A informação é a todos os títulos chocante: há dias que circula pela imprensa, israelita e internacional, a notícia de que entre as vítimas civis que o Hamas provocou no sangrento ataque contra Israel estarão “40 bebés”, que terão mesmo sido “decapitados”. O problema é que esta história se faz de confirmações, contradições e desmentidos, não havendo até agora uma confirmação oficial sobre as supostas mortes de dezenas de bebés às mãos do grupo terrorista nem qualquer prova nesse sentido, mas sim muita confusão, avanços e recuos à volta do assunto. O que não impediu que a informação tenha entrado nos discursos de vários líderes israelitas e até internacionais, como Joe Biden, que depois teve de ser corrigido.

Verificando as informações que falam no massacre de dezenas de bebés, todas vão dar à mesma origem: uma reportagem de uma jornalista israelita, Nicole Zedek, que trabalha como correspondente para o canal internacional de notícias i24, com sede em Israel. Zedek fez parte do grupo de jornalistas que foram convidados pelas autoridades israelitas para visitar o kibbutz de Kfar Azza, perto da fronteira com a Faixa de Gaza, e foi a primeira a mencionar que os soldados teriam contado que viram corpos de bebés com as cabeças cortadas.

A repórter dizia ter dificuldades em descrever o cenário de “vítimas em massa”, contando que os soldados diziam ter visto, nas casas em que o Hamas entrou, “bebés degolados”, além de “famílias mortas a tiro nas suas camas”. “Dizem que nunca tinham visto uma coisa destas”, descrevia, acrescentando que ainda se encontravam no kibbutz cadáveres de civis por recolher.

Numa reportagem da mesma jornalista é possível ver o vice-comandante da unidade 71 das tropas israelitas, David Ben Zion, a relatar crimes no mesmo sentido, acusando o Hamas de “cortar as cabeças de crianças e mulheres”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A repórter partilhou também um vídeo da CNN em que o jornalista Nic Robertson, que também visitou o local, fala em crimes que se terão passado lá, referindo que há corpos de mulheres, homens e crianças e falando em pessoas “executadas, com tiros na cabeça, cabeças cortadas”.

Nicole Zedek veio depois justificar a notícia que avançou, e que começou a ser questionada por não terem sido mostradas provas ou fotografias da existência dos tais bebés degolados, classificando as tentativas de a desmentir como “repugnantes”.

“Para aqueles que me perguntam onde estão os bebés, porque é que não mostro os bebés: isso é algo que alguém queira ver? Depois de ter visto as coisas gráficas que vi, com os meus próprios olhos, de crianças cobertas de sangue, não me parece que aguentasse ver também essas atrocidades”.

“Se as pessoas vissem os vídeos inteiros”, perceberiam que “40 crianças foram encontradas mortas”, explicou. “Muitas pessoas estão a perguntar de que idade eram as crianças e como é que sei esse número. Não importa se tinham três meses ou três anos, seis meses ou seis anos. Uma criança de seis anos é uma bebé”. Há uma reportagem diferente em que menciona o tal número dos 40 bebés, menciona a Sky News, para dizer que “pelo menos 40 bebés foram levados em macas”.

A informação foi entretanto desmentida, confirmada e desmentida outra vez por várias fontes. Desde logo, o Hamas veio negar, pela voz de Ezzat Al Rishq, um representante do “gabinete político” do grupo, que tenha “decapitado crianças e atacado mulheres” ou que haja provas disso, dizendo que se resumem a “mentiras sionistas” de “alguns meios ocidentais” sobre o povo palestiniano e a sua resistência.

Confusão no governo e nas Forças Armadas: algumas fontes confirmam, outras desmentem

Entretanto, uma responsável do gabinete do primeiro-ministro israelita pareceu confirmar que foram encontradas crianças e bebés sem cabeça, depois do ataque do Hamas. “Sabíamos que tinha havido crianças mortas, raptadas (…) mas agora estamos a ouvir que é ainda pior do que tínhamos imaginado. Estamos a ouvir a informação confirmada diretamente pelo gabinete do primeiro-ministro”, explicava uma jornalista da CNN nesse dia, a partir de Jerusalém, explicando que não havia informação sobre o número de vítimas nesse contexto e que um ataque com estas características traria uma resposta de Israel “como nunca se viu”.

A porta-voz é Tal Heinrich, que a televisão Sky News identifica como uma jornalista freelance que “parece ter sido recrutada pelo gabinete de Benjamin Netanyahu a 8 de outubro para ajudar nas relações com a imprensa” depois dos ataques. Numa entrevista à rádio britânica LBC, Heinrich diz que “crianças, bebés… posso dizer que nalguns casos cabeças foram cortadas. Sim, isso é o que estou a ouvir de soldados no terreno, que lidaram com esses corpos, alguns dos quais ainda estão a ser retirados. Alguns jornalistas que visitaram o terreno, jornalistas internacionais, alguns vomitariam na visita e muitos choraram”, disse.

No final das declarações, acrescenta: “Sim, eles cortaram cabeças”. Numa resposta a um link dessa entrevista, na rede social X (antigo Twitter), Heinrich voltou a frisar que a informação tem por base “testemunhos de soldados”.

Para aumentar a confusão, na quarta-feira à tarde um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel veio negar, depois de ter sido questionado sobre o assunto pela AFP, que tenha “condições, neste momento, para confirmar o número de 40 bebés assinado”, voltando a adensar-se a dúvida sobre se este número se referirá a vítimas bebés ou a crianças decapitadas.

Na sequência disto, na quinta-feira à noite, o ministro israelita da Economia, Nir Barkat, mencionou em entrevista à Sky News ter “ouvido falar de 40 jovens rapazes”. “Uns foram queimados vivos, outros foram decapitados, outros levaram tiros na cabeça”.

À CBS, o chefe de operações da organização civil de Israel que se dedica a ajudar a respostas de emergência (a Zaka), Yossi Landau, disse ter visto “pessoalmente” corpos de adultos, crianças e bebés decapitados. Mas, como a Sky aponta, um porta-voz das Forças Armadas israelitas falou em crianças mortas, mas disse que as notícias sobre decapitações “não estão confirmadas”. A agência turca Anadolu contactou as forças israelitas por telefone e cita a seguinte frase de um porta-voz, a propósito das notícias que dão conta da decapitação de bebés: “Vimos as notícias, mas não temos nenhuns detalhes ou confirmação disso”.

“Não acho que o Hamas não fosse capaz disso, dadas as atrocidades que temos visto (…) e os atos de barbárie, mas nesta altura não posso confirmar essas notícias. Sei que havia dezenas de cadáveres nesse kibbutz”, referiu numa entrevista à Newsmax o porta-voz Jonathan Conricus.

Mas, para baralhar mais a situação, Conricus também disse esta quinta-feira à Sky News Australia que “uma pessoa — uma pessoa sénior, identificada on the record, penso que na CBS News, testemunhou pessoalmente que viu as cabeças de vários bebés“, provavelmente numa referência às declarações de Yossi Landau, embora dizendo que não consegue confirmar o tal número dos 40 bebés.

Jornalistas que estiveram no local não viram provas

O correspondente da Sky, Stuart Ramsay, também esteve na visita da imprensa ao kibbutz, tendo visto provas do ataque, mas explica que, tendo falado com dois responsáveis das forças de Defesa israelitas (um dos quais um porta-voz) “nenhum disse, em nenhuma altura, que o Hamas tinha decapitado ou matado 40 bebés ou crianças. Acredito que, se isso fosse verdade, me teriam dito a mim e a outros lá”. O jornalista frisou que não há dúvidas de que “um ataque horrível” aconteceu em Kfar Azza, tendo visto cadáveres durante a visita, mas que é “importante separar factos de especulação numa situação destas”.

Não foi o único jornalista que esteve no local e que questiona ou contradiz as informações que foram em primeiro lugar avançadas por Nicole Kedek. O israelita Oren Ziv, que também integrou o grupo que visitou o kibbutz, disse na X que nessa visita não viu “nenhuma prova disso” e que nenhum dos porta-vozes ou comandantes, com os quais falou sem “supervisão”, mencionou esses “incidentes”, frisando que ainda assim viu cenas “horríveis” e que isto não significa que não tenham sido cometidos crimes de guerra.

Biden recua: afinal não viu fotografias

O mistério veio adensar-se esta quarta-feira, quando o Presidente norte-americano, Joe Biden, disse ter visto imagens “verificadas” das crianças decapitadas, durante um encontro com representantes da comunidade judaica nos EUA. “É importante que os americanos vejam o que está a acontecer. Eu faço-o há muito tempo. E nunca pensei ver fotografias verificadas de crianças decapitadas por terroristas”, contou aos presentes.

Mas, perante as declarações rapidamente citadas por toda a imprensa internacional, a Casa Branca veio fazer uma correção: esta quinta-feira, um porta-voz da administração Biden disse que o Presidente se baseou nas afirmações do gabinete do primeiro-ministro israelita para fazer aquelas declarações, esclarecendo que nem Joe Biden nem outras autoridades dos EUA confirmaram, de forma independente, que o Hamas tenha decapitado crianças israelitas, não tendo, afinal, Biden visto as imagens.

Entretanto, o Hamas veio desmentir mais uma vez que entre os ataques tenham incluído a decapitação de crianças, desta vez em declarações à Al Jazeera. “Mostrem-nos uma imagem de que o Hamas matou civis, de que o Hamas matou crianças, de que o Hamas matou mulheres. Não matamos civis”, disse Ghazi Hamad, membro do gabinete político do Hamas. E já esta quinta-feira um responsável do governo israelita disse à CNN que o executivo não confirmou essa alegação.

“Já houve casos de militantes do Hamas a fazerem decapitações e outras atrocidades ao estilo do Estado Islâmico. Ainda assim, não estamos em condições de confirmar se as vítimas eram homens ou mulheres, soldados ou civis, adultos ou crianças”, cita a CNN.

Com algumas fontes do lado israelita a dizerem ter visto provas e outras a desmentir essa informação, que entretanto circulou um pouco por todo o lado, a dúvida permanece. Ainda assim, até agora, as fontes oficiais do Executivo dizer não ter visto provas ou não estarem em condições de confirmar estas informações.

Durante a tarde desta quinta-feira, houve mais um desenvolvimento neste tema. Na conferência de imprensa ao lado do primeiro-ministro israelita, Antony Blinken, secretário de Estado dos EUA, disse ter visto fotografias de “bebés baleados e jovens queimados nos seus carros”. “É difícil encontrar as palavras certas. É para além do que qualquer pessoa alguma vez quereria imaginar. Um bebé, uma criança, cheia de balas”, disse o governante norte-americano. E, embora Blinken tenha falado em imagens de “soldados decapitados”, não houve menção às dúvidas sobre os bebés decapitados.

Mais tarde, o próprio gabinete de Netanyahu divulgou no X, o antigo Twitter, as tais imagens que mostrou ao secretário de Estado norte-americano. As fotografias mostram os corpos de crianças mortas e queimadas. Dois deles são bebés que foram queimados ao ponto de não serem reconhecíveis, como descreveu a CNN, e outra mostra o corpo de uma criança cheio de sangue. Apesar da violência das imagens, as fotografias continuam disponíveis no antigo Twitter.

O Observador optou por não publicar as imagens devido à violência das fotografias.

Artigo atualizado às 23h10.