É um dos mais importantes escritores da actualidade e todos os anos surge como forte candidato ao Nobel da Literatura. Não chegou ainda, mas Péter Nádas (1942-) já está traduzido por todo o mundo. A sua obra, até agora inédita em Portugal, chega com selo da Cavalo de Ferro, e começa-se pelo princípio. A Bíblia, publicado pela primeira vez em 1967, é o primeiro romance do escritor.

No livro, estamos em Budapeste, algures nos anos 1950. A acção é vista e contada por Gyuri, uma criança, filho de altos funcionários do partido comunista, que vive numa vila situada nas colinas da capital húngara. Passa os dias pelo jardim, deambulando, comendo o tempo. Os pais chegam tarde e ele vai sendo acompanhado pela avó. Pela forma como é descrita, a sua infância sabe a espera – durante o dia, aguarda a chegada dos pais, entretendo-se com o que o jardim tem para dar e ver. A mãe chega mais cedo, e então esperam os dois – os três – pelo pai, que, ao chegar, não lhe dá muita conversa. A vida parece tranquila e equilibrada, mas o cenário pitoresco esconde outros cenários.

Estando a avó a tomar conta da casa, e velha, os pais de Gyuri contratam Szidike, uma jovem que vem de um terreno rural e que acaba por dar uma reviravolta na narrativa. Isto vai introduzindo as discrepâncias – de um lado, a criada; do outro, os patrões –, ainda que, à chegada, Szidike seja aparentemente bem recebida, com o patrão a dizer-lhe que ali é família. Ainda assim, entende-se que se parte de lugares diferentes e entende-se ainda que a narrativa esconde o status quo de um país. Desta forma, a Hungria estalinista não é mostrada, explicada, detalhada. Em vez disso, existe como panorama ao longe, com Gyuri a descrever só o que vê, só aquilo de que se apercebe. Esta escolha de perspectiva vai servindo para conferir à narrativa uma subtileza omnipresente – o rapaz descreve a chegada tardia dos pais, mas não aponta os motivos; descreve a relação distante com o pai, mas não a desenvolve, simplesmente naturalizando-a; julga que ou se acredita em Deus ou se é comunista, mas não concatena os motivos, nem percebe que bisturi é esse que separa as pessoas. Portanto, Gyuri descreve a frieza da classe executiva da Hungria estalinista, mas não percebe que o faz; o que vê é o que existe, sem perspectivar a vida para fora das fronteiras da casa.


Título: “A Bíblia”
Autor: Péter Nádas
Tradução: João Miguel Henriques
Editora: Cavalo de Ferro
Páginas: 104

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Ainda assim, no desenvolvimento de Gyuri, parece haver qualquer coisa de atípico. Logo à cabeça do romance, num acto de vingança irracional, o rapaz espanca o cão, que acaba por morrer, fazendo disso um relato frio, sem remorsos – e não havendo remorsos quando vê o cão ser enterrado. A violência aparece, assim, de forma latente, não havendo uma relação aparentemente directa entre a sua fonte e a sua execução. Gyuri vai tendo alguns contornos sádicos que, mais adiante na narrativa, voltam a fazer-se valer com Szidike, para quem o embate da crueldade não é natural – calando e comendo, é-lhe mais natural a resignação do que o combate de volta, e parece que lhe custa entender os motivos da violência e da ausência de empatia.

Não se percebe bem se isto, esta parte de Gyuri, acontece por não conhecer a ternura ou não ter relações empáticas, mas percebe-se que, sob a camada da tranquilidade de uma casa, há transtorno psicológico e desconforto emocional. Seja como for, não parece que Nadás tivesse interesse em esclarecer isto para o leitor, e isto apesar da opção pela primeira pessoa, que pode sempre abrir, ou até escancarar, as portas para a psique e os estados emocionais das personagens, blindando-os, criando uma linha a direito entre leitor e narrador. Em vez disso, temos um leitor em quem não convém confiar a cem por cento, tanto pelo que pode ocultar propositadamente como pelo que não percebe do que tem ao seu redor.

Quando, devido a reviravoltas na narrativa, a família vai à casa de Szidike, Gyuri vê o contraste ao mesmo tempo que o leitor: em vez da vida privilegiada dos funcionários comunistas próximos do poder, está a vida de todos os dias – uma casa sem electricidade, uma mulher velha a precisar de ajuda, um discurso de baixo para cima, temeroso, quase indigno, a pobreza de quem rouba a vida aos dias. Também isto aparece como corte a bisturi, e esse corte a bisturi cria a empatia por parte de Gyuri.

Finda a leitura, que é breve, o leitor olha para Gyuri como a criança fria, filha de um mundo frio, num ponto da História em que a vida não pode ser explicada em duas linhas, e numa posição social em que é possível existir-se como se as convulsões sociais, políticas e colectivas fossem uma coisa ao longe. Afinal, não estão ali as principais vítimas, os principais relegados. Ao deixar tudo meio à tona, meio à margem, o autor também garante que o leitor pareça estar adiantado em relação ao narrador – não só pelo que a história já ensinou mas também pela questão etária, uma vez que o leitor, à partida adulto, sabe que tem ali o virgem olhar de uma criança.

Tudo acontece num livro de curta dimensão, cujas cem páginas talvez não possam dar-lhe o estatuto de romance. Nesta pequena história, contudo, há tanto do que a grande literatura tem para dar: personagens coesas, ainda que não a preto e branco, blindadas; tensão; a realidade política escamoteada; a vida oculta por trás da tranquilidade de uma casa.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia