O serviço nacional de saúde de Inglaterra (NHS, na sigla em inglês) fez este mês mudanças aos tratamentos de género disponíveis a menores no âmbito de uma reformulação dos serviços públicos aos quais se podem dirigir em busca de apoio. As alterações são fruto de uma investigação de quatro anos que concluiu que o NHS dececionou milhares de crianças e jovens que questionam a sua identidade de género ao providenciar tratamentos cujas evidências de benefícios “foram construídas com base em fundamentos instáveis”.

A Inglaterra torna-se, assim o quinto país europeu a restringir este tipo de tratamentos, depois da Finlândia, Suécia, Noruega e Dinamarca já o terem feito ao longo dos últimos anos. “Para a maior parte dos jovens, um caminho médico não será a melhor forma de gerir os seus problemas relacionadas com o género. Para os jovens a quem o caminho médico é clinicamente indicado, não é suficiente providenciá-lo sem ter também em conta a saúde mental e/ou problemas psicossociais“, sublinhou a pediatra Hillary Cass, ex-presidente do Royal College of Paediatrics and Child Health, que redigiu o relatório final publicado na terça-feira à noite.

A investigação, que foi divulgada em várias fases, refere o jornal The Guardian, já levou o NHS a fechar o Serviço de Identidade e Desenvolvimento de Género (Gids, na sigla em inglês), a decidir que não serão fornecidos bloqueadores hormonais a menores (exceto para pacientes inscritos em estudos clínicos) e a começar a transição para um novo modelo de cuidados “holístico” no qual as crianças e os jovens que questionam a sua identidade de género vão receber de forma contínua apoio psicológico em vez de uma intervenção médica. O estudo também aconselha a que hormonas como o estrogénio e a testosterona sejam prescritas a menores com “extremo cuidado”.

Cass sublinhou que as conclusões não pretendem minar a validade da identidade trans ou criar obstáculos no caminho para a transição de género, mas “perceber qual a melhor forma de ajudar um número crescente de crianças e jovens que procuram apoio do NHS em relação à sua identidade de género”. A pediatra refere que no decorrer da investigação contactou com adultos transgénero que “estão a levar vidas positivas e bem-sucedidas e a sentir-se fortalecidos por terem tomado a decisão de fazer a transição”, mas também com outros que abandonaram o processo de transição e que “lamentam profundamente” a decisão de o ter iniciado. “Apesar de alguns jovens sentirem urgência em fazer a transição, há jovens adultos que ao olhar para trás se teriam aconselhado a desacelerar”, pode ler-se no relatório.

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O que é o Gids e o que motivou a revisão de Cass?

Nos censos de 2021, 262 mil pessoas com 16 anos ou mais na Inglaterra e no País de Gales disseram que sua identidade de género era diferente do género biológico, segundo dados citados pela BBC. Para esses, o Serviço de Identidade e Desenvolvimento de Género era a única opção do Serviço Nacional de Saúde focada em questões de género, um serviço prestado pelo Tavistock and Portman NHS Foundation Trust. A clínica fazia avaliações dos jovens e encaminhava-os para tratamento médico.

Quando o Gids foi criado, em 1989, recebia menos de dez crianças por ano. Na sua maioria, eram menores registados à nascença com o sexo masculino e que ainda não tinham atingido a puberdade. Nessa altura, refere o Guardian, eram apoiados com terapia e, em apenas alguns casos, passavam por tratamentos com hormonas, mas só a partir dos 16 anos.

Isso mudou a partir de 2011, quando uma investigação de uma clínica em Amesterdão publicou os resultados sobre o uso de bloqueadores hormonais num grupo de 70 adolescentes que se identificavam com um género diferente desde a infância. A equipa dizia que estes davam tempo aos menores para explorar a sua identidade e decidir se queriam prosseguir com tratamentos hormonais e, no futuro, iniciar a transição de género. Os investigadores concluíam que os bloqueadores de hormonas, juntamente com terapia, contribuíam de forma positiva para o funcionamento psicológico.

Esse estudo inspirou clínicas em todo o mundo a seguir o protocolo holandês. A partir dessa altura, vários países, incluindo o Reino Unido, começaram a testar os bloqueadores de hormonas. Em 2014, o seu uso passou a ser rotina na prática clínica britânica. Há, no entanto, estudos que apontam para um efeito diferente. Um artigo publicado em 2020, depois de uma investigação que decorreu entre 2015 e 2016, apontava para a “falta de quaisquer resultados positivos mensuráveis”.

Em 2018, foi também notícia o facto de um grupo de dez médicos da clínica Tavistock terem denunciado formalmente que se sentiam pressionados a aprovar o uso de bloqueadores de hormonas em menores, mesmo nos casos dos que tinham graves problemas de saúde mental. Três anos depois, profissionais de saúde do Tavistock publicavam um estudo que avaliou 44 crianças que receberam estes bloqueadores e que mostrava que, em média, “não tinham tido impacto na função psicológica”.

Ainda em 2020, e com as crescentes dúvidas que eram apontadas nesta área, Cass foi convidada para fazer uma avaliação sobre o seu uso e as práticas que estão disponíveis aos menores através do Gids, que, entre 2009 e 2020, tratou cerca de 9.000 menores. Contou com a colaboração da Universidade de York.

Quais as principais conclusões do relatório?

O NHS “dececionou” as milhares de crianças que estão inseguras da sua identidade de género; há “evidências notavelmente fracas” sobre o uso de bloqueadores de hormonas e os tratamentos hormonais melhorarem o bem-estar dos jovens; a “toxicidade” em torno do debate sobre os temas de identidade de género é um problema e faz com que as pessoas receiem debater abertamente estas questões. Estas são algumas das principais conclusões do relatório de 398 páginas, cuja versão final foi publicada em abril deste ano e que analisou 50 estudos sobre bloqueadores hormonais e 53 sobre tratamentos com hormonas em menores.

Cass refere que “não há evidências de que os bloqueadores hormonais permitem ganhar tempo para pensar”, como alguns setores defendem, e que há a preocupação que altere a trajetória de desenvolvimento psicossexual e da identidade de género. Do mesmo modo, refere que também há falta de provas de que as hormonas masculinas e femininas melhoram a satisfação corporal e saúde psicossocial dos jovens. Há também preocupações sobre o impacto na fertilidade, no crescimento e no normal desenvolvimento ósseo. “Fiquei dececionada com a falta de evidências sobre o impacto a longo prazo de tomar hormonas desde tenra idade. As investigações dececionaram-nos a todos, mas principalmente a vocês”, sublinha Hillary Cass.

“Os resultados dos estudos são exagerados ou deturpados por pessoas em ambos os lados do debate para apoiar a sua visão. A realidade é que não temos evidências seguras do impacto a longo prazo destas intervenções para gerir questões relacionadas com o género”, defende Hillary Cass no relatório, alertando para uma “toxicidade surpreendente” a nível desta questão. “Há muito poucas áreas na saúde em que os profissionais têm tanto medo de discutir abertamente as suas opiniões, em que as pessoas são difamadas nas redes sociais, em que os insultos ecoam os piores tipos de bullying. Isto tem de parar”, sublinha.

O relatório também se debruça sobre o processo de transição social, que passa pela mudança do nome, dos pronomes e da aparência. Segundo a revisão de Cass, os estudos são contraditórios: alguns sugerem que melhora a saúde mental e social das crianças e jovens, bem como a sua participação escolar; outros apontam que torna mais provável que os menores sigam pelo caminho da transição e intervenção médica quando, de outro modo, talvez acabassem por repensar essa hipótese. “Tendo em conta a investigação fraca nesta área ainda há muitos fatores desconhecidos sobre o impacto da transição social”, refere, nomeadamente quando aos impactos a longo prazo e as consequências para a saúde mental.

“Para alguns, o melhor resultado será a transição, enquanto para outros pode ser possível resolver o seu sofrimento de outras formas. Alguns podem fazer a transição e depois revertê-la e/ou sentir arrependimento. O NHS deve cuidar de todos aqueles que procuram apoio”, acrescenta.

Cass alerta que os influencers têm adquirido um papel central em alimentar a confusão entre os mais jovens no que toca à identidade de género, apesar deste não ter sido uma questão que aprofundaram. “Falaram-nos de alguns influencers em particular e eu segui alguns deles. Alguns dão informações muito desequilibradas”, aponta. Acrescenta que em alguns casos aos menores era passada a ideia de que os pais não os iriam compreender e que era necessário um afastamento. “Todas as evidências mostram que o apoio da família é realmente importante para o bem-estar das pessoas. Por isso há por aí algumas influências muitos perigosas”, alerta.

Que recomendações deixa o relatório?

São 32 as recomendações deixadas ao Serviço Nacional de Saúde. A primeira é que os serviços  funcionem nos mesmos padrões que outros que cuidam de crianças e jovens “com apresentações complexas e/ou fatores de risco”. Considera, por isso, que é necessário que seja nomeado um médico (pediatra/psiquiatra infantil) que assuma a responsabilidade clínica geral pela segurança do paciente.

Uma outra recomendação passa por assegurar que um menor que questione a sua identidade de género e se diriga ao NHS “receba uma avaliação holística das suas necessidades para criar um plano de cuidados adequado a cada indivíduo”. “Isso deve incluir o rastreio de condições de neurodesenvolvimento, incluindo perturbações do espectro do autismo, e uma avaliação da saúde mental. Esta avaliação deve ser mantida sob revisão e evoluir para refletir as alterações que forem surgindo”, sugere.

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Depois do NHS já ter seguido a recomendação de desenvolver um estudo sobre o uso de bloqueadores hormonais, há também a sugestão de uma investigação mais alargada nesta área que olhe para as características, intervenções e resultados dos casos de menores que forem seguidos pelo serviço nacional. Também é referida a importância de se estudar e avaliar as consequências das intervenções psicossociais com hormonas masculinas e femininas. Ainda sobre este ponto, defende que é necessário rever a política de uso destas hormonas. “A opção de providenciar hormonas masculinas/femininas a partir dos 16 anos está disponível, mas nesta revisão recomenda-se extrema cautela. Deve haver uma justificação clínica clara para fornecer hormonas nesta fase, em vez de esperar que o indivíduo atinja os 18 anos”, refere.

Também se sugere um maior envolvimento dos pais no processo de decisão. No entanto, alerta-se que esse não pode ser o caso quando existirem fortes motivos para acreditar que isso coloca a criança ou jovem em risco. Tendo em conta a existência de casos em que, já em adultos, há arrependimento de ter começado o processo de transição, recomenda-se evitar decisões prematuras, bem como considerar iniciar uma transição parcial em vez de total como uma forma de manter as opções em aberto.

O que mudou e que opções têm os menores britânicos agora?

Para além do NHS já não prescrever bloqueadores de hormonas a menores com disforia de género, uma decisão anunciada a 14 de março, há mais mudanças a ser implementadas. Este mês já foi criado o novo serviço público para acompanhar menores, o NHS Children and Young People’s Gender Service (Serviço de Género para Crianças e Jovens do SNS, em português). A BBC explica que há de momento dois centros regionais, liderado por dois hospitais para menores, mas a expectativa é abrir seis centros.

Estes estabelecimentos têm como objetivo prestar apoio na saúde física e mental, mas também nos aspetos emocionais, psicológicos e sociais da identidade de género. Para já ainda não é possível fazer a marcação de consultas, mas sabe-se que será dada prioridade aos pacientes que já estavam a ser acompanhados pelo Gids.

Emails internos de funcionários dos hospitais em que os centros vão funcionar e a que a BBC teve acesso são prova da preocupação sobre o fecho do serviço anterior e da transição em curso. Membros do hospital alertaram para o cancelamento de consultas, a falta de informação disponível aos pacientes e a má comunicação que pode pôr pacientes em risco.

As mudanças também estão a preocupar muitos pais e familiares de menores trangénero ou no processo de transição. Ao Guardian, a mãe de uma rapariga de 17 anos que era seguida pelo Gids admitiu estar desapontada com o relatório divulgado este mês e afirmou que o fecho do centro Tavistock deixou o apoio à jovem suspenso. “Não ouvimos nada. A primeira carta que recebemos do NHS sobre o que se está a passar foi já uma semana depois do Gids fechar”, revelou.

Quais às reações ao relatório e às mudanças anunciadas?

O tema não é consensual e a autora do relatório já alertou que os menores são apanhados no meio. “A toxicidade do debate é perpetuada pelos adultos e isso é injusto para as crianças (…). São usadas como uma bola de futebol”, sublinhou numa entrevista ao The Guardian.

O primeiro-ministro britânico acolheu as recomendações propostas por Cass. “Simplesmente não sabemos os efeitos a longo prazo do tratamento médico ou transição social e devemos, por isso, ser muito cautelosos”, afirmou Rishi Sunak.

Ao New York Times, a psicóloga Anna Hutchinson, uma das profissionais de saúde do centro Tavistock que em 2018 levantou questões sobre o uso de bloqueadores, disse que as mudanças no NHS “são um reconhecimento de que as suas preocupações eram, afinal, válidas”. “É reconfortante saber que vamos regressar a um caminho mais robusto e com base em evidências”.

Já à Sky News, a associação Mermaids, que apoia jovens transgénero, ecoa a conclusão do relatório de que o sistema de saúde britânico está a falhar à juventude: “Está a falhar com listas de espera terríveis de mais de seis anos, com praticamente nenhuma primeira consulta oferecida há mais de um ano e uma crescente politização do apoio oferecido”. Apesar de acolher o relatório liderado por Hillary Cass, mostra preocupação de que alguma da linguagem usada “esteja sujeita a interpretações erradas e usada para justificar barreiras adicionais ao acesso a cuidados para alguns jovens trans”.