeche a uzo de Portugal, usando pimenta e laranja azeda (vem transcrita no fim do livro, pp. 115-16). Em 1680, Domingos Rodrigues recomendou que como entrada num banquete se servissem “pratos de laranjas da China guarnecidos com limões doces”. Em 1715, François Massialot publicou uma receita de marmelade d’oranges de Portugal (p. 71). Em 1780, o Cozinheiro Moderno ou Nova Arte da Cozinha propõe um “bolo de flor de laranja” (p. 65). Em 1788, a Arte Nova e Curiosa para Conserveiros, Confeiteiros e Copeiros ensinava mais uma maneira de fazer a famosa florada, usando toda a flor da laranjeira e uma mistura de açúcar com mel (p. 62). Frei Manuel de Santa Teresa, também no século XVIII, sugere uma “salada de laranja da China”, com laranjas frescas cortadas às rodelas e polvilhadas com acúçar e canela (p. 75; receita na p. 118). Todavia, os usos medicinais anteciparam os culinários, a botica precedeu a cozinha: a flor da laranjeira foi usada para aromatizar vinhos com funções terapêuticas, como Francisco Borges Henriques indica no seu Receitas e Remédios, de 1715, e Vicêncio Alarte inclui no seu Tratado das Vinhas (1712) a receita duma aguardente medicinal à base de vinho tinto, cravo-da-índia, gengibre, salva, alecrim e “casca de laranja azeda colhida em Maio” (p. 70).

A terceira parte do livro — com 30 páginas — é dedicada à geografia histórica dos laranjais em Portugal, do norte ao sul e às ilhas. O extraordinário alcance de semelhante inventário, com raízes estendidas ao longo de quase um milénio, jamais caberia num livro deste tipo e finalidade, pelo que a autora se baseou sobretudo nas fontes documentais e na bibliografia sugeridas pelos demais temas deste seu trabalho, a que juntou alguns dados estatísticos e outros relativos ao século XX e — muito bem — relatos de viajantes estrangeiros de outros tempos. A impressão de que deveria e poderia ter feito mais e melhor, persiste mesmo assim. Não teria sido fácil, também é verdade.

A laranja mais afamada do Minho foi a de Amares, a ponto de fazer parte do respectivo brasão concelhio, mas “entrou em decadência nos finais da centúria” (p. 87), enquanto “a melhor laranja do país”, reclamam alguns (pp. 91, 92), cresce no Douro, em São Mamede, Vilariça, Cardanha e Adeganha — ou será em Riba Tua (Vila Real) e Penajóia (Lamego)?… Em 1927, Joaquim da Silva Tavares considera “excelentes as laranjas de Coimbra, embora as considere inferiores às de Setúbal e às de Amares” (p. 95). A Quinta das Lágrimas, por exemplo, contava então com “259 pés de laranjeiras e tangerineiras”, menos de metade que os da Quinta do Baptista, à beira-rio. No século XIX, grandes quintas de Lisboa (incluindo um raio que cobria Cascais, Colares e Vila Franca de Xira) e Setúbal (também Alhos Vedros, Palmela, Serra da Arrábida e Sesimbra) produziam muita e muito boa laranja, que exportavam para Inglaterra e Alemanha, até que a guerra de 1914-18 mude “a geografia da venda da laranja” e moléstias nas árvores, como a gomose, e outros factores fazem com que ali “os laranjais percam terreno e deixem de dominar a paisagem” (p. 100).

Anabela Ramos aceita o juízo de Silva Tavares de que os melhores laranjais do Algarve são os de Faro, onde “existia a melhor laranja da Bahia produzida em Portugal” (p. 103). A laranjeira em regime extensivo só chegaria ao extremo sul com a nova barragem do Arade em 1956 e os furos artesianos da década seguinte, permitindo a rega de citrinos em quase 2000 hectares no triângulo Silves, Lagoa e Portimão. “Atualmente, — conclui, — mais de 80 % da produção portuguesa de citrinos tem origem no Algarve” (p. 104). A informação relativa aos Açores é acentuadamente curta, senão incompleta, deixando de lado a exportação para a América do Norte de boa parte da produção da laranja na ilha do Faial, por exemplo por iniciativa de Manuel Borges de Freitas Henriques (1826-73), um antigo trancador de baleias que se tornou cônsul de Portugal em Boston, e autor de Uma Viagem aos Açores, ou Ilhas Ocidentais (1867; ed. Instituto Açoriano de Cultura, 2021, 233 pp.). A “economia da laranja” deu, seguramente, a São Miguel “um período de grande prosperidade económica, que se estende até meados do século XIX” (2000 produtores em 14 km2 nos alvores desse século, seguindo dados colhidos por Isabel Soares de Albergaria), mas teria sido interessante revelar que naquelas ilhas se formou uma bela e extensa colecção de boas faianças inglesas recebidas por troca de muitas caixas de madeira contendo laranjas (hoje expostas no Museu de Angra do Heroísmo, por oferta da Fundação Calouste Gulbenkian feita nos anos 1960).

O livro acaba da melhor maneira, abrindo-nos o apetite com receitas culinárias do século XVI ao XXI, colhidas de obras de época, por vezes reinterpretadas na actualidade. A de perdizes com laranjas vem no tratado Cozinheiro dos Cozinheiros do famoso cozinheiro Paul Plantier (1877, várias vezes reeditado), a de torta de laranja é a Maria de Lourdes Modesto e do seu Cozinha Tradicional Portuguesa (1995) e para o nosso tempo há versões da “compota” e das “bolachas” de laranja de Amares, esta desenvolvida e comercializada por uma empresa local — que também reinterpretou a “compota de flor de laranjeira de Amares” constante do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal (1538-77), nada menos que o mais antigo manuscrito de cozinha em português, tesouro da Biblioteca Nacional de Nápoles, impresso pela primeira vez pela nossa Imprensa Nacional em 1987.