A presidente do Supremo Tribunal Administrativo (STA), Dulce Neto, apelou esta quinta-feira à “vontade política” para investir na resposta aos problemas da jurisdição administrativa e fiscal, lamentando a falta de ação do Estado nesta área da justiça.

“A crónica desatenção e o prolongado desinvestimento do Estado nestes tribunais tem inviabilizado o cumprimento do princípio constitucional a uma tutela jurisdicional efetiva, só alcançável quando tivermos meios para assegurar a prolação de todas as decisões em prazo razoável”, afirmou a juíza conselheira, ao notar que é aos tribunais administrativos e fiscais que cabe “proceder ao controlo da legalidade da atuação do Estado e demais entidades públicas”.

Numa intervenção na conferência “A Justiça antes e depois do 25 de Abril”, na Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa), no âmbito das comemorações dos 50 anos da Revolução, a magistrada destacou que os tribunais administrativos e fiscais são aqueles “em que o Estado (em sentido amplo) é sempre o réu”, pelo que são necessários meios para resolver “conflitos que, com frequência, se situam na seara dos direitos humanos e de direitos e liberdades fundamentais“.

Nesse sentido, vincou a importância de um novo ciclo político se traduzir também em mudanças no setor da jurisdição administrativa e fiscal, que vão desde a atribuição de dinheiro para a criação de gabinetes de apoio técnico e jurídico para os juízes até a questões procedimentais, como o novo sistema de distribuição eletrónica dos processos.

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“Haja, portanto, vontade política e coragem a nível orçamental no novo ciclo político que ora inicia para prosseguir com um investimento que terá de ir muito além da aposta na transição digital, resolvendo problemas tão pequenos mas relevantes como aqueles que se verificam na distribuição eletrónica dos processos por um algoritmo que o poder judicial desconhece e que, para além do tempo que consome a funcionários e magistrados, comete frequentemente erros crassos e inaceitáveis, quando não está mesmo inoperacional”, observa.

Apesar de ressalvar que as pendências têm diminuído e que o quadro de juízes tem crescido, assinalando ainda a existência de uma magistratura maioritariamente feminina — algo só possível após o 25 de Abril de 1974 —, Dulce Neto salientou o contributo que uma maior aposta nestes tribunais pode significar perante o “quadro de incerteza e instabilidade” da sociedade.

“A melhor forma de celebrar os 50 anos do 25 de Abril, no quadro de incerteza e instabilidade que a nossa sociedade atravessa, seria reforçar a atenção e o investimento nestes tribunais, sabido que neles irão desaguar, de forma crescente, novos e complexos litígios, seja no domínio de direitos fundamentais, seja no domínio de políticas e medidas públicas”, frisou, enumerando as questões ambientais, migratórias, digitais, de saúde ou de contratação pública.

Recordando que antes da Revolução de Abril, as portuguesas “tinham de pedir autorização ao marido para quase tudo”, como para trabalhar ou para viajar para o estrangeiro, a primeira mulher presidente de um supremo tribunal em Portugal lançou um alerta para cenários de possível retrocesso nos direitos das mulheres.

“Uma realidade que nos parece hoje inconcebível, mas que importa recordar num momento em que o mundo enfrenta perigosos retrocessos — mesmo em sociedades livres e em democracias consolidadas — com a proliferação de mensagens misóginas, discriminatórias e sexistas, alimentadas por retóricas populistas“, sentenciou.