Nascida em Zurique em 1940, Fleur Jaeggy viria a publicar oito livros entre 1968 e 2014. A obra, curta, marca pela intensidade, pelo tom incisivo da prosa, por uma crueza permanente que nunca a larga. Este Felizes Anos de Castigo foi publicado pela primeira vez em 1980, e logo aí recebeu os prémios Bagutta, Speciale Rapallo, Boccaccio Europa e John Florio. É a primeira vez que a autora é publicada em Portugal, com selo da Alfaguara e tradução de Ana Cláudia Santos.

Felizes Anos de Castigo só tem prosa sem gordura. Numa narrativa curta, a narradora, que está num colégio interno suíço nos anos 1950, conhece outra rapariga. Assim que a vê, é atingida pela flecha – em causa está alguém diferente de todas as outras pessoas, sofisticada, distante, quase ausente. Forma-se uma ligação de sombras, em que as palavras se pesam, as reacções também, em que tudo é jogo – e com isso é subtileza. Francesca chega ao colégio e para a narradora sobra o fascínio de alguém que lhe dá uma sensação de frémito.

A narrativa versa sobre uma relação que vai tendo um tom de gato e rato. Há, permanentemente, um olhar que vai ao osso. Não é que haja um enredo claro, pelo contrário. Em vez disso, temos o tom enevoado da memória, uns pontos aqui e ali atados mais pela sensação do que pela lógica dos elementos concatenados de forma cronológica. Assim, ao longo da leitura, destaca-se o olhar, e é na delicadeza que o compõe que Jaeggy triunfa tão completamente. Não há parágrafos inúteis, todos compõem a personagem na sua dimensão emocional e psicológica. Até o que parece circunstancial, quase frívolo, existe para que se reproduza no leitor o que se produz na narradora. Assim, parece haver uma ausência de camadas entre texto e leitor.

Ao mesmo tempo, assim que se começa a leitura, há uma sensação de mergulho. Tal não acontece por acaso, antes pela opção técnica de secar o que há à volta, de fazer fluir o texto de sensação em sensação, mesmo que isto, por vezes, possa não dar ao leitor as respostas que este busca. Ao longo do romance, percebe-se o contexto, mas atenta-se na vida. Estamos no período do pós-guerra (segunda guerra mundial), mas o leitor só tem acesso a isso por pequenos apontamentos, ainda que nunca perca o panorama de vista. Mas não há a tentação, que seria escusada, de atar as pontas, de blindar a narrativa, de deixar tudo explicadinho – e é isso que dá azo a que a narrativa, tal como é proposta, possa voar. É que, em vez de se voltar para o ano vivido, para a década vivida, a autora volta-se para o lugar quase intemporal da memória. Apresenta-a como coisa subtil e rigorosa ao mesmo tempo, quase indiferente ao tempo.

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Título: “Felizes anos de castigo”
Autora: Fleur Jaeggy
Tradução: Ana Cláudia Santos

Editora: Alfaguara
Páginas: 112

Dada a paixão latente, que se vai fazendo em sofrimento, até porque a não-concretização, as meias-palavras, o disfarce, já impõem a angústia, o próprio decorrer da vida aparece como violência, como é violento o tom melancólico de quem enfrenta a efemeridade do que quer manter. A protagonista olha para Francesca com a devoção de quem quer guardá-la num frasco, mas já se intui que o que ali está é a cristalização da memória. Há a esperança de um amor jovem, que aparece no texto ao mesmo tempo que a resignação de uma adulta. E nisto surge a escrita como forma de prender alguém num livro, de guardar a fórmula de uma sensação, de não aceitar a volatilidade dos dias, de recusar o cinismo da resignação.

O sofrimento dramático da juventude aparece em pequenos apontamentos – Frédérique torna-se mais distante a cada dia, a narradora fica longe dela, noutra turma, por uma questão de poucos meses, o que lhe parece a distância de uma geração. Com isto, surge a frustração de não se agarrar o que se quer: “Começara a ser malcriada porque Frédérique me escapava e tinha de a conquistar, porque seria demasiado humilhante perder” (p. 15), pode ler-se. Com traços incisivos, a autora vai ao âmago da personagem, e com isso confessa tudo – a paixão e a frustração que daí advém; a vontade de dizer e o peso da confissão.

A relação entre as duas parece existir num lugar impreciso. A autora não detalha eventos, antes sensações. O leitor, sem outro remédio, sente e acredita no mesmo movimento, vendo-se perante uma dimensão que sabe a coisa imaterial:

Nunca se falou de amor, como, pelo contrário, é habitual no mundo. Mas tínhamos a certeza de que estava estabelecido, Nunca falámos de assuntos pessoais, da nossa família, de dinheiro, ou de sonhos.” (p. 48)

Nada disto faz falta na narrativa. Pelo contrário, são as ausências que a sublimam. Um pouco mais adiante, o leitor ver-se-á perante desencontros e encontros, e não os compreenderá. Se tal pode provocar a frustração em quem lê, não será de somenos acrescentar que o romance funciona como registo pontual de uma relação, e das cinzas que esta deixa na vida que vem depois, concluindo-se que das cinzas não se faz nada de concreto.

Não se lê Felizes Anos de Castigo sem se atentar na intensidade da prosa. Tudo é seco e directo. Em certos pontos, a narrativa chega a ser dilacerante. Vê-se a acção por duas lentes, uma que vê de perto, outra de longe, em simultâneo, e não há como criar um atalho quando se vê alguém que não sabe o que fazer com o que tem nas mãos. Se temos uma narradora, à altura da relação descrita, imatura, ainda a tactear a vida, temos também o seu olhar posterior, com alcance no passado, o que significa que a leitura implica os dois pontos de vista em simultâneo, conferindo-se uma visão caleidoscópica à acção. Enquanto se relata a vida de uma criança imatura, temos a dúvida da adulta já vivida, que vê a forma como, no passado, ignorou alguém só por amá-la:

E via Frédérique, sempre a mesma, sem falar com ninguém, isolada de todas nós, isolada do mundo, e tinha vontade de ir ao seu encontro, de lhe dizer que para mim era uma brincadeira, uma distração, que me deixasse brincar. Mal me tomavam estes pensamentos, fazia o contrário. Estaria a punir Frédérique pelo meu amor por ela?” (p. 70)

Finda a leitura, há uma sensação de abalo. Jaeggy não poupa os leitores. Dentro do colégio interno, há uma sensação de casulo – o que se passa lá fora, a vida, a morte, quase não existe. Por isso, sublimam-se os gestos, intensificam-se as sensações – as paixões. A chegada da idade adulta, ao implicar a ida para outro mundo que não aquele confinado, parece abrir possibilidades, mas, como o livro se foca nesta relação, não se entende bem o que é a vida para além do duo. Nem faz falta – importa apenas este poderoso registo da memória como coisa galopante a fazer-se arder a vida inteira.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia