É um acórdão que se lê como uma derrota para Ivo Rosa. A decisão, conhecida esta quinta-feira, do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) sobre o recurso do Ministério Público à decisão instrutória da Operação Marquês repôs grande parte dos crimes imputados a José Sócrates, Carlos Santos Silva, Ricardo Salgado e a 18 outros arguidos no processo.

José Sócrates vai ser julgado por três crimes de corrupção e mais 19 crimes

A deliberação do TRL reverte muitas das decisões tomadas em abril de 2021, com a instância a ficar do lado do Ministério Público (MP) em questões-chave do processo, rejeitando boa parte do argumentário do juiz de instrução que, há quase três anos, reduziu as 189 acusações do processo original a apenas 17. Depois desta quinta-feira, passam a ser 118 as acusações pronunciadas para julgamento.

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Agora, as três juízas desembargadoras a cargo do recurso consideraram que muitos dos “cortes” então feitos assentaram em excessos de atuação, erros de leitura e, em alguns casos, “candura” e “ingenuidade” por parte de Ivo Rosa – que é, de resto, alvo de várias críticas ao longo das mais de 600 páginas do acórdão.

Na base de muitas das apreciações do TRL está o que o tribunal entende como um extravasar de competências por parte do juiz de instrução — algo que foi argumentado pelo MP, que acusou Ivo Rosa de ir muito além da atuação que lhe competia, ao tecer considerações sobre a validade das provas apresentadas. Na página 53, o TRL afirma que o magistrado efetuou, aquando da decisão instrutória, “uma análise exaustiva da prova” que se afastou do objetivo da fase judicial em questão, “e realizou diligências típicas de um verdadeiro julgamento”.

Para as juízas desembargadoras, este comportamento foi duplamente prejudicial por, além de constituir um excesso de atuação, não ter em conta o facto de que Ivo Rosa não teve acesso a todas as provas produzidas pelo MP.

A Relação lembra as várias situações em que o juiz sustentou as suas posições única e exclusivamente com base nos depoimentos e declarações dos próprios arguidos. Chega mesmo a confessar alguma “estranheza” pela certeza de Ivo Rosa sobre o não-envolvimento de José Sócrates no alegado favorecimento ao Grupo Lena na adjudicação de contratos de construção.

O Sr. Juiz de instrução não ficou com dúvidas relativamente à intervenção do arguido. Não concluiu que, em face da prova produzida, os indícios não eram suficientes para afirmar a intervenção do arguido. Não. Peremptoriamente, afirmou que o arguido não teve qualquer intervenção nos actos em causa“, pode ler-se na página 293 do acórdão.

Ora, questionam-se as magistradas, “como pode o Sr. Juiz de instrução ter chegado à conclusão supra referida, relativa aos indícios, quando sustenta a sua decisão quase só nas declarações dos arguidos (salvo os casos de confissão, os arguidos, por regra, negam os factos que lhes são imputados)?”.

Este é, de resto, um dos erros de julgamento mais vezes apontados a Ivo Rosa por parte do TRL, que por várias vezes sublinha que “não haverá testemunha alguma (…) que venha relatar e confirmar, de forma directa, os factos que constam da acusação” — razão pela qual as justificações e garantias de arguidos como Carlos Santos Silva não seriam, por si só, suficientes para justificar um arquivamento das acusações.

A Relação chega mesmo a considerar que a atuação de Ivo Rosa na fase instrutória denota “uma certa candura/ingenuidade na apreciação dos indícios”, apontando como falível a insistência do magistrado na falta de documentação que comprova os alegados crimes. Diz o TRL que, “tratando-se de actos ilícitos, os mesmos não vêm escritos em documentos e, de forma usual, as testemunhas indicadas pelos arguidos não vêm trazer uma versão diferente da destes”.

Outro exemplo citado prende-se com os indícios de corrupção em torno de Ricardo Salgado e José Sócrates, que a Relação entende estar munida de “indícios mais do que suficientes para concluir pela pronúncia”. Chega mesmo a dizer que não compreende o “espanto” de Ivo Rosa ao não encontrar nenhuma prova nos extratos bancários do ex-primeiro-ministro. “Obviamente que não vamos encontrar prova directa dos factos”, sustenta.

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O “caminho do dinheiro” que Ivo Rosa não seguiu

Um dos pontos de discórdia centrais entre a apreciação das juízas desembargadoras e a do juiz de instrução prende-se com aquilo a que o acórdão se refere como “o caminho do dinheiro”, numa referência assumida à máxima “follow the money” popularizada por Carl Bernstein e Bob Woodward no decurso da série de reportagens jornalísticas do Washington Post que desencadeou o escândalo Watergate.

Em abril de 2021, o magistrado do Ticão (nome dado na gíria judicial ao Tribunal Central de Investigação Criminal) entendeu que os 34 milhões de euros descobertos numa conta na Suíça não pertenciam a José Sócrates e eram, isso sim, propriedade do amigo, o empresário Carlos Santos Silva, validando a versão dos “empréstimos” avançada pela defesa.

Neste acórdão, a questão nem sequer se coloca, sendo dado como certo que o montante pertencia a José Sócrates, baseando-se o TRL justamente na ideia do “caminho do dinheiro” para o justificar. Segundo o coletivo de juízas, a forma como o ex-primeiro-ministro dispunha do dinheiro que, alegadamente, pertencia ao amigo “é um indício fortíssimo de que, além daquele, existiria mais”, acresentando que “quem despende, por várias vezes, mais de €10.000 numa única compra de vestuário, sabe que depois deste valor, virá outro e outros”.

Neste sentido, por várias vezes a Relação aponta falhas a Ivo Rosa pela inabilidade em seguir o tal “caminho do dinheiro”. Exemplo é a conclusão do magistrado de que não se poderia concluir cabalmente que a totalidade do dinheiro na conta bancária de Santos Silva pertencia a Sócrates, já que este usufruiu de “uma pequena parte” – cerca de 6 milhões de euros – do montante.

Uma conclusão que é rejeitada pelo TRL, que mais uma vez se apoia no padrão de gastos de Sócrates bem como na dimensão dos números. “Os valores em causa nestes autos são de uma ordem de grandeza tal, que qualquer regra da experiência que fosse chamada à colação era considerada desajustada”, pode ler-se.

Ao longo da deliberação, são ainda apontados vários “lapsos” cometidos por Rosa na sua decisão instrutória, que a Relação de Lisboa utiliza em alguns momentos para justificar a reversão das decisões tomadas. Exemplos incluem a asserção da possibilidade de uma operação de “varrimento eletrónico” na produção de provas eletrónicas por parte do MP – diz o TRL que “tratou-se de um lapso, nunca foi usado o varrimento eletrónico”, lê-se no documento, um de vários equívocos lógicos e processuais apontados à decisão instrutória.