Em Cauterets, numa pequena comuna francesa nos Pirinéus, guardado a cinco cadeados, um cofre suíço de 29 toneladas guarda obras de Picasso, Rembrandt e Andy Warhol e outras de artistas como Andres Serrano, Santiago Sierra e Sarah Lucas. Mas podem desaparecer num ápice desde sexta-feira passada, se alguém não garantir, a cada 24 horas, que Julian Assange continua vivo.

No interior e à porta do cofre foram instaladas duas câmaras. Ambas estão prontas para começar a transmitir em direto para o Youtube esta terça-feira, quando começar a audiência em tribunal do criador da Wikileaks. O ativista, que está preso que se encontra na cadeia de alta segurança de Belmarsh, em Londres, tem dois dias para tentar pela última vez evitar uma ordem de extradição para os Estados Unidos, onde poderá incorrer numa pena de prisão que pode ir até aos 175 anos.

Em França, o artista russo dissidente Andrei Molodkin quer evitar que Assange morra na prisão. Para isso criou a “instalação-bomba” a que chamou Dead Man’s Switch (o interruptor do homem morto, em tradução livre): o tal cofre onde na sexta-feira fechou 16 obras de arte no valor de 40 milhões de dólares (mais de 37 milhões de euros), embaladas em caixas de madeira no cofre ao lado de dois barris brancos: um com um ácido em pó, outro com um catalisador, ligado a um interruptor que, se for ligado, provoca uma reação química que reduzirá a pó as caixas e as obras de arte.

O valioso património artístico joga o papel de “refém” em que Molodkin tenta negociar com Washington e tem como missão salvaguardar a vida de Assange. Se o ativista morrer na prisão, as obras de Picasso, Rembrandt e Andy Warhol, entre outros, serão destruidas, se o ativista for libertado, serão devolvidas aos proprietários que as “emprestaram” para o projeto do artista russo.

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O cofre foi trancado na sexta-feira e Molodkin tinha planos para o transferir do seu estúdio (The Foundry Studio) para um museu cujo nome não revela. Nesse dia foi também acionado o dispositivo que só será desligado se e quando Assange for libertado. Ou seja, Dead Man’s Switch existirá enquanto o ativista for vivo e estiver preso. Para evitar que o património artístico seja destruído não pode haver distrações ou esquecimentos:  “Alguém próximo” de Assange terá todos os dias de informar que o australiano está vivo, reiniciando-se a contagem decrescente, isto é, voltando assim o cronómetro ao zero.

Destruir a vida das pessoas não é nada, destruir arte é um enorme tabu

Em declarações ao The Guardian, Molodkin refere que a sua ação “não é ativismo”. O seu objetivo é lançar um alerta. “Destruir a vida das pessoas não significa nada, mas destruir a arte é um enorme tabu no mundo”, diz.

Julian Assange “está na prisão e a ser castigado porque expôs um super-poder”, diz Stella Assange

O artista russo, que conheceu Stella Assange, mulher do ativista e outros membros do WikiLeaks numa exposição, no ano passado, acredita na importância da liberdade de expressão e de informação.  Por ser dissidente russo acredita pela sua experiência na União Soviética “que permitir que as pessoas controlem a informação irá corrompê-las”, disse à revista New Yorker. “Tem que haver liberdade absoluta de informação e expressão em todos os momentos”, frisou. Assange é “um exemplo para todos do que acontece a uma pessoa que quer publicar algo que aqueles que estão no poder não gostam”.

O que fizeram sete anos de prisão à saúde de Julian Assange?

Molodkin refere-se ao processo que levou Assange à prisão e que começou em 2010 quando a Wikileaks divulgou documentos confidenciais sobre a atividade militar dos EUA no Iraque e no Afeganistão. O ativista teve de se refugiar na embaixada do Equador em Londres em 2012, onde permaneceu sete anos, depois de ter sido acusado de agressão sexual e de ser procurado por um mandado de detenção europeu. Só em 2019 viria a ser acusado de hacking pelos EUA, que posteriormente o acusaram de violar a lei da espionagem pelo seu envolvimento na divulgação de documentos militares e diplomáticos secretos no WikiLeaks.

Vivem da arte mas valorizam mais a liberdade: quem são os doadores das obras?

Andrei Molodkin a quem alguns autores e colecionadores cederam as obras, não as identificou publicamente. Apenas se sabe que para além de trabalhos do próprio artista russo, há quadros de Picasso, Rembrandt, Warhol, Jasper Johns, Jannis Kounellis, Robert Rauschenberg, Sarah Lucas, Santiago Sierra e de Jake Chapman. A arte guardada no cofre foi catalogada por Molodkin que enviou contratos e outros documentos que provam como é que a possui para a revista New Yorker sob um compromisso de confidencialidade,

Por não ser habitual os artistas e sobretudo os colecionadores de arte oferecerem arte para ser eventualmente destruída, o colecionador de arte italiano Giampaolo Abbondio que contribuiu para o projeto de Molodkin com uma obra de Picasso, demonstrou-se inicialmente relutante, acabando depois por mudar de ideias. “É mais relevante para o mundo ter um Assange do que mais um Picasso”, disse à Sky News.

Giampaolo tem esperanças de que a obra de Picasso lhe seja devolvida apesar de valer menos do que uma vida humana. “O Picasso pode valer entre 10 mil a 100 milhões [de dólares], mas não creio que seja o número de zeros que o torna mais relevante quando falamos de uma vida humana.”

O artista Franko B diz ter cedido uma das suas “melhores peças”. A obra que aborda a liberdade e a censura “é um pequeno gesto comparado com o que Assange fez e com o que ele está a passar”, disse também à Sky News.

Algumas vozes criticaram o risco real que as obras do Dead Man’s Switch — expressão inglesa para interruptor que aciona um dispositivo se o seu operador humano estiver morto — correm. Mas o autor do projeto diz que não há possibilidade de o ácido se libertar por acidente, porque o trabalho foi feito “de forma muito profissional”.

Contrastando com o sentimento de “alguns colecionadores” que “estão muito assustados” com a possibilidade de as 16 obras de arte serem destruídas, Molodkin insiste em frisar que não sentirá “nenhuma emoção” se isso acontecer. “A liberdade é muito mais importante”, disse à Sky News.

Texto editado por Dulce Neto