Quase 17% dos juízes estão em risco elevado de burnout, com consequências como stress, dificuldade em dormir e sintomas depressivos, revela um estudo divulgado esta sexta-feira que recomenda mudanças na gestão dos tribunais e na avaliação dos magistrados.

O estudo “Condições de trabalho, desgaste profissional, saúde e bem-estar dos/as juízes/as portugueses/as”, do Observatório Permanente da Justiça do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, coordenado pelos investigadores João Paulo Dias e Paula Casaleiro, inquiriu 684 juízes de um universo de 2.043 no país, entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023.

Entre as principais conclusões do estudo, apresentado esta sexta-feira no encontro nacional do Conselho Superior da Magistratura, na Covilhã, está a identificação de 16,7% de juízes em risco elevado de burnout, uma média na qual pesam sobretudo os níveis detetados nos magistrados dos tribunais judiciais, já que na área administrativa e fiscal o risco elevado não ultrapassa os 10%.

Em média, os juízes dizem trabalhar 46 horas por semana, mas em algumas áreas superam as 50, referindo, nas entrevistas citadas no estudo, impactos na vida pessoal, levando muitas vezes trabalho para casa, que se prolonga pelo fim de semana e afeta a conciliação com a vida familiar.

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Em termos de impacto na saúde, foram identificados níveis de risco em 66,7% dos participantes no critério dificuldade para dormir, em 35,9% no critério stress e em 26,2% nos sintomas depressivos.

Trabalhar em megaprocessos é o fator que mais contribui para níveis de stress funcional muito elevados — 65,8% dos juízes consideram-no muito stressante — mas processos volumosos, cumprimento de prazos e falta de apoio para conciliar a vida profissional e pessoal também são fatores de stress relevantes.

Nas entrevistas citadas no estudo, os juízes referem a ansiedade causada por “uma carga de trabalho completamente desproporcionada” e o peso de lidar com a vida de terceiros em cada processo. Há também quem admita que apenas aguentará um ritmo elevado de trabalho até atingir determinado índice remuneratório, abrandando a partir daí.

A saúde mental, referem alguns, não é preocupação dos tribunais nem dos seus presidentes; há quem admita acompanhamento médico constante, mas recuse pedir baixa médica; há quem reconheça vergonha em admitir que tem um problema e há quem reconheça problemas de saúde mental nos colegas, com impactos na qualidade do trabalho desenvolvido, mas entenda que a intervenção cabe a uma inspeção e não aos colegas de trabalho.

Perante as conclusões, os autores do estudo recomendam que se estude o modelo de gestão dos tribunais, com o objetivo de “aumentar a eficiência e eficácia e redefinir competências e meios”, assim como a “revisão do modelo de avaliação do desempenho profissional e ação disciplinar”.

Entendem ainda que deve haver “melhor comunicação entre entidades governamentais e judiciais” e “maior eficiência na gestão de recursos humanos”. O estudo sugere ainda uma “avaliação regular das condições de trabalho” dos juízes, a criação de um gabinete de saúde ocupacional no âmbito da medicina do trabalho e formação em competências como gestão de stress.

Associação de juízes preocupada com burnout pede ação aos conselhos da magistratura

A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) considera “muito preocupante” as conclusões do estudo que colocam 17% dos juízes em risco elevado de burnout e defende que passa pelos conselhos superiores da magistratura melhorar as condições de trabalho.

Para o presidente da ASJP, Manuel Soares, o estudo do Observatório Permanente da Justiça do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, divulgado esta sexta-feira, acendeu uma “luz amarela-laranja” à qual os conselhos superiores devem dar resposta imediata, respondendo aos primeiros sinais de stress profissional, “um processo evolutivo” que é preciso detetar precocemente para evitar que juízes doentes em serviço.

Quem é que agora tem que olhar para essa luz amarela intermitente com muita atenção? Os conselhos superiores de magistratura. Têm que organizar melhor o trabalho, os mecanismos que existem de saúde no trabalho, acrescentar-lhe esta valência de apoio de natureza psicológica e de deteção de situação de doença, para termos a certeza que as pessoas não são forçadas a trabalhar quando estão doentes e segundo e mais importante que o cidadão tenha um juiz completamente apto a trabalhar no seu processo”, disse à Lusa.

Para João Paulo Dias, um dos coordenadores do estudo, “o sistema está um pouco desequilibrado e é rígido”.

Sabemos que há situações onde a carga processual é insustentável. Depois temos outros casos onde é aceitável e até leve. Agora, gerir o sistema no sentido de equilibrá-lo, em termos legais é preciso haver aprovação da reorganização judiciária quase em tempo real para que seja possível aos conselhos equilibrar o sistema, ou seja, colocar mais juízes onde eles são necessários e retirá-los onde eles não são tão necessários”, disse à Lusa, reconhecendo que esta flexibilidade precisa de alterações legislativas que dependem do acordo do poder político.

O investigador defende que o sistema precisa de instrumentos de gestão flexíveis, que não ponham em causa direitos, nem de juízes, nem de cidadãos.

Para Manuel Soares, “uma melhor gestão dos fluxos processuais e dos recursos humanos é vital”, sublinhando as conclusões que revelam que há juízes a desempenhar atos que não são da sua competência, acrescentando stress e horas de trabalho, mas sobretudo o peso de “trabalhar para as estatísticas de produtividade”.

O juiz está a trabalhar excessivamente preocupado com a inspeção, a sua classificação de serviço, se faz rápido, se cumpre os objetivos e isto é um fator indutor de stress. Tendo estes fatores em conta, se criarmos no sistema mecanismos para corrigir isto — e a chave está na mão dos conselhos superiores — nós criamos um sistema de trabalho em que o risco é muito menor. Se formos avaliar daqui a cinco anos, se conseguirmos fazer isto já, vamos ver que estes 17% em risco muito elevado baixariam significativamente”, disse.

João Paulo Dias não ficou tão surpreendido com as conclusões do estudo, tendo em conta o que já se conhecia de estudos anteriores, como ficou com “a carga dramática de algumas situações” relatadas em entrevista, que revelam juízes “a trabalhar muitas vezes em condições que precisariam de algum acompanhamento”.

O investigador frisou que “a magistratura judicial não está isolada da sociedade” e que o problema de saúde mental “está a agudizar-se um bocadinho por todo o lado”, defendendo para o sistema de justiça gabinetes de saúde ocupacional que acompanhe mais as questões de desgaste profissional e burnout, sublinhando que “é preciso mecanismos que atuem, porque não fazer nada é que é grave”.

O que acontece atualmente é que o sistema de deteção de situações que já estão para além do aceitável funciona de uma forma precária e muito voluntarista. Penso que é algo que o sistema precisa de melhorar”, disse.

Centros urbanos com volume processual muito elevado e áreas como crime, trabalho e família, com níveis de “drama associado ao processo” mais elevados são aquelas onde se detetam riscos de ‘burnout’ maiores.

O reconhecimento do problema é um processo individual que por vezes esbarra em preconceitos e vergonha, mas há também uma carga psicológica associada à ideia de que uma baixa médica prejudica o coletivo, sobrecarregando os colegas, referiu João Paulo Dias.