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Souto de Moura entra no Rachadouro

A reabilitação de um espaço — mas degradado — nobre do Mosteiro de Alcobaça tem o respetivo processo documentado num livro feito de texto e portfólio fotográfico, integrado numa pertinente coleção.

As instalações monásticas devolutas — como tantas outras, pelo país — haveriam de ser "adaptadas a finalidades diversificadas, sem consciência da sua importância patrimonial e sem critério, devido à deficiente cultura arquitectónica existente"
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As instalações monásticas devolutas — como tantas outras, pelo país — haveriam de ser "adaptadas a finalidades diversificadas, sem consciência da sua importância patrimonial e sem critério, devido à deficiente cultura arquitectónica existente"

As instalações monásticas devolutas — como tantas outras, pelo país — haveriam de ser "adaptadas a finalidades diversificadas, sem consciência da sua importância patrimonial e sem critério, devido à deficiente cultura arquitectónica existente"

Reabilitar edifícios históricos para funções de hotelaria e turismo tem sido um bom campo de trabalho para arquitetos de nomeada, pois essa assinatura dá a esses novos empreendimentos um carimbo de notoriedade com valor comercial específico. Todavia, a equação parece perversa porquanto faltará verificar, na obra feita — e que fica para durar… —, se ao nome no anúncio imobiliário corresponde um valor assim tão elevado. Opiniões divergirão naturalmente, e o trabalho feito hoje também ganha em ser visto em perspetiva, face ao sucesso ou fracasso de intervenções anteriores dos mesmos arquitetos em edifícios de iguais ou próximas natureza, estrutura e dimensão, como é bem o caso, obviamente, do convento das Bernardas em Tavira, convertido por Eduardo Souto de Moura num apart-hotel em 2012.

Em todo o caso, reabilitação ou refundação serão sempre um complexo processo criativo que importa documentar, e é isso mesmo que a editora de Nuno Miguel Borges tem feito ao longo dos anos, acompanhando os processos construtivos desde os primeiros esquissos até aos retoques finais, em particular com um fotógrafo escolhido que visita a obra durante meses, uma longa entrevista ao arquiteto e um ensaio alusivo, por autores de referência, portugueses e estrangeiros. Sucedeu assim, entre outros, com o Terminal de Cruzeiros de Lisboa (Carrilho da Graça, 2019) e com as Termas Romanas de São Pedro do Sul (João Mendes Ribeiro, 2021) e sucede já — para sair em 2024 — com o Mercado do Bolhão (Nuno Valentim, fotos de André Cepeda) e com o Parque Terra Nostra, na ilha de São Miguel (Pedro Maurício Borges, com um exuberantíssimo ensaio fotográfico de António Júlio Duarte). No limitado campo da edição portuguesa de arquitetura (ainda que em notória expansão, que conviria fazer notar, pela importância que tem), o projeto NMB é seguramente um dos mais interessantes, sobretudo se conseguir afirmar-se pelo tempo adiante, acumulando um inventário de intervenções de médio e grande impacto que marcam o nosso tempo, a nossa mais próxima contemporaneidade.


Título: “Claustro do Rachadouro, Mosteiro de Alcobaça. Eduardo Souto de Moura com Luís Peixoto”
Autores: Francisco Pato de Macedo, José María Sánchez García
Fotografia: André Príncipe

Desenhos: Luís Peixoto
Design: Carvalho Bernau
Editor: NMB
Páginas: 247, edição bilíngue

O lançamento da primeira pedra do Mosteiro de Alcobaça ocorreu em 1178, ainda, portanto, no reinado de D. Afonso Henriques, num “terreno baixo e aplainado, envolvido por linhas de água, distante algumas centenas de metros do primitivo assentamento” cisterciense (p. 9), mas o processo de construção foi bastante longo, atendendo — é fácil de ver — às enormes dimensões do complexo, mas também devido a destruições e atrasos resultantes da investida dos muçulmanos em 1195. Historiadores reconheceram sucessivas campanhas de obras a partir da identificação de “diferentes tipologias de pilares, de muros, de contrafortes, de capitéis e também, de entre outros elementos, das mísulas” dos doze pares de pilares da nave central (Macedo, p. 11). A trasladação dos despojos da rainha D. Inês de Castro para o seu sarcófago alcobacense deu-se em 1361, reforçando o Mosteiro como “o segundo panteão dinástico da monarquia portuguesa” (p. 13), quando a igreja, “pela inovação e arrojo”, era já tida como “uma obra-prima da arte gótica cisterciense, rodeada de dependências monásticas anexas que se lhe podem equiparar”. O claustro gótico “é o maior dos construídos até então em Portugal e um dos maiores da Ordem de Cister no espaço europeu” (p. 15). “No scriptorium, laboraram notáveis calígrafos e iluminadores, responsáveis pela elaboração de um número elevado de códices, muitos deles com iluminuras” (p. 20), formando hoje um fundo próprio na Biblioteca Nacional. A história do Mosteiro foi-se fazendo, ao longo dos séculos, “paredes meias” com as da ordem religiosa e da nação portuguesa  — “o cenóbio alcobacense, cada vez mais dependente de Roma em detrimento de Claraval, não escapou à ingerência externa” (p. 19) —, até que o complexo edificado foi acrescentado em larga escala, para hospedaria e oficinas do mais variado tipo.

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“Este corpo de grande dimensão, com amplos corredores abobadados para onde se abriam as celas dos monges, delimitou a norte o espaço de um novo [e quinto] claustro, denominado do Rachadouro ou da Biblioteca” (p. 24). Maior que os precedentes e aberto ao exterior, ainda menos investido artisticamente que eles, estava “meio edificado” em 1716, porém a sua construção arrastou-se, diz Fernando Pato de Macedo, até ao fim do século ou “mesmo já primeiro quartel do século XIX” (p. 25). Pitt em 1760, Murphy em 1789 e Beckford em 1794 deixaram relatos vívidos da sua passagem por Alcobaça, hoje disponíveis em edições portuguesas dos seus livros, verdadeiras obras de referência da literatura de viagens em Portugal. O riquíssimo acervo da biblioteca — “uma das mais importantes do país” (p. 26) — teria, enfim, instalações à sua altura na ala sul do Claustro do Rachadouro: um imponente salão de 48 x 13 m, com 22 grandes janelões virados a sul, quer ao nível do solo quer sobre um varandim de madeira trabalhada a meia altura das quatro paredes, e um belo “pavimento em tapete de motivos geométricos pétreos de calcário, mármore e lioz, de cores rosa, branco, preto e amarelo, idêntico ao da excepcional biblioteca barroca do Convento de Mafra” (p. 27). As janelas da biblioteca — como sempre convém, e os monges sabiam-no desde cedo — davam vistas para jardins adjacentes, o Jardim do Obelisco e o Jardim das Murtas. Além disso, “a fachada palaciana e imponente do corpo da biblioteca […] abre-se para o amplo espaço natural da cerca monástica” (pp. 27-28), com um propositado efeito cenográfico.

É neste bloco do complexo monástico que se deu a intervenção arquitetónica da Eduardo Souto de Moura, reabilitando um espaço nobre em extensa degradação, como algumas fotografias de André Príncipe amargamente evidenciam. A invasão napoleónica de 1811, a fuga dos monges miguelistas em 1833 e a extinção das ordens religiosas no ano seguinte foram o primeiro de muitos infortúnios, pois as instalações monásticas devolutas — como tantas outras, pelo país — haveriam de ser “adaptadas a finalidades diversificadas, sem consciência da sua importância patrimonial e sem critério, devido à deficiente cultura arquitectónica existente” (pp. 29-30). A inscrição do Real Mosteiro Cisterciense de Santa Maria de Alcobaça como Património Mundial da UNESCO em 1989, e a edição do estudo clássico de Artur Nobre de Gusmão três anos depois (1992 — e desde então nunca reimpresso!), terão valido muito pouco: quando o arquiteto lá foi pela primeira vez, encontrou o Claustro do Rachadouro “muito degradado, uma trapalhada”, “um descalabro, […] uma barbaridade de betão” (pp. 65, 66, 72).

A entrevista do arquiteto ao editor é, aliás, bastante elucidativa da grande liberdade de intervenção que Souto de Moura reclama para si — “Eu uso as obras como laboratório”, “esta coisa da Carta de Veneza [1964] de como se deve restaurar é completamente ridícula”, “Os mosteiros dão para tudo e podem dar para habitação” (p. 77), mas também isto: “não fui estudar a história de Alcobaça porque não resolvia os meus dramas” (p. 79) —, atribuindo-se um poder decisório que umas vezes se converte num “divertimento” intelectual de citações, ora mais ou menos dadivosas, ora mais ou menos irónicas, da história da arquitetura ela mesma, a par de um programa decorativo preventivamente garantido em contrato e centrado em obras de sua especial preferência (Ângelo de Sousa, Álvaro Lapa, Álvaro Siza Vieira; p. 86). Mas que, em obra, ainda deixa algum tempo e espaço para verificações e testes, por exemplo quanto à luminária: “A iluminação foi um golpe de asa, é dificílimo”, “Passei noites em Alcobaça a dizer: não é nada disto, as luzes estão muito brancas”, “Queria uma certa penumbra, por isso é que mandei instalar os reóstatos em todas as salas, para poder baixar a luz. Espero que continue a ser melancólico, como deve ser um mosteiro” (p. 85).

O portefólio fotográfico do estaleiro de obras incluído neste livro não pode deixar de inquietar os atuais clientes do hotel, ao percorrerem espaços outrora preenchidos por tubagens de colorações e finalidades as mais variadas, ou deleitando-se já na piscina-tanque interior que é um dos atrativos do empreendimento, lendo as explicações que Luís Peixoto dá em entrevista sobre como tudo aquilo foi feito e conseguido. Mais subtilmente, perceberá que por detrás de algum do mobiliário dos quartos desenhado por Álvaro Siza está a especial proximidade de Eduardo Souto de Moura ao seu mestre e vizinho, e que o consequente desconforto — também dito e repetido como “radicalismo” — encontra o mais conveniente respaldo no estoicismo monástico medieval, mesmo que o elevado preço a pagar no check-out justificasse outros comprazimentos, que os desenhos técnicos finais, aliás, pareciam prometer. A reabilitação do Claustro do Rachadouro do Mosteiro de Alcobaça é uma boa notícia: “o edifício a cair, uma história brutal”, reconhece Peixoto, na entrevista final (p. 166). “Il faut de tout pour faire un monde”, e é bem verdade. E é o que temos.

 
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