Talvez o devesse ter designado como um dos livros do ano 2023, porque me parece — agora que o li e estudei — que a excelência deste Porto: Lojas de Outrora e de Agora dificilmente será suplantada, nos próximos anos, por qualquer outro inventário do comércio da cidade, ao mesmo tempo que deixa para trás Lojas de Tradição do Porto de Luís Manuel Vasconcelos e Carlos I. Medeiros, de 1993, os dois álbuns de Luís Aguiar Branco também publicados pela Afrontamento em 2009-10 (sem dúvida, um ótimo inventário de arquitetura com contexto histórico, mas na verdade sem pessoas dentro) e, ainda, Lojas do Porto: História e Identidade, com textos de Ricardo Valente e Helder Pacheco, feito há apenas seis anos (e pequeno catálogo duma exposição na Casa do Infante dedicada, em 2017, ao programa municipal Porto de Tradição, criado no ano anterior e correspondente ao lisboeta Lojas com História, de tão pouco efeito).

O livro tem uma elegância gráfica raras vezes alcançada por esta casa editorial (e não só…), para mais um design sem outro crédito autoral que o do departamento gráfico da Afrontamento, e as autoras Isabel Gomes e Rita Magalhães, nascidas em 1976 e 1974, assumem também o testemunho de uma nova geração e uma voz menos canónica ou oficiosa no que à história da cidade do Porto diz respeito — e bem sabemos quanto domínios de décadas ali pesam como granito.

Traz, portanto, também um cunho de renovação, que faz bem. Desde logo, não passa despercebida a quase ousadia de colocar na contracapa deste álbum cartonado um registo fotográfico da modesta, confusa, vivida oficina da Escovaria de Belomonte, de António da Silva (pp. 250-53), em contraponto à elegante fachada arte nova de Machado Joalheiro, na Rua 31 de Janeiro (pp. 218-23), que ocupa a capa e foi vezes sem conta vista no mais variado tipo de publicações. Essa afirmação distintiva do popular (e crente) numa cidade tradicionalmente vista como de artífices e comerciantes de elite e desde finais do século XIX ponta avançada duma indústria antiga de prestígio e dum retalho para burgueses e aristocratas abonados, só tem precedente no livro de Helder Pacheco Ó Meu Santo Protector: Santo António nas Lojas do Porto (Campo das Letras, 1999, 329 pp.) — ainda que não registado na bibliografia —, que é um levantamento dos altares, capelas e estatuetas do padroeiro no pequeno comércio urbano de tascos, adegas, mercearias, talhos, sapatarias, lojas de fazendas, drogarias, cordoarias, tanoarias, etc., cujos máximos expoentes são as suas capelas, velhas e bastante toscas por sinal, que o autor encontrou na mercearia de Maria Alice Lopes Ribeiro, à Rua das Antas, 62, e na de José Augusto Pereira, à Rua de Sobreiras, 566. Também Porto: Lojas de Outrora e de Agora dá atenção a essas pequenas lojas de bairro que hoje resistem à proliferação de centros comerciais, e têm por detrás dos balcões rostos sorridentes, conhecidos desde há muitos anos. É o caso de A Sementeira, na Rua Mouzinho da Silveira, 178 (pp. 264-67), da Casa das Velas de L. M. & Rocha, na Rua da Assunção, 43 (pp. 284-87), e da Sala Soleiro, na Rua Chã, 104-8 (pp. 214-17), cuja história — tantas vezes familiar, com alguma transgeracionalidade ainda possível — repercute sem dúvida uma personalidade urbana forte, que faz do comércio especializado uma forma de conservadorismo tão boa como qualquer outra.


Título: “Porto: Lojas de Outrora e de Agora”
Texto: Isabel Gomes
Fotografia: Rita Magalhães
Editora: Afrontamento
Páginas: 376

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A Casa Crocodilo, à Rua de Cimo da Vila, 63, à Batalha, tem como clientes habituais “sapateiros vindos de todo o país” (p. 201), mas qualquer um, indo lá, sabe que a qualidade de carteiras, cintos ou aventais de couro é um valor seguro e estimável. Quem precisa de botões dirige-se sem hesitar à Rua de Cedofeita, 23, onde a Botónia — Sousa & Lobo (v. pp. 326-29) lhe apresentará um sortido inimaginável de cores, tamanhos e feitios. Para ferragens, ferramentas, cutelarias e utilidades as mais variadas, o interior da  Carvalho, Batista & C.ª, à Rua do Almada, 79, fundada em 1953, fará lembrar as páginas de alguma enciclopédia francesa ou catálogos do tempo da revolução industrial. Para molduras, vale como nenhuma outra a Santos & Irmãos, à Travessa de Liceiras, 1, esquina com Rua do Bonjardim, onde ali perto encontramos O Pretinho do Japão, mercearia fina com bacalhaus à porta, conservas na vitrina e café pronto a moer ao balcão que, fundada em 1947, “serviu de escola a muitos balconistas da cidade” (p. 57).

Um mapa nas páginas iniciais representa a geografia concentrada deste comércio que vende tecidos, chapéus, mármores e granitos, rolhas, ouro e prata, livros novos e livros usados, brinquedos e virtualhas, mas também inclui restaurantes, barbearias, farmácias, vidrarias, tipografias, papelarias e, naturalmente, cafés e confeitarias que há no Porto — em beleza, número e dimensão — como em nenhuma outra cidade portuguesa: desde logo o Ateneia, à Praça da Liberdade, 57, fundado em 1932, e o Café Guarany, nos Aliados, 85-89, desde 1933 e reabilitado em 2003 pelos donos do mais que conhecido Majestic, mas também os igualmente requintados Ceuta e Aviz, nas discretas ruas dos mesmos nomes, um de 1953 (restaurado em 2021) e o outro de 1947, ou ainda o Âncora de Ouro (gravada no encosto das suas cadeiras do interior…), dito Piolho, na Praça de Parada Leitão, 45.

Além do mapa da cidade, há nove curtos roteiros que organizam ou propõem os devaneios urbanos, como “Da Batalha a São Bento”, “Das Flores à Ribeira”, “Da Praça de Carlos Alberto a Cedofeita”, sem esquecer obviamente “A Baixa, à volta do Bolhão” e “Do lado dos Clérigos, o ex-líbris do Porto”, mas também “Do lado oriental” e “Junto ao mar, na Foz”, onde são apresentados o Chalé Suisso e a Mercearia Augusto da Foz. Esta organização geográfica permitiu a Isabel Gomes contextualizar o surgimento destas lojas de outrora e de agora no próprio desenvolvimento da cidade, e referir-se a outro comércio de referência, como a Casa Oriental, junto à Torre dos Clérigos, ou os grandes Armazéns Cunhas, mais adiante, com o extraordinário pavão verde em alto-relevo no topo da sua extensa fachada art déco (p. 275), embora se possa fazer notar que se esqueceu, por exemplo, da Farmácia dos Clérigos, na homónima rua, porta 36, obra de Francisco Keil Amaral e o primeiro edifício em betão armado na cidade do Porto, da Camisaria Cunha, belo exemplar art déco na Rua 31 de Janeiro, 24, ou da Estácio, que Helder Pacheco um dia classificou como “verdadeira Lello e Majestic das Farmácias”.

A valorização do comércio antigo numa cidade, que este livro tão bem substancia e representa, tem hoje desafios enormes — gentrificação, concentração comercial e abandono da vocação por herdeiros —, que também passam pela sustentabilidade que lhe possa ser dada por velhos e novos clientes, que nos dias de amanhã queiram ser mais do que os lacrimejantes contestatários tardios de factos consumados, ainda que bastante previsíveis. Colocar o ónus desse resgate e desse conservadorismo diante de cada um é a boa maneira de testar a personalidade ou o carisma duma cidade, que é muito mais do que pode, quer e vale quem a governe num determinado momento, ainda que tal não seja de somenos, como Catarina Portas disse há dias, preto no branco, sobre Fernando Medina autarca de Lisboa. E nesse sentido, o Porto parece estar duplamente mais preparado para o que der e vier. Mas a ver vamos, claro.