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Dois livros, uma história da publicidade portuguesa

Eduardo Cintra Torres publica dois livros que são afinal um só, porém desdobrado num longo ensaio historiográfico seguido duma retrospetiva visual das transformações publicitárias em Portugal.

Literatura, arte, política e publicidade haveriam de ter diferentes conjugações ao longo do século, com destacados escritores neo-realistas a trabalharem em agências
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Literatura, arte, política e publicidade haveriam de ter diferentes conjugações ao longo do século, com destacados escritores neo-realistas a trabalharem em agências

Literatura, arte, política e publicidade haveriam de ter diferentes conjugações ao longo do século, com destacados escritores neo-realistas a trabalharem em agências

Ainda que o objeto a que, instintivamente, primeiro se lance a mão seja a história ilustrada, é no “tijolo” de mais de 1100 páginas que está o grande mérito deste trabalho de enorme fôlego e longo arco histórico, que o patrocínio das comemorações dos 150 anos do nascimento do empresário português Alfredo da Silva tornou possível e agora vem juntar-se a outros volumes que a Principia já se encarregou de publicar nesse mesmo contexto celebrativo. “O estudo da publicidade como fonte do conhecimento da sociedade, da cultura material e do imaginário, é uma tentação”, escreve à p. 20 o autor, que ensaia muito bem a sua parte mas também remete para estudos posteriores.

História e História Ilustrada têm a mesma organização temática capitular: I. Dos primórdios a 1820; II. Liberalismo sem capitalismo, burguesia sem publicidade (1820-65); III. A expansão da publicidade (1865-1913); IV. A publicidade científica (1914-59); V. A sociedade de consumo (1960-2000); e VI. No início da era digital (2000-22). O capítulo III alcança 165 páginas, o IV 365 e o V 328, mas esta hierarquia não se repercute na representação visual no segundo livro, bastante mais equilibrada (52, 47 e 45 pp., respetivamente), e cuja seleção, muito rica e estimulante sem dúvida, nos deixa, mesmo assim, uma pequena margem de dúvida quanto à melhor escolha das imagens, pois certos objetos de excelência, por razões previsíveis ou insondáveis, não constam dessa galeria. Penso — rapidamente — em trabalhos de Jorge Barradas para a Nacional e de António Garcia para a Robbialac, logo identificáveis em monografias sobre eles, de um anúncio de Eduardo Anahory para a TAP, mas também em alguns cartazes de teatro, circo, cinema e tauromaquia, em verdadeiros tesouros do arquivo da Litografia Nacional e, sobretudo, daquele da empresa de Raul de Caldevilla (1877-1951), sobre a qual, aliás, Cintra Torres e dois outros curadores apresentam até ao próximo dia 26 uma mostra no Batalha Centro de Cinema, no Porto; haverá em breve Caldevilla: o Criador da Publicidade Moderna em Portugal, a publicar pela Afrontamento).

Por outro lado, o álbum ilustrado nem sempre valoriza ou hierarquiza da melhor maneira os objetos escolhidos, fazendo com que na inevitável profusão e justaposição dessas 700 imagens passem despercebidas verdadeiras obras-primas, como o cartaz “Tentação é o vinho Adriano Ramos Pinto” pintado em 1911 pelo italiano Leopoldo Metlicowitz (1886-1944) — aliás um expoente europeu dessa arte, aqui contratado pelo “primeiro empresário português a entender a importância da publicidade e do marketing” (I, p. 242) —, em que a serpente bíblica exibe a Eva, não a maçã da tradição, mas uma taça do precioso líquido (I, p. 98; e há pelo menos mais um, absolutamente admirável, de 1915), ou uma das montras de Fred Kradolfer para o Instituto Pasteur, de Lisboa, colocada a um canto da p. 118.


Títulos: “História da Publicidade em Portugal. Com estudo de caso do Grupo CUF” e “História Ilustrada Publicidade em Portugal”
Autor: Eduardo Cintra Torres
Editora: Principia 
Patrocínio: Fundação Amélia de Mello
Páginas: 1131 + 231

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Uma história deste tipo é muito difícil de fazer, por extensas e flagrantes carências materiais. Rafael Bluteau, no seu famoso dicionário de 1720, diz que publicar era “fazer alguma cousa pública com pregação ou trombeta”, ou “com cartazes”, sem incluir outros impressos, em especial os jornais. Tabuletas em tabernas ou hospedarias, com apenas um símbolo comercial, cumpriam o seu papel enquanto “os pregões faziam parte do “fundo sonoro” das cidades” (I, p. 37). O impacto comunicacional dos vendedores ambulantes era apreciável numa época em que a escrita em tipo estava longe de vencer a barreira do analfabetismo — “ainda nos séculos XIX e XX se publicou no país uma dúzia de publicações periódicas incluindo no título as palavras pregão e pregoeiro, assim ecoando a velha publicitação oral” (I, p. 39). A longeva Gazeta de Lisboa (1715-60) veio magnetizar alguma dessa publicidade, atraindo profissionais estrangeiros instalados na cidade, como um pintor-restaurador italiano e uma holandesa importadora de sementes, flores, chocolate, chá e café, mas também um português mestre de esgrima, e bem sucedido por sinal.

Mais tarde, O Hebdomadário Lisbonense (1763-67) foi “o primeiro jornal português de publicidade”, com 55 números, e O Grátis. Jornal de Anúncios e do Comércio “o mais douradouro” do século seguinte, de 1836 a 1856. Publicações deste tipo distribuíam-se “por lojas, teatros, secretarias de Estado, tribunais, etc.” (II, p. 37), anunciando leilões, remédios, “limonadas refrigerantes”, transporte marítimo ou ferroviário, seguros, livros acabados de sair do prelo e muito mais. Melhores caixas tipográficas permitiriam verdadeiras delícias de composição em folhas-volantes e almanaques muito em voga na segunda metade de Oitocentos, antes do advento e domínio da gravura e da fotografia na imprensa, e da litografia em geral, quando hotéis e estabelecimentos comerciais de renome se faziam representar pelas fachadas dos seus edifícios ou através de papel de correspondência comercial adornado com medalhas ganhas em exposições nacionais e internacionais ou com o prestígio de serem “fornecedores da Casa Real”. Uma vez mais, a influência francesa e inglesa no melhor comércio nacional terá sido essencial, apesar do atraso de décadas deste “país pobre e sem patronato em quantidade vocacionado para a necessidade de anunciar” (I, pp. 445-46).

António Maria do Couto identificou e transcreveu, em dois volumes saídos em 1806, 648 tabuletas e letreiros publicitários no comércio de Lisboa, que Eduardo Cintra Torres calcula serem em número “superior ou muito superior” (I, p. 74) e discute o seu “carácter de ilustração que escapava por completo aos anúncios de imprensa”. Eram “paradoxalmente “modernas” em potência”, pois revelavam “uma criatividade de publicitação comercial bem superior à da imprensa” e “a vivacidade dos pequenos negócios, a concorrência” (I, pp. 81, 83, 87). Pequenas chapas colocadas em prédios ou estabelecimentos com apólice de seguro foram “a primeira manifestação publicitária das companhias de seguro” (cit. I, p. 285). Ora, é por tudo isso incompreensível que o autor não tenha dado relevo historiográfico e destaque visual — há só alguns exemplos, aliás todos muito discretos — precisamente à enorme evidência dessas tabuletas comerciais no ambiente urbano ou nas fachadas ou nos muros das grandes instalações fabris no dealbar do século XX identificadas por letras de grande dimensão. Havia uma espécie de tipomania, e as agências de anúncios disputavam lugares públicos para a fixação de grandes cartazes publicitários. Eram gigantes os cartazes para espectáculos em teatros e coliseus.

Tudo isso a que, há muito, chamo “cidade tipografada” está bem presente nos inventários fotográficos das principais cidades portuguesas, e parece correr a par com o próprio apuro das técnicas de impressão sobre papel, de que são bons exemplos o requinte litográfico das novas revistas de “ilustração” (sic), aplicado em rótulos para bebidas e embalagens de sabonetes e velas, tanto quanto a publicidade investida em objetos de uso quotidiano — o belo papel vegetal de embrulho interior duma loja de luvas, copos cartonados de piquenique com anúncios a gravadores e tipografias, leques, pratos-calendário, bilhetes de transporte público ou postais-ilustrados. Em grandes festas de Lisboa, exuberantes carros alegóricos desfilavam nas avenidas publicitando marcas comerciais. A publicidade comercial ganhou uma tal relevância na vida urbana — as ruas como “páginas vivas de anúncios”, como diria António Ferro —, que surgiram então regras e taxas municipais e as conhecidas porém hoje obsoletas placas metálicas “É proibido fixar anúncios nesta propriedade”. Já em 1887, com a sua providencial verve, Rafael Bordallo Pinheiro não perdera a oportunidade de parodiar o Parlamento com um falso anúncio à “melhor fábrica de bolacha nacional” numa dupla página d’Os Pontos nos is. Jornais e publicidade iriam evoluir a par e passo, e a imprensa diária receberia, nos inícios do novo século, “a confiança dos anunciantes como suporte publicitário privilegiado” (I, p. 321).

Ainda assim, sublinha Eduardo Cintra Torres, “em todos os ramos, profissionais e criativos, a publicidade portuguesa foi acompanhando as tendências internacionais, embora sofrendo sempre da inevitável pequenez e do retardamento do mercado, da indústria, da economia em geral, do nível médio cultural e do próprio universo publicitário profissional” (I, p. 330). Não é de admirar, por isso, que o país tenha estado sempre longe dos debates sobre a “publicidade científica” e o seu ensino. “À parte destes dois homens [Caldevilla e Leal da Câmara, ambos nascidos em 1867], não existem sinais de renovação da prática sistemática e da teoria publicitária antes de 1913” (I, p. 350), e o autor vê neles dois importantes precursores, no caricaturista “o primeiro conferencista português sobre publicidade” (Torres Novas, 16 de novembro de 1913) e no cineasta “o mais importante publicitário português das primeiras décadas do século XX (I, p. 362).

Depois deles, “as reflexões teóricas ou teorizantes em Portugal são esparsas e muito limitadas em quantidade, qualidade e inovação, quando comparadas com a produção em países como os Estados Unidos e a França” (I, p. 373). Será preciso esperar até 1954 pelos Elementos de Psicotecnia e Sociotecnia Publicitárias de A. dAraújo Pereira, “um manual de surpreendente qualidade” (I, p. 394). Em contrapartida, tivemos excelentes artistas como, por exemplo, Emmerico Nunes (1888-1968), cuja série de anúncios para a Gillette nos anos 1920 — tão cheios de humor e alegria! — merecia maior presença nesta História Ilustrada da Publicidade em Portugal (apenas um anúncio: II, p. 109), e José Rocha (1907-82), esplêndido de modernidade no cartaz de 1935 para o semanário Bandarra (II, p. 127). Agências pequenas, quase efémeras — “modestos escritórios” na expressão de Thomaz de Mello — deixaram pouco rasto, e há ainda um longo trabalho de pesquisa por fazer num denso emaranhado de nomes, siglas e protagonistas, tanto em Lisboa como no Porto: “Aparecem nomes de que não encontramos rasto”, diz Cintra Torres à p. 463, depois de percorrer alguns dos estúdios e agências ativos dos anos 20 a 50.

Tão-pouco há um “estudo sistemático da publicidade cinematográfica portuguesa” e “a produção de filmes publicitários em Portugal até à década de 60 é um mundo por desbravar” (I, pp. 463, 475). Manoel de Oliveira fez um em 1938, para a Ford: Já se Fabricam Automóveis em Portugal, duas décadas depois de Caldevilla ter realizado Um Chá nas Nuvens, para as Bolachas Invictas — a escalada ao cume da Torre dos Clérigos por dois operários espanhóis que reparavam pára-raios —, ao mesmo que fazia imprimir um cartaz de 145 x 91 cm para promoção da Petit Beure, “um dos mais modernos que se fizeram em Portugal até então” (II, p. 108).

Literatura, arte, política e publicidade haveriam de ter diferentes conjugações ao longo do século, com destacados escritores neo-realistas a trabalharem em agências: “Era, portanto, uma atividade intelectual paradoxal, dividida entre a militância para derrubar o capitalismo e a criação do símbolo máximo da cultura capitalista, a publicidade. Esta prática profissional aumentará a partir dos anos 50 e até depois de 1974” (I, p. 576). A década de 1960 será “o início da era gloriosa das agências de publicidade em Portugal, em quantidade, profissionalismo, associativismo, internacionalização e amplitude do seu impacto” e até ao final do milénio elas “foram o principal motor da actividade publicitária em Portugal, em linha com o que sucedia nos países desenvolvidos” (I, p. 715). Os serviços de publicidade internos às grandes empresas passavam para agências, por vezes de “serviço completo”, e o “anunciante metediço” (sic) foi sendo amansado. O global advertising teve o seu apogeu aquando da entrada de Portugal na CEE, em 1985, e reduzidas que foram as margens para criatividade própria, resistências locais também quebraram inevitavelmente, apesar dos benefícios oferecidos em contrapartida pelo global estado da arte. Poetas, jornalistas e cineastas, além de artistas gráficos, foram saindo das agências para instauração da figura do publicitário ele-mesmo, formado em escolas da especialidade, como o IADE e a ESCS. Eduardo Cintra Torres desenvolve extenso inquérito a este mundo em mudança rápida, num livro que se tornará certamente uma obra de referência e de estudo aprofundado. Para o ser da melhor maneira possível, falta-lhe claramente um índice onomástico e analítico — ausência que não se aceita nem perdoa, e que autor e editor seguramente resolverão numa segunda edição.

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