A vivência de Amílcar Cabral em Lisboa está a ser estudada pela investigadora Ângela Coutinho, para quem esta cidade proporcionou ao líder africano conhecimento científico, o convívio com anticolonialistas e futuros dirigentes em África e o amor da mulher.

Socióloga de formação e estudiosa do pensamento de Cabral há quase 30 anos, a luso-cabo-verdiana traçou uma espécie de “rota” sobre os locais de Lisboa mais representativos dos 14 anos em que o “pai” da independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau nela viveu.

A Lusa acompanhou a investigadora durante uma parte desta rota, que incluiu o Instituto Superior de Agronomia (ISA), onde Cabral se tornou agrónomo, uma formação determinante para a estratégia desenvolvida na luta pela libertação.

“Foi um passaporte importantíssimo para a vida dele. Sabemos que, depois de ter feito o recenseamento agrícola na Guiné-Bissau, foi uma oportunidade de ouro para identificar pessoas com as quais futuramente pudesse colaborar no movimento de libertação do jugo colonial”, disse.

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E acrescentou: “O Amílcar Cabral também viveu as grandes fomes da década de 40, durante a segunda guerra mundial”, durante as quais terá falecido 40% da população. “Ele vivenciou isso e fez muitas referências, nos seus discursos, ao facto de as pessoas morrerem à fome”.

Com uma formação em que se destacava, não só por ser o único estudante de pele negra, como pelas altas notas que obteve, Cabral concluiu a licenciatura com 15 valores, uma das mais altas classificações no ISA na altura.

Foi bolseiro da Casa dos Estudantes do Império (CEI) e é em frente ao edifício onde funcionou a sede desta organização para os estudantes das colónias portuguesas, na Avenida Duque d’Ávila, que Ângela Coutinho faz uma paragem para contar como “este espaço foi fulcral” para a sua formação política.

Foi igualmente importante para uma tomada de consciência entre estes estudantes “das realidades dos respetivos territórios, na altura colonizados, e que se tornaram países”.

“Nessa década de 1940 conheceram-se Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Alda do Espírito Santo, Marcelino dos Santos, Mário Pinto de Andrade e até mesmo, a dada altura, Eduardo Mondlane e muitos outros e estamos a falar dos que foram os principais dirigentes dos movimentos de libertação que conseguiram vencer as guerras e subir ao poder, no pós-independência, em Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau e Cabo Verde”, disse.

Apesar do que os unia — a luta anticolonialista — este não era assunto discutido na CEI, pois “os estudantes eram vigiados pela PIDE“.

“Isso aconteceu numa outra casa em Lisboa, alugada pela família são-tomense Espírito Santo, na Rua Ator Vale. Aí sim, a partir de 1951 — Amílcar Cabral pode participar durante um ano — organizaram conferências mensais sobre a realidade profunda desses territórios e as diferentes formas de subjugação dessas populações”.

Não muito longe do edifício da CEI, que sofreu várias ampliações, fica outro local emblemático da vivência de Cabral em Lisboa, nomeadamente no segundo andar do número 90 da Rua Barbosa do Bocage, onde Cabral viveu com a primeira mulher, Maria Helena.

“Foi onde Amílcar Cabral viveu com a sua primeira esposa, Maria Helena de Ataíde Vilhena Rodrigues, uma colega, engenheira agrónoma, que estudou também no Instituto de Agronomia, aqui em Lisboa, e eles vieram morar para aqui em 1952, no segundo andar direito. Depois disso, foram viver na Guiné, estiveram dois anos na Guiné-Bissau”, disse.

Em 1951, quando se casou, Cabral era já engenheiro agrónomo. Tornou-se investigador, mas sempre ligado ao ISA.

Em Lisboa, “foi sempre muito ligado ao desporto, fazia parte da equipa de futebol do Instituto Superior de Agronomia, na CEI também, estava empenhado nas conferências privadas com estudantes de outras colónias de então sobre a realidade desses territórios, tinha sido um dos dirigentes da CEI, era interessado na poesia, na escrita literária, dirigiu uma das revistas fundadas nessa casa, muito envolvido na sociedade portuguesa, foi convidado para ser jogador no Benfica“.

E apaixonado por Maria Helena, “uma senhora da elite portuguesa, que estudou no Colégio de Odivelas, filha de um capitão médico transmontano e a mãe descendia da antiga nobreza”.

“Foi uma companheira excecional de Amílcar Cabral. Apoiou-o em tudo. Foi ter com ele a Conacri quando ele fundou a sede do PAIGC e sabe-se que deu aulas no liceu e ajudou a sustentar o escritório quando ele passou a dedicar-se inteiramente à atividade política”, observou.

“A Lena, como ele lhe chamava, foi uma companheira de todas as horas. Sabe-se que era um casal que se dava muito bem”.

Após três décadas a estudar o pensamento de Cabral, cujo centenário do nascimento se assinala em setembro deste ano, Ângela Coutinho acredita que ainda há muito para descobrir sobre o pensamento deste líder.

A investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) da Universidade Nova de Lisboa, que colabora com a Fundação Amílcar Cabral, em Cabo Verde, descobriu, por exemplo, que o relacionamento de Cabral com os angolanos foi maior do que o que inicialmente se julgava.