“Cada história individual é duplicada pela sua história fotográfica, feita imagem, imaginada. Mas que direito terei de açambarcar essas outras imagens, as imagens dos outros, os positivos? Elas passam pela minha história, esbarram contra ela e por vezes instalam-se nela, mas nunca serão minhas”: quando escreveu estas palavras, o escritor e crítico francês Hervé Guibert não imaginava que quase uma década depois viria a morrer, aos 36 anos, somente três depois de ser sido diagnosticado como seropositivo, e que a sua imagem seria o rosto de uma epidemia que também nessa altura assolava a Europa. No entanto, eram estas mesmas frases que materializavam um pensamento sobre a fotografia, meio que mapeia o seu percurso, que o trespassa e com ele se cruza, entre a memória e os desejos íntimos. Quando se propôs a escrever um livro de fotografia, fê-lo de forma singular: usou-a para falar da vida, dos laços familiares e de amizade, das experiências emocionais e subjetivas, que são em boa verdade, um diário íntimo que o revela perante a sociedade.

Publicado pela última vez em Portugal há mais de 30 anos, chegamos por fim à sua faceta de ensaísta, com A Imagem Fantasma, título que era inédito em Portugal, levado à estampa originalmente em 1981. Constituído por sessenta e quatro breves ensaios, Hervé Guibert recorre neste livro à memória e à fantasia, reflete acerca da fotografia e da sua experiência pessoal como artista e não só. O reconhecido crítico de fotografia do jornal Le Monde, função que manteve entre 1977 e 1985, relata os seus antecedentes fotográficos: as suas primeiras imagens eróticas (algumas pornográficas), uma sessão fotográfica com a sua mãe cuja imagem nunca seria revelada, a lenta degradação de uma fotografia de um amigo condenado, imagens fantasmagóricas ou cancerosas, íntimas até à invisibilidade. Tal como o tradutor Amândio Reis escreve no prefácio, não se trata de uma teoria de imagem, mas sim um leque de textos eminentemente teóricos que nos obrigam a “reconhecer a sua dupla valência enquanto história da fotografia na segunda metade do século XX, tal como vista pelos olhos de um cidadão francês de classe média na segunda metade do século XX, tal como contada pela fotografia”.

Semiautobiográfica, a obra aproxima-se nalguns dos seus princípios, de uma outra publicada um ano antes: A Câmara Clara de Roland Barthes. Seguem, no entanto, caminhos distintos, sobretudo pela forma como Guibert envolve o retrato de família e o de amigos, o mote de desejo e de morte, a Polaroid e o photomaton, a fotografia de polícia e a de viagem, e, por fim, o fantasma de todas as fotografias que ficaram por fazer. A sua narrativa oscila constantemente entre a imagem de família e a imagem de amor, os dois polos necessários nesta efabulatória equação, que fazem deste livro singular um quase romance-ensaio em livre construção. Com vestígios e ecos da escrita de Jean Genet e temas recorrentes que remetem para o trabalho de artistas contemporâneos, Guibert extravasa os vários meios de expressão. Por isso mesmo A Imagem Fantasma é uma ode melancólica e belamente escrita à existência e a formas de arte tão fugazes quanto poderosas. É, neste caso, a sua forma de superação através da arte.

A capa da nova edição portuguesa de "A Imagem Fantasma", de Hervé Guibert, pela BCF

Na falta da imagem tirada ou simplesmente perante a ideia posterior do que poderia ter sido a fotografia de um dado momento, o texto surge como gesto astuto e libertador, como o próprio explica: “Este texto não teria existido se a imagem tivesse sido tirada. A imagem estaria aqui à minha frente, provavelmente emoldurada, perfeita e falsa, irreal, ainda mais do que uma fotografia de juventude: a prova, o delito de uma prática quase diabólica. Mais do que um truque de mão ou prestidigitação. Pois este texto é o desespero da imagem e é pior do que uma imagem desfocada ou velada: uma imagem fantasma…”

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Fotografia de identidade

Este livro surge como imagem espetral daquele que foi um importante autor francês da segunda metade do século XX. Hervé Guibert nasceu em Saint-Cloud, em França, a 14 de dezembro de 1955. Numa família de classe média, passou a infância em Paris e continuou os estudos secundários em La Rochelle, onde fez parte da companhia de teatro La Comédie de La Rochelle et du Centre-Ouest. Fez amizades importantes, nomeadamente com Michel Foucault, amigo íntimo e mentor, cuja agonia e morte Guibert descreve no romance autobiográfico Ao amigo que não me salvou a vida (Livros do Brasil, 1993), publicado um ano antes da sua morte. Manteve igualmente uma relação epistolar com Barthes e foi amigo do escritor Mathieu Lindon, que foi base para o seu romance L’Incognito. Lindon relatará por sua vez a sua ligação com Guibert no seu livro Hervelino, publicado em 2021.

Quanto à obra literária que deixou, Guibert nunca colocou a biografia de lado, com elementos transformados em ficção. No seu romance de estreia, La Mort propagande, deixa antever a estrutura parcelar e fragmentária que marcam os seus escritos, de frases curtas, mas assertivas. É possível olhar para os seus romances também como coleção ou ciclo de contos, numa “aliança entre o biográfico e o imaginário que faz de Guibert um dos fundadores e um dos cultores mais importantes da forma de escrita a que hoje chamamos ‘autoficção’”, realça o tradutor Amândio Reis. A experiência da esfera íntima e intelectual em que se moveu, da sida e da homossexualidade, deixou depurada numa trilogia de livros, que começa com o já mencionado “Ao amigo que não me salvou a vida” e que segue com Le Protocole compassionnel (1991) e L’Homme au chapeau rouge (1992), ambos inéditos em Portugal. São livros que estão nessa iminência de morte, que também deixa plasmada em Mon valet et moi, de 1991, umas das suas últimas obras.

De regresso ao livro agora publicado, revela-se o caráter de um autor que “escreveu depressa, em direção à morte e contra ela”. Uma escrita de autoexposição, em que os “os segredos têm de circular”, onde cabem as histórias dos seus amigos e familiares, mas também as recordações que ficam de um tempo perdido, em certa medida nostálgico. Surge, acima de tudo, como escrita de impulso para se encerrar no desejo premonitório, de alguém que vem da escuridão para se revelar à luz. Nesse gesto de autorrevelação, sublinhe-se, Guibert rejeitou sempre a invisibilidade – como homem homossexual – e combateu a vergonha a que foram sujeitos tantos companheiros seus e amigos, pelo “cancro” que até certa altura se dizia apenas pertencer a estes. A imagem que aqui paira de Hervé Guibert não é, por certo, a que se viria a cristalizar entre nós, sobretudo tendo em conta aquela que deixou fixada no documentário La Pudeur ou l’Impudeur (1992), diário filmado com vídeo, um autorretrato final do escritor e um dos primeiros filmes a exporem de maneira franca os suplícios do corpo face ao avanço inclemente da sida. Estreou-se diretamente na televisão pouco tempo após o desaparecimento físico do seu autor, relançando o debate público sobre a sida.

É, na verdade, a de um jovem artista de múltiplos ofícios nos seus passos inaugurais. Um Hervé Guibert corpóreo, antes da figura fantasmagórica que deu que falar, pela sua imagem pública, no final da década de 1980. Numa leitura mais completa poder-se-ia dizer que “A Imagem de Fantasma” é, neste contexto, memória de uma outra vida mais plena e carta de amor ao médium que encarou como instrumento de resistência e mudança. “A fotografia é também, em grande medida, uma prática amorosa”, escreve no início do livro. É assim que regressamos por fim também ao seu universo literário, que tanto ecos fazem transparecer na escrita de Annie Ernaux ou Édouard Louis. Para uma primeira leitura, são estas então as imagens fantasmas de Hervé Guibert que agora se revelam entre nós – a tentação de um autorretrato mais justo e fiel a este autor, cuja escrita é ainda hoje sinónimo de uma urgência.