O The Washington Post e a Forbes consideraram A Espera, de Keum Suk Gendry-Kim, a melhor novela gráfica do ano de 2023, e não é coisa para menos. O ponto de partida para A Espera é a vida dos familiares da autora, que era já adulta quando soube que a mãe fora separada da irmã durante a Guerra da Correia, que opôs a Coreia do Norte à Coreia do Sul entre 1950 e 1953, altura em que as tropas do norte invadiram o lado sul com o objectivo de unificarem a península. Guerra relativamente rápida para efeitos tão duradouros, que incluíram a morte de mais de 2,5 milhões de pessoas e que, para além das tropas dos dois lados, ainda contou com tropas chinesas, americanas e soviéticas. Após a guerra, a fronteira não teve alterações de fundo, mas ficou ainda mais acicatada a divisão entre os país.
A partir da descoberta sobre o passado da mãe, Gendry-Kim começou a entrevistar coreanos que haviam sido separados pela guerra, resultando esta investigação num livro que abre as janelas para um país. Desengane-se, contudo, quem for achar que o livro é um retrato intimista individual, ou o mergulho sentimental no passado familiar. Pegando nas estruturas e, sobretudo, nas desestruturações das famílias coreanas, Gendry-Kim vai mais longe, oferecendo ao leitor uma novela panorâmica.
Título: “A espera”
Autora: Keum Suk Gendry-Kim
Editora: Iguana
Tradução: Yun Jung Im
Páginas: 248
Aqui, temos a história de Gwijá. Aos 92 anos, vivendo na Coreia do Sul, não vê o filho há cerca de 70, depois de se ter separado dele numa coluna de refugiados que fugiam dos combates do norte da Coreia. Nesse mesmo momento, também perdeu o marido de vista, algures na multidão, depois de ter parado para amamentar a filha. No ponto inicial da narrativa, Jeong-Sun, amiga de Gwijá, acaba de reencontrar a irmã, de quem se tinha separado 68 anos antes, depois de os governos da Coreia do Sul e da Coreia do Norte terem organizado um encontro de famílias separadas pela guerra. É o décimo-primeiro encontro semelhante, e nasce então a esperança para Gwijá, agora que tem perto de si um exemplo de alguém para quem o reencontro foi possível, e isto apesar de a hipótese de ser seleccionada para o programa ser mais ou menos a mesma que encontrar uma agulha num palheiro.
A narrativa, assim, pega no presente da Coreia, maculado pelo passado, mostrando que o tempo não cura tudo. Ao longo do seu desfiar, percebe-se a nostalgia que fica, a tristeza também, e o pendor inconclusivo da vida que foi interrompida, dando ao leitor espaço para entrar nos traumas familiares. A guerra separara famílias e duas partes de um país: com uns familiares de um lado e outros do outro, a fronteira transformou-se numa barreira impossível de ser derrubada. As consequências da guerra são, assim, mais do que os cadáveres que vamos vendo em algumas páginas contundentes em que, num regresso ao passado, o livro mostra as longas filas de quem fugia à guerra e se habituava à morte e à miséria. É que se, de início, uma criança abandonada choca, um conjunto de cadáveres horripila, aos poucos a vontade de sobrevivência parece um impulso biológico capaz de secar tudo o que há à volta – importa isso e mais nada. Assim, é o próprio horror que se banaliza, basta ser visto várias vezes para que deixe de ter qualquer impacto carniceiro.
Com isto, a autora, usando uma estrutura narrativa magistral, vai usando analepses e prolepses para dar a quem lê um retrato panorâmico de um país em duas dimensões: por um lado, vêem-se as convulsões de grande dimensão, a guerra a acontecer; por outro, vê-se o seu efeito em cada rua, em cada casa. Muitas das histórias ficam por contar no seio da família, criando um jogo de sombras até nas relações entre mães e filhos: um filho conhece a mãe sem conhecê-la a sério. Em simultâneo, parecem estar sempre a esperança e a mágoa, e não se percebe bem para que lado mais vai pendendo a balança. O que se entende, ao longo da leitura, é que o impacto da Guerra da Coreia extrapolou em muito o seu tempo, ecoando por gerações. A dúvida alimenta o trauma, e o passado, ao invés de pedra sólida, é um elemento que não só polui mas também esvazia o presente. A passagem do tempo, ao invés de acalmar, vai trazendo um tom de desalento: se não agora, quando? As dúvidas sobre os possíveis reencontro deixam de ter grande margem de manobra, mas quem perdeu um filho só aguenta a vida se inventar a esperança mesmo no meio dos escombros. A Espera, por isso, mostra o que fica da guerra para lá do fim dos tiros e dos mortos, a consumição lenta que vai ardendo devagar a vida toda, depois de se terem perdido os núcleos, as certezas, as estruturas basilares da vida.
A referida estrutura entre analepses e prolepses vai alterando os ritmos do leitor, que se vê num relato emocionante e duro, não conseguindo acalmia em parte nenhuma da narrativa. Para isto, o aspecto gráfico muito ajuda: após episódios mais pungentes, a autora chega a pôr páginas ou quadros sem palavras, exigindo acção por parte do leitor, que não funciona aqui como mero depósito de informação. Pelo contrário, a estrutura da narrativa obriga à acção por parte do leitor, ainda que este não tenha dúvidas sobre, por exemplo, os estados de alma das personagens.
Em A Espera, a guerra tanto é pano de fundo como elemento interno da narrativa. Não serve só para situar ou contextualizar, sendo antes um elemento activo, indispensável à criação da novela gráfica. O grafismo de Gendry-Kim faz-se a preto e branco e toca no essencial, encontrando paralelismo na expressão da prosa. Aliando texto e imagem, a autora entrega ao leitor uma obra contundente.
A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico