Podia não ter nascido, caso o seu pai não tivesse escapado a um naufrágio quando era novo. Podia não ter sido padre, quando já no seminário conheceu uma rapariga que o fez “perder a cabeça”. O seu filme preferido é o La Strada, do Fellini. Diz que “falar dos pobres não significa automaticamente ser comunista”. Pede aos jovens para “fazerem barulho” pelo planeta. Ah, e desmente os rumores sobre a sua eventual renúncia — “ainda há muitos projetos para fazer”.

Assim se podem resumir as principais revelações do novo livro do Papa Francisco. Uma autobiografia da qual o jornal italiano Corriere della Sera avançou esta quinta-feira algumas passagens. O líder da Igreja Católica relata a infância na Argentina, os namoros de juventude, a sua posição na ditadura militar e, claro, faz um testemunho do seu papado. “Life. A minha história na História” é editado pela Harper Collins e tem lançamento previsto já para a primavera.

Do neorrealismo italiano aos panfletos comunistas

Jorge Bergoglio já nasceu cidadão argentino, mas a sua língua franca é o dialeto piemontese. Os seus avós, oriundos do norte de Itália, emigraram para a Argentina com o pai do agora Papa no final dos anos 20. Mas, quis o destino que, quando tentava viajar no navio “Princesa Mafalda”, o avô Giovanni não chegasse a tempo de comprar os bilhetes — é que, antes de chegar ao Brasil, a embarcação naufragou e morreram os 300 passageiros a bordo. Só dois anos mais tarde a família Bergoglio chegou a Argentina. Em 1936, em Buenos Aires, nasceu o futuro líder da Igreja Católica.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O Papa Francisco era ainda uma criança no final da Segunda Guerra Mundial, mas lembra as tardes passadas no cinema com os pais. Dos filmes que o marcaram, destaca o Roma, Cittá Aperta (1945), do Rossellini — “uma obra-prima”. Mas também I Bambini Ci Guardano (1943), de Vittorio De Sica, ou La Strada (1954), do Federico Fellini. “O filme que mais gostei e que mais vi”, conta. Enfim, todo o neorrealismo italiano emergente no pós-guerra — “vi-os a todos”!

Já nos Salesianos, testemunhou a guerra nuclear e a destruição de Hiroshima e Nagazaki. Ao entrar no seminário, pediu para ser missionário no Japão, mas a sua saúde “um pouco precária” não o permitiu. “Se me tivessem mandado em missão para aquela terra, a minha vida teria seguido um caminho diferente; e talvez alguns no Vaticano estivessem melhor do que agora”, ironiza sobre os muitos críticos que entretanto criou.

Mas foi na escola que recebeu a sua formação política: a professora Esther, “uma comunista verdadeira, ateia mas respeitadora”. Foi ela quem o ensinou sobre política e quem lhe dava para ler várias publicações, nomeadamente a do partido comunista argentino, Nuestra Palabra. “Devo-lhe mesmo muito”, conta Francisco.

Aliás, o Papa recorda como, depois da sua eleição, alguém disse que o motivo por que falava dos pobres era por ele mesmo ser “um comunista ou um marxista”. Porém, para o jesuíta, “não é comunista quem se preocupa com os que têm menos”: “Os pobres são a bandeira do Evangelho e estão no coração de Jesus!”

“Por uma semana tive a sua imagem sempre na minha cabeça e foi-me difícil conseguir rezar”

Francisco conta que por duas vezes esteve perto de seguir uma vida leiga. A culpa foi das mulheres.

A primeira namorada, “uma rapariga muito doce”, trabalhava no cinema.

Depois, no casamento de um tio, ficou “deslumbrado com uma rapariga”. “Fez-me perder a cabeça”, conta, “pela sua beleza e inteligência”. Durante uma semana não pensou noutra coisa: “Tive a sua imagem sempre na minha cabeça e foi-me difícil conseguir rezar”. Mas “por sorte passou” e assim se dedicou à sua vocação.

A ditadura militar e um desterro napoleónico

Jorge Bergoglio já era padre quando se instalou a violenta ditadura militar na Argentina. Na sua autobiografia, recorda os mais de 20 seminaristas com quem vivia e lembra o caso particular de um rapaz que precisava de fugir do país. “Reparei que era parecido comigo”, conta, “e consegui fazê-lo fugir vestido à padre e com o meu bilhete de identidade”. Francisco acredita ter arriscado muito dessa vez: “Se me tivessem descoberto, sem qualquer dúvida tê-lo-iam morto e depois viriam à minha procura”.

Depois de muitos esforços, Bergoglio conseguiu libertar e ajudar a fugir da Argentina os dois jesuítas que tinham sido expulsos da Companhia e presos pelo regime, mas já não chegou a tempo de salvar a sua antiga professora Esther. “Foi um genocídio geracional”.

Pouco tempo depois do fim da ditadura e do início do período peronista na Argentina, o atual pontífice começou a receber as acusações de cumplicidade com o regime. “Foi a vingança de um qualquer esquerdista que até sabia o quanto me opunha àquela atrocidade”.

Mas se as acusações contra Francisco duraram até 2010, foi nos anos 90 que foi destacado para Córdova, enquanto diretor espiritual da Companhia de Jesus. Acordava às 4h30, rezava, tomava banho em comum com outros e vivia na pequena cela n.º5. A sua missão era cuidar dos doentes, lavá-los e fazer-lhes companhia. O “serviço aos mais frágeis, aos mais pobres” — é este o papel que considera caber em especial à Igreja.

A dedicação ao serviço em Córdova, percepcionado como um exílio por punição, valeu ao Santo Padre comentários de outros jesuítas: “o Bergoglio é louco”, diziam. Mas Francisco considera ter sido um “período de purificação” — “era muito fechado em mim próprio, um pouco depressivo”, lembra.

O aborto, a homossexualidade, o ambientalismo e o populismo na Europa

Há temas em que o Papa, criticado por ser mais progressista, mantém a posição ortodoxa da Igreja. É o caso do aborto, que Francisco considera “um homicídio”. “Devemos sempre defender a vida humana, da concepção até à morte”, diz. Defende a objeção de consciência dos médicos e condena também as “barriga de aluguer”, uma “prática desumana” que “mina a dignidade do homem da mulher”, por tratar as crianças como “mercadoria”.

Porém, noutro tópico polémico dentro do catolicismo, o Papa tem apelado à abertura da Igreja. Sobre a inclusão de homossexuais dentro da Fé Católica, o líder do Vaticano diz imaginar uma “Igreja mãe, que abrace e acolha todos”. “Penso nas pessoas homossexuais ou transexuais que procuram o Senhor e que, em vez disso, foram rejeitadas e afastadas”, conta Francisco na sua autobiografia. Apesar de não defender a possibilidade do casamento católico entre pessoas do mesmo género, é favorável à união civil, por ser “justo” que “estas pessoas que vivem o dom do amor” o possam fazer dentro de uma cobertura legal. “Jesus andava ao encontro das pessoas que viviam à margem e é isso que a Igreja deve fazer hoje com as pessoas da comunidade LGBTQ+”.

No livro, o Papa Francisco apela ainda à “defesa da paz, do trabalho, contra os comerciantes de armas e os excessos das finanças”. Por isso mesmo procura promover uma “tutela da criação”, alertando que “não sobra muito tempo para salvar o planeta” e convidando os jovens a “fazerem barulho” pela causa ambiental — isto, claro, sem recurso à violência e sem “deturpar a obra de arte”, numa alusão às atuais manifestações que visaram quadros famosos e outras obras.

Também conhecido pelo seu envolvimento na política internacional, Francisco não se coíbe de falar sobre os males que assolam a Europa. Na sua autobiografia, conta que escolheu ir à Hungria e falar em Budapeste propositadamente, para que as suas palavras pudessem ser ouvidas por Viktor Órban, o primeiro-ministro húngaro, “para que perceba que há sempre necessidade de união” — deixando a nota a Bruxelas, “que parece querer uniformizar tudo”, que deve também “respeitar a singularidade húngara”.

A destruição do papado e os dois Papas

Será que o Papa presta atenção a tudo o que dizem e escrevem sobre ele? “Não”, diz no livro, sob pena de precisar de um psicólogo. Mas sobre aqueles que o acusam de estar a “destruir o papado”, Francisco lembra que no conclave de 2013 “havia uma grande vontade de mudar as coisas, de abandonar certos comportamentos que ainda hoje são difíceis de suprir. Há sempre quem queira evitar a reforma, que gostasse de ficar preso no tempo do Papa-rei”.

E apesar do contraste entre o seu papado e o de Bento XVI, as polémicas que os rondaram “fizeram mal aos dois”. Francisco condena a “instrumentalização com fins ideológicos” da figura do Ratzinger e lembra a sua primeira visita a Bento XVI, onde decidiram juntos que seria melhor que o emérito “não vivesse escondido, como tinha pensado inicialmente, mas que visse gente e participasse na vida da Igreja”.

Francisco respeita a escolha do seu predecessor e conta que tudo fez para evitar uma cisão na Igreja. Porém, não equaciona o mesmo caminho para si: “Penso que o ministério de Pedro seja ad vitam e por isso não vejo condições para uma renúncia”. A menos que as circunstâncias se alterem bastante, como seja o caso de “um grave impedimento físico”, afasta a hipótese do fim precoce do seu papado. “Graças ao Senhor tenho boa saúde e, se Deus quiser, ainda há muitos projetos para fazer”.

A autobiografia do Papa Francisco foi escrita em conjunto com Fabio Marchese Ragona e vai ser publicada em todo o mundo.