Longe dos grandes conglomerados editoriais, dos holofotes mediáticos, dos festivais literários, a lutarem mês a mês com o preço do papel (que a inflação catapultou para máximos), a contas com as gráficas, os problemas congénitos das distribuidoras, sem extras para montras e escaparates, dependentes do dinheiro que entra a conta gotas vindo das pequenas livrarias, também elas em crise contínua, as editoras independentes portuguesas não pedem quem lhes cante um fado triste e as notícias da sua morte são (sempre) manifestamente exageradas. Até porque quando uma morre, outra nasce como aquela espécie de erva-daninha endémica, que desnorteia os donos da terra queimada.

Talvez porque nem tudo se explique pela via da economia e das finanças e a volúpia de pensar e conhecer tenham um força maníaca das grandes paixões, que nunca são eternas, já dizia Vinicius de Moraes, mas infinitas enquanto duram. Como o amor pelo pensamento raramente se desliga da paixão pelo obstáculo, pois é dele que se alimentam os grandes espíritos, as pequenas e independentes editoras que publicam meia dúzia de livros por ano — ou menos — funcionam como um mundo à parte, infelizmente destinado uns happy few, que não traçam o seu gosto e o seu caminho intelectual nas “novidades”, nos “génios”, nos “prémios”, mas nos desafios impostos pela vida e não nas emanações do mercado, das séries do streaming, das folhas de cálculo das grandes consultoras.

É pois quase com um espírito de fora-de-lei, de velho contrabandista, que estas chancelas se movimentam, fazendo sair para a luz autores arquivados pela girândola de produtos totalmente supérfluos, autores estreantes, autores mortos e enterrados à pressa, mas ainda não esquecidos. D0s Ensaios de Montaigne, esse autor do século XVI absolutamente fundamental para o pensamento ocidental, cuja obra está pela primeira vez a ser editada em Portugal (até agora só têm saído livros de ensaios dispersos, note-se o escândalo desta omissão para a cultura portuguesa) pela E-Primatur; ao Discurso Sobre o Colonialismo do poeta e político Aimé Cesaire, escrito nos anos 30 e agora dado à estampa pela VS; à coletânea Luz Central que reúne os ensaios, artigos e entrevistas de Ernesto Sampaio, pensador e poeta iluminado pelo espírito iconoclasta, que pertenceu ao Café Gelo e pensou como poucos a cultura portuguesa, que sai numa parceria entre a Maldoror e a Língua Morta.

São edições pequenas, que raramente ultrapassam os 500 exemplares, algumas esgotam depressa de mais, outras escoam-se durante anos e anos em pequenas feiras do livro, daquelas em que o preço para instalar a banca não exige o penhor dos anéis e dos dedos. O mundo digital e as redes sociais ajudam mas não fazem milagres — e mesmo quando algum destes objetos peculiares chega à boca de cena do teatro da fama, as grandes livrarias não encomendam mais e, frequentemente, dizem aos leitores incautos que o livro “está esgotado”. Muitas optam por não fazer lançamentos, ou fazem encontros discretos em pequenas livrarias, que servem para alimentar a forma tradicional como estes livros vão chegando aos leitores: boca a boca. De entre estes, reunimos alguns dos títulos que até dezembro andarão por aí.

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“Constelações”, de José Bragança de Miranda (Sistema Solar/Documenta)

José Bragança de Miranda, professor, ensaísta e atual reitor da universidade Lusófona, é um dos pensadores mais instigantes da cultura portuguesa do século XXI, embora tenha começado a publicar livros e dirigir coleções (como a Traços, na editora Nova Vega) muito antes. Sociólogo de formação, propôs-se a escrever uma tese de mestrado sobre Michel Foucault, na Sorbonne — acabou por só escrever a introdução que tinha cerca de mil páginas. Mas o seu universo de referenciais, ideias, pensamentos e produção literária é vasto, aberto, rejeita verdades apodíticas, teorias que se querem dominantes, intuições, opiniões, sistemas de pensamento que estejam mais interessados em fazer adeptos do que levantar problemas, abrir novos caminhos num universo que constantemente nos alerta para o perigo das certezas.

Bragança de Miranda é um dos mais importantes pensadores da Cultura em Portugal, nomeadamente da Cultura contemporânea dominada pela produção de imagens, com obras como Analítica da Atualidade, O Corpo e a Imagem, Crítica da Cultura, Envios e muitos textos espalhados por antologias e revistas nacionais e internacionais. A sua produção é tão vasta como é escassa a sua aparição nos média, cuja simplificação discursiva não se coaduna com a exigência do pensamento sem concessões de Bragança de Miranda.

Constelações, acabado de sair na Documenta, é uma coletânea de ensaios sobre a Cultura e a Técnica na contemporaneidade, de onde emerge o pensamento constelar como forma de pensar o real, partindo do princípio que não se pode pensar o Real, a Natureza, a Linguagem ou a História como se estivéssemos fora deles. Nunca estamos. E porque nunca estamos, tudo o que fazemos, todas as imagens, objetos, sons, frases que produzimos acrescenta-se ao mundo, altera-o, complexifica-o e, como tal, dificulta a nossa tarefa de o pensar. “É preciso trabalhar a quente sobre esta experiência, sem ilusórias distâncias de segurança, operando arranjos e rearranjos, ligando e desligando, desinserindo as cadeias de associações fixadas historicamente e reinserindo outras, mais justas politicamente”, escreve o autor na introdução. É pois necessário perceber que tudo é instável e nesta instabilidade a constelação surge como uma forma de pensar por imagens para apreender as ínfimas bifurcações, interrupções, acidentes, acasos, ruturas que são invisíveis ao pensamento linear e que só se dão a ver no céu onde novas ligações são possíveis.

Além deste ensaio, a Documenta faz sair por estes dias os ensaios Variações, Arte Portuguesa Séculos XIX-XX, de Raquel Henriques da Silva, As 4 Idades da Filosofia e Outros Textos, de Sousa Dias e Callas e os Seus Duplos – Metamorfoses da Aura na Era Digital, de João Pedro Cachopo.

Já a Sistema Solar traz-nos dois autores franceses vindos dos bas-fond do século XIX e que, sendo clássicos da literatura francesa, não são bem conhecidos em Portugal. Um deles é Prospér Merimée, autor da novela Carmen que deu origem à famosa ópera de Bizet, sobre uma cigana fogosa e o seu amante ciumento. Merimée é um dos expoentes do romantismo francês, com um universo cheio de criaturas fantásticas, habitado pelo mito, pelo fascínio por lugares e culturas estrangeiras. A editora publica duas novelas deste que foi, sobretudo, um grande contista. Carmen seguido de Loki, este último a história de uma homem meio urso que gosta de devorar carne humana, que o autor adaptou de uma lenda lituana.

Jesus-la-caille, de Francis Carco, é outro livro a despertar a curiosidade daqueles que gostam de sad-clowns, homens nos becos das cidades como na Paris do inicio do século XX, das ruas mal iluminadas, dos portos, dos incêndios noturnos do submundo. Carco, ele próprio um escritor, jornalista e biógrafo com uma existência acidentada, foi próximo de Katherine Mansfield, diz-se, terá sido amante de George Sand, mas também amigo dos surrealistas Apollinaire e Max Jacob. Ficou conhecido como o “pintor das ruas obscuras”. É nessas ruas obscuras de Montmartre que se ambienta este romance sobre um homossexual, proxeneta que se apaixona por uma prostituta.

“A Imagem Fantasma”, de Hervé Guibert (BCF)

A Imagem Fantasma não é o primeiro livro de Hervé Guibert que sai em Portugal, mas é uma das obras mais especiais deste anjo da literatura francesa das últimas décadas do século XX e a importância da tradução deste texto, por Amândio Reis, não se deve tanto ao facto de o autor ter fundado aquilo que hoje se chama autoficção e que se tornou tão popular, mas por este livro, onde se coligem vários textos que Guibert publicou no jornal Le Monde, versar sobre a fotografia. Um tipo de imagem produzido por uma máquina que se tornou, mais do que o cinema o foi em outras eras, o centro da nossa vida individual e coletiva.

O que A Imagem Fantasma nos traz de verdadeiramente estimulante é a forma como o autor nos mostra, a contrapêlo da nossa atual obsessão por capturar imagens de cada detalhe da nossa vida, do nosso desejo exacerbado de consumir imagens para sentirmos que estamos vivos e somos participantes do desenrolar do mundo, que a fotografia é uma imagem de morte, que está não só ferida dessa morte que corrói os corpos, mesmo os jovens e belos, mas também é testemunho de uma certa diletância, da forma da nossa inexorável solidão. Ao lermos Guibert não há como não sermos confrontados com todas as fotografias, álbuns, negativos que abandonamos em gavetas, que deixamos para trás, enquanto corríamos pela vida fora. Todas as imagens para as quais já não olhamos, todos os rostos que foram importantes e depois esquecidos, todas as paisagens, festas e amores que se foram morrendo.

Poucos livros, escritos com tanta simplicidade e lucidez, nos farão pensar um tremendo mal estar, nos arquivos que saíram dos álbuns de família para se alojarem na memória do smartphone, do computador, para escorrerem pelo Instagram, o Facebook. Em todas essas imagens residem muitos fantasmas, desde logo o de nós mesmos, mas também os daqueles que nos são próximos como os país, os avós, aqueles que a fotografia regista não como uma presença mas como uma perda.

“Mas por detrás desta futilidade vejo de forma mais cruel a história da degradação dos corpos (…) os nossos corpos são agora invisíveis, e nós amamos secretamente e odiamos ao mesmo tempo esses corpos jovens que passam como fantasmas no pincel luminoso do projetor…”

Por outro lado, Guibert reflete sobre a centralidade da imagem nas nossas vidas, de como ela mobiliza e é mobilizada pelo desejo, de como ela é amor e predação, posse, lembrando aqui outro ensaio fundamental sobre a imagem que é O Banho de Diana, de Pierre Klosowsky (Cotovia).

“A Longa Estrada de Areia”, de Pier Paolo Pasolini (Edições do Saguão)

Editora pequena, mas já com um catálogo invejável, onde constam Goethe, Emily Dickinson, Cesare Pavese, Alberto Pimenta ou Maria Filomena Molder, a Saguão edita agora mais uma preciosidade: as reportagens que o poeta e cineasta italiano Pasolini fez durante o verão de 1959, a convite da revista Successo. A Longa Estrada de Areia retrata essa viagem feita pelo litoral italiano, da fronteira com a França até à Sicília e depois subindo até Trieste.

São três reportagens feitas em conjunto com o fotógrafo Paolo di Paolo, em busca de lugares que mostrassem um país entre as estâncias de férias de uma burguesia enriquecida pelo milagre económico do pós-guerra e o povo ainda a viver segundo tradições milenares, expresso nas mulheres em biquíni nas praias e outras cobertas com véu negro. É pois uma Itália dividida entre a modernidade e a tradição que Pasolini vai retratar e vai depois usar para os seus filmes, nomeadamente Accattone, de 1961, e Comícios de Amor, de 1964. A bordo de um Fiat 1100, Pasolini vai embrenhar-se nas paisagens com um olhar poético e realista, melancólico e abandonado à alegria das promessas estivais, revelando aqui já uma visão aguçada que viria depois a desenvolver enquanto cineasta.

“Elogio do Teatro”, de Alain Badiou com Nicolas Truong (Empilhadora)

Empilhadora, a nova chancela da Húmus, em parceria com o Teatro Nacional de São João, nasceu para publicar textos ligados ao teatro. Estreou-se com os melhores auspícios publicando a mais importante biografia de Samuel Beckett, Falhar Melhor, da autoria de James Knowlson, para a qual o próprio Beckett forneceu informações e arquivos. Agora, abre a temporada de outono com Elogio do Teatro, do filósofo francês Alain Badiou em conjunto com o jornalista do Le Monde Nicolas Truong.

Esta obra nasceu no contexto do ciclo Théatre des Idées, promovido pelo festival de Teatro de Avignon. Retomando o encontro ancestral entre o teatro e a filosofia, é uma defesa do teatro enquanto arte que nos orienta para a vida, com a sua capacidade de problematizar a realidade. Rejeitando o teatro como espetáculo e defendendo a sua especificidade enquanto arte que liga a palavra e a imagem, a palavra e o corpo, de forma única e insubstituível na experiência humana, Badiou reafirma o teatro como uma manifestação do pensamento sofisticado destinado à materialização das ideias.

Em simultâneo, a editora publica um ensaio sobre o Teatro Euroasiático e reedita Os Últimos Dias da Humanidade, do austríaco Karl Kraus, levado à cena há alguns anos pelo TNSJ.

“Discurso Sobre o Colonialismo”, de Aimé Césaire (VS edições)

Discurso Sobre o Colonialismo seguido de Discurso sobre a Negritude, do poeta surrealista e político francês nascido na Martinica, escritos nos anos 50, constituem-se hoje como fundamentais para pensar a herança colonial das nações europeias. Aimé Césaire cunhou o termo “negritude”, ainda quando escrevia no jornal universitário que fundou, o Etudiant Noir. Desde cedo Césaire forjou o seu pensamento como reação ao opressivo sistema colonial francês, assente na assimilação cultural dos povos estrangeiros. Mas estes textos são considerados mais manifestos humanistas do que políticos. “Sou da raça dos oprimidos, declarava o poeta, que apesar de ser adorado por André Breton, acabou por ser mais conhecido por estes ensaios do que pela sua poesia.

O julgamento da Europa por esta ser “a responsável perante a comunidade humana da maior pilha de cadáveres da história” ganha foros de alta oratória nas palavras deste poeta, que chegou a ser presidente da mairie da Ville de Fort-de-France e depois deputado. Não obstante toda a sua obra ser um breviário do ativismo anticolonial que ataca todos os lados, dos políticos aos académicos e dos etnógrafos, quando morreu, em 2008, Aimé Césaire teve a classe política francesa a cobrir-lhe o caixão de flores.

A VS publica ainda mais dois ensaios de pensadores italianos: Vertigem: A Tentação da Identidade, de Andrea Cavaletti, onde o autor usa a ideia de vertigem e a forma como ela é retratada por Hitchcock no filme Vertigo, para analisar a tentação identitária nas sociedades contemporâneas. E Spartakus, Uma Simbologia da Revolta, do intelectual Furio Jesi, morto aos 39 anos e apenas publicada postumamente. Este livro analisa o fenómeno da Revolta em contraponto com o de Revolução, num ensaio especulativo onde o autor recorre a uma constelação de autores como Dostoievsky, Brecht, Thomas Mann, Mircie Eliade e Rosa do Luxemburgo e toma como ponto de partida as revoltas que ocorreram em Berlim, no anos de 1918 e ficaram conhecidas como a Liga Spartakus e tiveram como figura central Rosa do Luxemburgo.

A VS, que vai ainda avançar com a terceira edição de Aforismos de Karl Kraus, o que mostra como este autor, polemista terrível, anti nacionalista, depois de décadas de esquecimento e sendo pouco mais que um desconhecido em Portugal, surge como um pensador que fala ao século XXI. No polo oposto de Kraus e ainda assim seu contemporâneo está Marinetti, o fascista italiano que fundou a primeira vanguarda do século XX, o movimento Futurista. É dele o romance Mafarka, o Futurista, escrito em 1909, na mesma época em que preparava o seu famoso Manifesto. Mafarka, considerado indecente e pornográfico, levará o seu autor a julgamento, será retirado e reposto à venda várias vezes ao longo da primeira metade do século.

Escrito em francês e traduzido para italiano, em 1910, o romance, que dedica “aos grandes poetas do fogo, meus irmãos futuristas”, é ambientado numa África imaginária e narra as aventuras de Mafarka-el-Bar que, depois de triunfar sobre os seus inimigos, não aceita ser coroado rei e dedica-se  a educar o seu filho, um semi-deus, autómato e alado. Com raízes nas obras de Rabelais, Aristófanes e na literatura oriental. Marinetti cujo universo foi uma das influências espirituais que Fernando Pessoa deu a Álvaro de Campos.

“Cartas Portuguesas”, de Mariana Alcoforado (E-Primatur)

Continuando o seu trabalho de formiga, a E-Primatur vem lembrar-nos que em 2023 cumprem-se 300 anos da morte de Mariana Alcoforado. Para assinalar a data, a editora publica de nova tradução das cartas atribuídas à freira portuguesa acompanhadas de um estudo histórico da autoria de José António Falcão. Esta nova tradução das famosas cartas que apaixonam a cultura ocidental há séculos privilegia a perspetiva histórica e o estudo que a acompanha faz a súmula dos factos históricos, das diversas teorias sobre a autoria das cartas e sobre a sua influência cultural.

Uma Criança Que Se Perdeu marca a estreia da bailarina, atriz e romancista alemã, do início do século XX, Rahel Sanzara. Este livro conseguiu uma proeza: ser provavelmente o único romance alemão a ter sido consecutivamente impresso no seu país desde a sua publicação até à atualidade (apesar de ter estado nas listas de livros a queimar pelos nazis). Baseado num caso criminal do século XIX, o romance de Rahel Sanzara sofre clara influência das recentes (na altura) teorias da psicologia de Freud e causa escândalo pela forma como aborda temas de sexualidade infantil e perturbações psicológicas do seu jovem protagonista.

Mas é, acima de tudo, um notável estudo das consequências de um crime hediondo nos alicerces de uma família e da pequena sociedade que a rodeia, uma surpreendente meditação sobre a moralidade e o perdão. O livro foi bestseller logo na sua publicação e a escritora recusou o prestigiado prémio Kleist devido aos rumores de que a autoria da obra seria do seu companheiro Ernst Weiss. Um romance notável de uma autora com uma história de vida surpreendente e que constitui o primeiro exemplo de romance psicológico da literatura alemã moderna.

A E-Primatur fará sair ainda mais um livro da trilogia da família Löwensköld da sueca Selma Lagerlöf, o segundo volume de Gargântua & Pantagruel de Rebelais e também o segundo volume dos Ensaios de Montaigne.

“Luz Central”, de Ernesto Sampaio (Maldoror / Língua Morta)

Ernesto Sampaio, poeta mas sobretudo ensaísta, foi uma das vozes mais originais da nossa literatura onde o ensaio e a produção de pensamento sobre a Arte estão reféns das universidades. Ora Sampaio, poeta ocasional que fez parte do Café Gelo, terá depois uma vida intelectual mais centrada na escrita de textos de teor ensaístico, que publicou em livros, mas também em jornais. Foi o único não poeta que Herberto Helder incluiu na obra Edoi Lelia Doura Antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa. Numa parceria entre as editoras Maldoror e Língua Morta, sai pela primeira vez a obra ensaística deste autor num só volume. Luz Central reúne o ensaio homónimo de 1958, Para uma Cultura Fascinante, 1959, O Sal Vertido, de 1988, Ideias Lebres, de 1999. A estes juntam-se vários textos “dispersos e olvidados” saídos na imprensa e um apêndice com duas notáveis e sarcásticas entrevistas que o autor deu, uma ao jornal Público, em 1993 e outra à revista Fenda, em 1999.

Com um prefácio exaustivo do poeta Zetho da Cunha Gonçalves, este volume é uma das obras mais prometedoras desta rentrée literária, pela sagacidade, pelo humor, pelo exemplar da vida humana ética que foi Ernesto Sampaio. Nele encontramos um pensamento tão culto, tão conhecedor das tradições como disponível para perceber as suas metamorfoses no tempo e no espaço. O seu ensaio sobre o Surrealismo é canónico, mas a curiosidade que o movia leva-o a refletir sobre a poesia, o humor, escreve sobre autores tão dispares como Büchner ou Thomas Bernhard, sobre os índios Yokis, os idiotas, Kafka, Walter Benjamin, Duchamp, Breton… um banquete para tempos pobres de nobreza e ricos de vulgaridade.

Mais discreto, mas com uma corte de leitores fiel, é Luís Filipe Parrado, que esgota sempre as edições sem que um só crítico se digne a falar dele. Museu da Angústia Natural é o seu terceiro livro de originais. Dele recolhemos este vestígio: Este foi Aurélio Muciano/Durante dez anos serviu como soldado/na segunda Legião Pártica/formada por Sétimo Severo./Distinguiu-se no campo de batalha/ no uso de lanças de arremesso/Morreu aos trinta./Ignoramos a causa da morte./Nada sabemos também/dos seus litígios, anseios,/desgostos ou alegrias./Conhecemos o seu nome/porque foi escrito numa pedra tumular.

Um novidade discreta, sem a histeria de um James Baldwin, e nos antípodas do sentimentalismo mindfullness que enche os top das livrarias, está Eduardo Mazo, o poeta e alfarrabista argentino que ficou conhecido como o “poetas das Ramblas” de Barcelona, onde, durante anos, vendeu os seus alfarrábios (palavra que nos ficou dos árabes, que era quem ensinava os cristãos da corte a ler e escrever). Estes dois livros que agora se editam em português, Autorizado a Viver e Proibido Morrer nasceram daquelas cumplicidades que acontecem subterraneamente, neste caso entre o Changuito, o poeta-livreiro da Poesia Incompleta, que trouxe este autor para a livraria nas suas edições em espanhol e Filipe Ribeiro, que se encantou por Mazo e quis traduzi-lo. Eis o resultado.

Mazo, que nasceu em Buenos Aires e por acasos da vida acabou nas ruas da capital da Catalunha, não era apenas um poeta, era um criador de aforismos, cheios de humor negro, desencanto e argúcia linguística quase a fazer lembrar O’Neill: “Quero este epitáfio para a minha sepultura: foi-se embora sem pagar.” ou “O que nos aterroriza mais? Estar sozinhos no universo, ou estar sozinhos em casa depois de apagar a televisão?”, só mais um: “Tive um sonho terrível: tudo acontecia como tu desejavas”.

Ainda na poesia, a Euféme de Sérgio Ninguém publica o novo livro e um dos melhores da poeta Yvette K. Centeno. O percurso solitário desta poeta de 84 anos parece culminar nestes poemas límpidos e cheios de sabedoria, como este Outonos: “É o Outono que se apressa/a desfolhar mulheres/as mães antigas/antes que deixem de ser as árvores primeiras/as árvores da vida/de fartas cabeleiras/e o frio do Inverno/transforme os troncos nus em pedras/com uma funda raiz/pequeno rasto de Luz/que possa mais tarde/voltar a ser fogueira”. Ainda este ano a autora terá um novo romance, Clarice, publicado na Glaciar/INCM.

“A Aranha Irlandesa e Outros Poemas”, de Billy Collins (Do Lado Esquerdo)

Também a editora Do Lado Esquerdo, fará sair um volume de poemas de Billy Collins, A Aranha Irlandesa e Outros Poemas. Poeta americano laureado entre 2001 e 2003, e herdeiro da Beat Generation e admirador de Álvaro de Campos, já foi chamado pelo New York Times de “poeta mais popular da América” pela sua poesia feita de pequenos nadas e humor, mas considerada uma porta para o lado sério da vida. São, ao todo, 35 poemas retirados de várias obras. Segue-se a Contra sinos de vento, com poemas escolhidos também pelo autor e pelo tradutor.

Como explicou a editora ao Observador, “o que nos fez querer publicar o Billy Collins foi acima de tudo saber que é uma poesia que nos apanha de surpresa e nos conquista sem darmos conta com o seu delicioso wit, o seu olhar para as pequenas coisas do quotidiano e também a clareza da sua escrita. Não há nada que nos incomode mais na poesia do que aqueles poemas que eu costumo chamar de ‘balões de ar’ ou seja, meros exercícios de estilo vazios de sentidos. E não há nada disso na poesia de Collins. Esta obra  é uma coletânea feita por nós, graças à amizade que o tradutor tem com autor, que acompanhou de perto quer o processo de seleção quer o de tradução, tendo mesmo ‘oferecido’ um poema inédito e outro que só apareceu na edição especial do livro Whale day da Barnes & Noble.

“Perseverança”, de Serge Daney (The Stone & The Plot)

Para os amantes de cinema e não só, a The Stone & The Plot, uma pequena editora e distribuidora de livros e filmes, acaba de editar Perseverança, um livro de Serge Daney, um dos mais famosos críticos de cinema de sempre. Ou melhor, a editora publica um livro que ele não escreveu.

Na verdade, o livro é baseado numa conversa de Daney com Serge Toubiana: “Nesse dia, Serge contou-me a sua própria história, o seu percurso de criança nascida em 1944 – o ano de Roma, Cidade Aberta e da descoberta dos campos –, depois, de adolescente e de jovem que, através do amor pelo cinema, iria escrever a sua vida. Ou seja, confundi-la com uma certa história do cinema.”