A propósito do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento divulgado recentemente pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), que concluiu que em 2023 “12,9% das pessoas viviam em alojamentos em que o número de divisões habitáveis (igual ou superior a quatro metros quadrados) era insuficiente para o número e o perfil demográfico dos membros do agregado”, a Lusa contactou três associações.

Apesar de nenhuma ter dados concretos, são unânimes em assinalar que tem havido um aumento de referências à sobrelotação habitacional.

“Isso deve-se a duas situações, a falta de casas e o preço delas”, resume António Machado, secretário-geral da Associação dos Inquilinos Lisboneses (AIL).

A atual crise de habitação “obriga famílias a coabitarem”, diz, referindo também “a pressão dos imigrantes”.

Segundo os últimos dados do INE, a sobrelotação afeta mais os cidadãos de outras nacionalidades do que os de nacionalidade portuguesa (22,7 e 12,6%, respetivamente).

A Lusa perguntou se seria possível obter uma desagregação dessas outras origens, mas o INE respondeu que “não é viável obter resultados estatisticamente significativos por país de nacionalidade”.

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Também à Associação Portuguesa de Empresas de Gestão e Administração de Condomínios (APEGAC) têm chegado “reclamações de sobrelotação em determinados apartamentos”, sobretudo nas zonas litorais e nos centros urbanos.

O problema “já se vem notando há um tempo”, mas, “recentemente, tem havido mais queixas”, nota Vítor Amaral, presidente da APEGAC.

“Era uma coisa que se levantava muito esporadicamente, agora já com alguma frequência essa questão é levantada”, reconhece, adiantando que tem sido um assunto discutido em assembleias de “alguns” condóminos.

“Eu próprio tenho conhecimento de algumas situações em que se coloca a questão da salubridade”, admite, sublinhando que “o que está a causar isto é o exorbitante preço a que chegou o mercado de arrendamento” e que o arrendamento “não tem, sem dúvida alguma, a fiscalização que deveria ter”.

Sem “dados específicos” e reconhecendo que é “muito difícil” apurar a sobrelotação, Vítor Amaral arrisca dizer que “ocorrerá muito mais na imigração”, entre trabalhadores que se juntam para dividir a despesa.

“Dormem aos 20 e aos 30, inclusivamente até no sistema cama quente [termo que se aplica aos casos em que a cama está sempre ocupada, mas por pessoas distintas em horários diferentes] e isso verifica-se porque não têm dinheiro para mais e estão indocumentados, etc”, corrobora António Frias Marques, presidente da Associação Nacional de Proprietários (ANP), que também não tem estatísticas.

“Há determinadas zonas, principalmente Lisboa […], no casco histórico, em que há […] sobrelotação e essa sobrelotação verifica-se fundamentalmente em relação a cidadãos asiáticos, que dormem até em lojas, coisas que são não-habitacionais”, retrata, situando as zonas de Mouraria, Intendente e Anjos.

Frias Marques dá conta de relatos de subaluguer não autorizado e de proprietários que alugam lojas que depois são transformadas em dormitórios.

A ANP recomenda aos associados “não fazerem contratos de arrendamento nessas circunstâncias, sabendo que aquilo vai ser um dormitório, porque até, em termos de segurança […] é uma bomba”.

Frias Marques sublinha que “as pessoas têm de estar legais” para arrendar uma casa e não duvida de que, “se o senhorio tomar todas as providências”, não haveria essas situações, ainda que os contratos sejam muitas vezes feitos por intermediários, porque “os senhorios já são pessoas de uma certa idade”.

A AIL também não tem registo de queixas, mas admite que “são situações conhecidas e que já foram denunciadas”, não só nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, como noutros locais, por exemplo Beja.

“As coisas estão cada vez piores. O que se está a verificar relativamente aos imigrantes é horrível”, considera António Machado, apontando o dedo ao poder político por “não intervir, nem atuar”.

Neste contexto, “é cada vez mais urgente regular e fiscalizar” o mercado do arrendamento, “o agravamento da situação determina-o”, desde logo porque, de acordo com o INE, a sobrelotação verifica-se mais com arrendatários (23,6%) do que com proprietários (9,4%).

“Esta é a única atividade económica que não tem registo prévio, como por exemplo existe no turismo”, aponta.

“A fiscalização, neste momento, não cabe a ninguém”, critica, sugerindo uma de duas coisas: o reforço de meios e competências da ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica) ou a criação de uma nova entidade.

Os proprietários concordam que a fiscalização não tem funcionado, mas discordam da solução apontada pelos inquilinos.

O arrendamento — diz Frias Marques — “é uma atividade super regulamentada”, fiscal e juridicamente. O que falta é fiscalizar a imigração irregular e assegurar que as câmaras municipais atuam.

A APEGAC reconhece que é raro receber retorno das autarquias sobre as situações reportadas.

Perante as queixas, a administração do condomínio só tem duas coisas a fazer: reclamar junto do proprietário, “que normalmente não vive no apartamento em causa”, e junto da autarquia, para que esta possa verificar as condições de habitabilidade e salubridade.

Nada na lei fixa número de pessoas que pode habitar uma casa

Entende-se como sobrelotado um espaço de habitação com um número de divisões habitáveis — com quatro metros quadrados ou mais — insuficiente para a dimensão e perfil demográfico do agregado.

Segundo a definição do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, vive-se em condições de sobrelotação da habitação se esta não dispuser de um número mínimo de espaços que permita: uma divisão comum; uma divisão para cada casal; uma divisão para cada adulto; uma divisão para cada duas pessoas do mesmo sexo com idades entre os 12 e os 17 anos; uma divisão para cada pessoa de sexo diferente entre os 12 e os 17 anos; uma divisão para cada duas pessoas com menos de 12 anos.

Porém, no que respeita à lei, a sobrelotação só tem as implicações pelas consequências que possa provocar, ou seja por situações que mereçam a intervenção de organismos públicos (por exemplo riscos para a segurança ou insalubridade).

“A questão está em saber se o problema social deve merecer a criação de normas jurídico-públicas com o objetivo de regular a locação para efeitos habitacionais”, considera, em declarações à Lusa, o advogado João Gaspar Simões, especialista em direito administrativo público.

No caso de se entender criar uma lei sobre sobrelotação, explicita, seria depois necessário identificar a quem caberia fiscalizá-la.

Segundo os Censos 2021, que não distinguia entre casas arrendadas ou próprias, 12,7% das habitações estavam em condições de sobrelotação.

Entretanto, em 15 de março, o Instituto Nacional de Estatística (INE) revelou os resultados do mais recente Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, segundo o qual a proporção de pessoas que viviam em condição de sobrelotação em 2023 aumentou para 12,9%, mais 3,5 pontos percentuais do que no ano anterior (9,4%).

Segundo o INE, em 2023, a taxa de sobrelotação da habitação era mais elevada para a população mais jovem (21,8% para o grupo etário até aos 17 anos), diminuindo com a idade (13,9% para os adultos e 4,4% para os idosos).

À semelhança dos anos anteriores, o risco de viver numa situação de insuficiência do espaço habitacional foi mais significativo para a população em risco de pobreza (27,7% no ano passado, o que compara com 9,8% na restante população).