Parar é um recurso como qualquer outro. À conversa com Joana Sá há umas semanas, ficou transparente que o seu mais recente projeto, A Body as Listening, está há anos a ser criado. Algures nesses anos, começou a materializar-se, a ter som-matéria, por assim dizer, mas a compositora sentiu necessidade de parar, por lhe faltar linguagem, isto é, sentia que “não tinha muito vocabulário para a minha forma de fazer música”. Resolve parar, transformar a música, o trabalho que estava a desenvolver, num doutoramento. Parou para aprender, para encaixar linguagem que pudesse usar e desenvolver no seu trabalho.

O resultado tem sido apresentado ao longo dos últimos meses, de diversas formas, porque A Body as Listening não é “só” música, não é “apenas” um álbum, é também um livro (A Body as Listening – Resonant Cartography of Music, publicado pelo Teatro Praga e Sistema Solar), uma instalação sonora (apresentada na última edição do Lisboa Soa), é um site, é uma conferência-performance e um concerto. O espectáculo já passou pela Culturgest, gnration e chega agora ao TAGV, em Coimbra, nesta quinta-feira, às 21h30.

“Penso sempre no espectáculos de forma autónoma do disco. Neste caso, é mais do que um espectáculo, o concerto está inserido num projeto maior. As partes do projeto são todas autónomas, mas complementares umas das outros, ainda que de formas diferentes. Há sempre coisas que existem num dos formatos e que não existem nos outros.” O concerto será, então, diferente daquilo que se ouve em A Body as Listening, o álbum, editado em janeiro pela Clean Feed. Mas faz parte do mesmo corpo de trabalho. Resumindo: da mesma ideia.

[um excerto de “A Body as Listening”:]

Antes de A Body As Listening, Joana Sá editou álbuns como Through This Looking Glass (Blinker, 2010) ou Elogio da Desordem (Shhpuma, 2013), registos que já desafiavam o que se pode considerar um status quo da linguagem da música contemporânea. Esse desafio está intrínseco ao meio que Joana Sá trabalha, contudo, há pouca tradição em Portugal, é um mercado pequeno e isso obriga a um esforço extra para fazer as coisas acontecer. Joana Sá reconhece “que é importante fazer cá e fazer para a comunidade”, porque esse ato de criar, mostrar, fazer acontecer, é alimento para outros criarem, mostrarem e fazerem acontecer. Tem de começar em algum lado.

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Não é que tenha começado com Joana Sá. Mas a sua música desempenha um papel fulcral em Portugal no género na atualidade. É música que puxa para a frente, que desafia, que contesta a norma e, mais importante, sabe juntar a academia à existência de um ouvinte do outro lado, que não precisa de estar alinhado com a pesquisa, com o que se está a fazer e pensar. Por outras palavras, é música que nos faz sentir em sincronia com o pensar.

Um bom exemplo encontra-se logo no primeira parte de A Body As Listening (o álbum), com a peça mais longa — dezassete minutos — que mistura piano, eletrónica contemporânea e a certa altura deixa-se povoar por fantasmas de György Ligeti para ganhar uma dimensão estrondosa, assustadora, maravilhosa. Leva-nos para outro lado, à medida que o som parece estar a ser empurrado e, nesse ato, crescesse em altura e em volume, nós, como ouvintes, também nos sentimos impactados, aterrorizados e, simultaneamente, cheios com esse som. Voltamos a ouvir ecos desses momentos no início da terceira parte, desta vez salta a imponência e instala-se o assombroso, como um barco a aproximar-se numa noite de névoa: nada tememos, sentimos que já passámos por isto e correu tudo bem. Nunca estamos desconfortáveis, porque Joana Sá nunca sai de rota e não nos deixa perdidos. Ao ouvir A Body as Listening está-nos também a ser dito para onde ir. Percebemos a linguagem. Está tudo certo.

[oulça “A Body as Listening” na íntegra através do Spotify:]

Quando Joana Sá voltou à peça – a propósito de um doutoramento, mas não só — fê-lo porque “aquilo era um lugar, um lugar que tinha ficado aberto”: “A dado momento, este era um trabalho muito pessoal, agora acho que passou para uma dimensão mais aberta, mais relacional. Passou de um trabalho musical e de procura artística para a questão da relação, do que é a alteridade”. Por isso, A Body as Listening tem todas estas dimensões, um projeto que não se multiplica noutros, mas cujas todas as partes fazem parte de um só, onde cada corpo de cada uma delas pode ser usufruído individualmente: dizem-nos diferentes coisas, fazem-nos pensar e sentir diferentes coisas.

Este é o trabalho maior de Joana Sá até à data. Para lá do lugar óbvio da sua dimensão, há a questão da realização, de como materializa o trabalho composicional e nos faz pensar para lá daquilo que ouvimos, seja no piano ou na eletrónica. Música desafiante que integra, que questiona aquilo que ouvimos, como percebemos o que ouvimos e como nos chega aquilo que ouvimos. Para isso é preciso estar de fora, parar. E, tal como Joana Sá parou, pausou, para mais tarde voltar a A Body as Listening com a linguagem na ponta da língua, pronta para nos ser comunicada, também nos cabe a nós parar e sentir este rio de som que se ouve de dentro para fora de um corpo. Ou será de fora para dentro? Cada um terá a sua forma de o sentir.