A coordenadora da comissão técnica independente (CTI) já o tinha dito publicamente. “Tivemos muitas pressões e muitos lobbies, mas do Governo nem uma pressão”, afirmou Rosário Partidário em dezembro quando apresentou o relatório preliminar para a solução aeroportuária de Lisboa.

Da leitura do relatório resultante da consulta pública que se seguiu, e da qual saiu o documento final entregue esta terça-feira ao Governo, é fácil inferir a origem de algumas dessas pressões e lobbies. No entanto, só um caso suscita um comentário prévio por parte da comissão técnica para assinalar o que qualifica de “ameaças e a pressão exercida sobre os trabalhos da CTI”. O destinatário é o consórcio promotor da solução de Santarém cuja pronúncia ao relatório preliminar e as respostas aos comentários e questões levantadas ocupa mais de um terço das cerca de 1300 páginas do relatório da consulta pública.

Nestes comentários prévios, a comissão técnica começa por indicar que a pronúncia de 291 páginas entregue pela Magellan 500 incidiu sobre “um conjunto delimitado de temas que foram repetidos até à exaustão, variando a formulação das questões”. E esclarece que respondeu da mesma forma ao mesmo tipo de comentários, “uma vez que o argumento da Magellan era quase sempre o mesmo já apresentado”.

Manifestando a opinião de que a abordagem seguida “demonstra uma leitura incompleta do relatório e da complexidade do problema”, é no parágrafo seguinte que o verniz estala.

“A CTI não pode deixar de manifestar o seu incómodo e desagrado com o tom agressivo, prepotente, desrespeitoso e, mesmo nalgumas partes, acintoso, utilizado pela Magellan 500 na sua pronúncia. A CTI não pode também deixar de assinalar as ameaças e a pressão exercida sobre os trabalhos da CTI”.

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Um tom forte que não tem paralelo nas respostas dadas a outras pronúncias, como por exemplo a da concessionária dos aeroportos (a qual tem 56 páginas). Isto, não obstante a posição da ANA (e sobretudo o poder que lhe é conferido pelo contrato de concessão) ter sido alvo de declarações mais duras por parte dos membros ligados à CTI e à respetiva comissão de acompanhamento.

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O consórcio que colocou Santarém no mapa do novo aeroporto é liderado por Carlos Brazão (ex-presidente da Cisco) e juntará vários investidores dos quais o único nome público é o grupo Barraqueiro. A Magellan realizou em janeiro uma conferência de imprensa para anunciar algumas das suas muitas objeções, reparos e críticas às conclusões do relatório preliminar apresentado pela comissão técnica e no qual Santarém surge desqualificado da lista de propostas para um solução que possa evoluir para um aeroporto único nas quais incluiu o Campo de Tiro de Alcochete e Vendas Novas.

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O sumário do relatório final da comissão técnica parece reabilitar Santarém, mas apenas como hipótese complementar a funcionar em simultâneo com o aeroporto Humberto Delgado. Como a solução dual só é recomendada apenas numa fase de transição, prevendo que substitua o atual aeroporto no médio e longo prazo, Santarém volta a falhar a recomendação da CTI que mantém as propostas do Campo de Tiro de Alcochete e de Vendas Novas.

Desta vez a posição dos técnicos está suportada num ofício do Estado Maior da Força Aérea do qual fica clara a incompatibilidade de um aeroporto internacional de dimensão em Santarém com a reserva de espaço para as bases militares (sobretudo Monte Real) e para as operações de Portugal no quadro da NATO.

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A operação aeronáutica é apenas um dos muitos temas suscitados na pronúncia da Magellan na qual o consórcio se queixa de falta de isenção e imparcialidade com que a solução Santarém foi tratada.

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Destacando que Santarém foi incluída pelo Governo resolução do Conselho de Ministros que determina as opções que deviam ser estudadas, o consórcio acusa a CTI de ter feito um “julgamento em causa própria”. Isto porque, argumenta, criou uma “solução própria — Alcochete complementar ao Aeroporto Humberto Delgado”, que fundamentou como sendo uma questão de coerência face à opção de Santarém como solução dual com o atual aeroporto. Esta possibilidade não estava inscrita na resolução — na qual a hipótese Campo de Tiro de Alcochete surgia apenas como substituto integral do atual aeroporto (sem o passo intermédio de operação complementar). E acabou por ser a escolhida para a primeira fase em detrimento de Santarém, alega a Magellan 500.

Esta é uma acusação que a CTI classifica de “absurda”, de “carecer de fundamento” e de ser “difamatória da sua credibilidade e integridade”. Para a comissão técnica, o comportamento do “Magellan 500 mostra que não compreendeu que a CTI é mandatada por Resolução de Conselho de Ministros, que é independente e que não recebe instruções de quaisquer entidades públicas ou privadas”.

A equipa da CTI, liderada por Rosário Partidário, inclui ainda como coordenadores de equipas técnicas Nuno Marques da Costa, Rosário Macário, Paulo Pinho, Teresa Fidélis, Fernando Alexandre e Raquel Carvalho, todos eles professores universitários com qualificações nas áreas que foram estudadas e consideradas nas recomendações — procura e tráfego, planeamento aeroportuário, acessibilidades, ambiente, económico-financeiro e jurídico.

Ao longo da pronúncia, os proponentes de Santarém contestam outras conclusões da CTI que deram vantagem ao Campo de Tiro de Alcochete, nomeadamente no que toca aos investimentos, à existência ou previsão em planos já existentes de acessos ferroviários que podem servir o aeroporto, na definição dos perímetros de impacte ambiental e no risco de incêndio rural, passando pelas implicações jurídicas face ao contrato de concessão da ANA. O facto de Santarém ficar fora do raio de exclusividade da ANA é visto como uma vantagem pelos promotores — porque não precisam do acordo da concessionária — mas é apontado pela CTI como um risco jurídico por poder implicar o pagamento de compensações em caso de funcionamento em articulação com Humberto Delgado.

Questionados pelo Observador sobre estas considerações da comissão técnica, fonte oficial da Magellan 500 diz que o consórcio proponente de Santarém considera que “efetivamente existe uma extensa lista de reparos ao relatório preliminar, dos quais apenas uma parte menor e representativa foi partilhada na conferência de imprensa” já referida. Acrescenta que na pronúncia apresentada (e que foi disponibilizada logo) “todos os reparos foram apresentados objetivamente e com base factual no próprio relatório preliminar, como não podia deixar de ser, ou relativamente a questões de princípio relativamente aos quais temos o direito inalienável de nos exprimir.”

A mesma fonte indica que concluídos os trabalhos da comissão técnica, o consórcio está agora enfocado “em continuar a trabalhar com todas as entidades envolvidas, na prossecução do projeto Magellan 500 concebido sem custos para os contribuintes, implementável num curto espaço de tempo, com ligação rápida por comboio desde o primeiro dia, e com escalabilidade para de uma vez por todas resolver os desafios de capacidade aeroportuária na região de Lisboa.”

O relatório final com a solução aeroportuária foi aprovado na comissão de acompanhamento, na qual estão representadas 11 autarquias envolvidas nas localizações estudadas, tendo recebido os votos contra de Santarém, Alcanena e Golegã e a abstenção de Torres Novas.