O bispo José Ornelas olha retrospetivamente para a situação da Igreja durante o Estado Novo e não tem dúvidas: “Foi uma Igreja amordaçada, mas também uma Igreja que não se resignou”.

Para o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), no início “a Igreja também se anichou dentro do regime”, desde logo porque “era sobrevivente de toda a confusão política de ainda antes, no século XIX, e depois no século XX, com a República, que foram [tempos] muito violentos” para a instituição.

“E o regime dava assim uma espécie de ninho, de refúgio. E esse foi o mal-entendido, porque depois as coisas vieram a complicar-se e não foi a Igreja que saiu vitoriosa desse confronto”, diz José Ornelas em entrevista à agência Lusa, destacando que, depois, sobreveio uma “época de luz, de luta, de descoberta de novas coisas”.

Desde logo, “o Concílio Vaticano II [iniciado no pontificado do Papa João XXIII, em 11 de outubro de 1962, e terminado em 08 de dezembro de 1965, já com Paulo VI] aconteceu como algo de tremendamente revolucionário dentro da Igreja”.

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“E esse espírito chegou também a Portugal” através dos padres que foram estudar para o exterior, “alguns dos quais depois se tornaram bispos — [como] o bispo do Porto [António Ferreira Gomes], como emblemático de toda esta situação, como alguém que nunca se vergou aos ditames do regime e que, por isso mesmo, foi exilado”, recorda.

O também bispo de Leiria-Fátima sublinha, ainda, “a atitude do Papa Paulo VI, que conhecia bem a situação portuguesa desde quando era Secretário de Estado” do Vaticano relativamente a um “regime que estava fechado em si próprio e que não escutava a voz de ninguém, nem dos seus parceiros políticos e militares, que eram quem permitia a guerra em África, que o condenavam a nível diplomático, mas depois tornavam possível também a aventura militar em que Portugal estava metido”.

“O Papa conhecia isto e, por exemplo, muito significativo, nunca nomeou um substituto para o bispo residencial para o Porto em lugar de D. António Ferreira Gomes. Foram sempre administradores, até que ele pôde voltar depois da morte de Salazar”, lembra.

O prelado reforça o papel de Paulo VI no alerta para a situação vivida em Portugal com a sua visita a Fátima, em 1967, para o cinquentenário das aparições, e que escancarou o ambiente de tensão entre a Igreja Católica e o Governo.

“Foi [uma visita] tensa, também no encontro dos dois [Paulo VI e Salazar] em Monte Real, porque o Papa não quis ir a Lisboa, (…) e foi um momento muito claro, não só o Papa não ter ido a Lisboa, receber Salazar na Base de Monte Real, vir diretamente a Fátima e voltar para Roma, mas também logo em seguida [01 de julho de 1970], receber os líderes dos movimentos [africanos] que lutavam pela Independência”, sublinha José Ornelas, admitindo que “isto foi algo que, para os próprios crentes portugueses, foi completamente difícil de entender”.

Afinal, vivia-se o período em que a narrativa oficial era a de que os militares portugueses estavam em África “a defender a fé e o Império”.

Para o jovem José Ornelas, seminarista na altura, quando o 25 de Abril chegou, a questão da necessidade de transição para a democracia “estava completamente resolvida”.

“Tinha educadores, algum deles, a maioria, eram italianos que não concordavam claramente com o regime. Mas foram muito inteligentes e pedagogos. Nunca deram propriamente um sinal de que eles queriam fazer a revolução. Ouvi deles: vocês é que têm de a fazer, nós queremos fazer-vos perceber o que é realmente uma democracia, o que é um país a funcionar”, relembra o presidente da CEP.

No seminário de Coimbra, este atual bispo madeirense dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos) — congregação de que já foi superior-geral — encontrou “padres que falavam muito claramente” da situação.

“Aí começou verdadeiramente tudo. Nessa altura, o meu irmão tinha ido combater para a Guiné. Lembro-me que eu tinha escrito um aerograma a dizer-lhe que estava muito orgulhoso de ter um irmão a combater pela pátria. E ele escreveu no aerograma seguinte: ‘Pensava que já tinhas crescido’. Só isto”, recorda, admitindo que este foi mais um “clique” que o despertou para a realidade.

Posteriormente, em Lisboa, passou dois anos no então Instituto Superior de Estudos Teológicos, onde encontrou professores como Frei Bento Domingues, e onde conviveu com um oficial do Exército que ali ia estudar Teologia.

“Era um oficial que nos fazia fotocópias — na altura, era o stencil que funcionava, as fotocópias eram raras ainda e caras. Mas ele trazia-nos sempre do Exército e disse-nos claramente que pertencia ao Grupo de Informações e que estava no ISET precisamente para saber qual a temperatura que se vivia por ali. No fim de semana antes do 25 de Abril, ele disse-nos: ‘Esta semana, ou há um banho de sangue ou isto muda'”.

E mudou mesmo, numa altura em que “tínhamos a noção de que o regime estava podre, estava a cair por si próprio”, acrescenta o presidente da CEP.

África foi importante para a revolução e para a abertura da Igreja

José Ornelas está convicto de que África foi importante para o 25 de Abril, devido à guerra colonial, mas também para a abertura da Igreja, face à visão mais avançada de muitos missionários.

“É que em África, o Concílio Vaticano II entrou muito mais rapidamente. Naquele momento, estava-se a nível mundial a aplicar o Concílio, e onde é que isso se deu mais? Nos países mais pobres, que aspiravam à independência, mais pobres e mais sofredores, debaixo de regimes ditatoriais”, lembra o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, que pouco tempo depois da revolução rumou a Moçambique.

Segundo o bispo, “as comunidades de base na América Latina fizeram tremer os regimes, concretamente no Brasil”. “Foi isso que passou também para a África portuguesa”, considera.

“Aquilo que estamos a viver agora, falando de uma Igreja sinodal, uma Igreja de participação de leigos, uma Igreja na mão de leigos, etc, isso eu vi tudo acontecer em Moçambique, de 1974 a 1976”, lembra, acrescentando que o bispo de Nampula, Manuel Vieira Pinto [que foi expulso do território], “foi uma das pessoas que mais trabalhou neste campo, mas os missionários vinham com uma ideia nova e, muito antes do 25 de Abril, transformaram a Igreja em Moçambique”.

Por outro lado, “fruto disso são também aqueles estudantes que eles [os missionários] formaram nas missões e se tornaram líderes da Frelimo, quase todos. A primeira geração da Frelimo foi educada [por missionários], e não podia ser de outro modo, porque as escolas eram as missões que as desenvolviam, [tal como] escolas, hospitais”.

Apesar desta proximidade, a Igreja não deixou de viver tempos difíceis em Moçambique depois da independência, com os carros e as casas das missões a serem “nacionalizadas”. Mas, “os padres construíram cabanas e foram viver para o meio da gente, tanto que a Frelimo dizia: ‘Saiu-nos o tiro ao contrário. Pensávamos que eles iam embora, ficaram mais próximos e mais difíceis de controlar’”.

José Ornelas afirma que “nas missões lia-se até mais do que aqui [no continente]. Os missionários e as missionárias — também os portugueses – eram gente muito mais à frente, porque davam-se conta da situação que lá [em África] existia”.

“Sabia-se muito bem que a maioria dos missionários das congregações religiosas eram favoráveis à independência e detestavam este regime colonial que estava completamente fora daquilo que eram as correntes do tempo, do novo mundo que se queria criar”, avança José Ornelas, não esquecendo que foram os padres de Burgos que denunciaram o massacre de Wiriyamu, e depois foram expulsos de Moçambique.

Para José Ornelas, “as colónias e a Igreja nas colónias foram elementos muito importantes, que devem ser estudados ulteriormente”, referindo o recente livro dos jornalistas Manuel Vilas Boas e Amadeu Araújo — Moçambique: da Colonização à Guerra Colonial – A Intervenção da Igreja Católica -, como um documento que “dá bem conta desta situação”.

O facto de se estar em período pós-Concílio Vaticano II, acontecimento que “traz uma revolução copernicana dentro da forma de entender a Igreja”, é também fulcral para a predisposição de, dentro da Igreja, na chamada Metrópole, também aparecer muita gente disposta a contestar o regime.

“Normalmente, começava-se por descrever a Igreja desde o Papa aos bispos, aos padres e depois, no fundo, o povo, sobre o qual exerciam a sua autoridade todos os outros.

O Concílio começa com uma outra coisa, começa pela noção de Povo de Deus. E isto parece uma brincadeira, mas não é. É isto que vai dar origem às comunidades de base, que vai dar origem a uma nova conceção do ministério dos padres e dos bispos. Que vai recuperar a originária noção do que é liderança e autoridade dentro da Igreja”, afirma José Ornelas.

O prelado recorda que “começa dentro da própria Igreja esta discussão”, embora reconheça que “em Portugal demorou a chegar”, acrescentando que “isto é a própria noção de Igreja que põe em causa o regime, para quem quisesse tomá-la a sério, e muita gente tomou”.

E as experiências novas começaram a surgir: “Nós cantávamos as canções do padre Fanhais, traduzíamos canções de fora que nos davam outra imagem de Igreja, eu ensinei nas barracas à volta de Lisboa, ali concretamente entre Alfragide o Bairro da Boavista, onde agora passa a CRIL, [dei] aulas com o método Paulo Freire, que não é simplesmente aprender a ler, é aprender a pensar. Era proibido [este método] e está na origem também da revolução e das comunidades de base, que eram comunidades de desenvolvimento de fé, e [também de] desenvolvimento e compromisso político”, sublinha o bispo que lidera a hierarquia católica em Portugal.

E depois, havia a Ação Católica, “que foi perseguida pelo regime, mas foi daí que nasceu o laicado consciente” e, também nas universidades, “quanta gente, alguns dos quais ainda hoje estão na cena política, foram católicos empenhados na transformação da Igreja. Vem tudo disto”.

“A Igreja, também aqui, foi promotora da transformação”, acrescenta, para reforçar, o papel do Papa Paulo VI nesta mudança.

“Uma das pessoas que foi fundamental foi o Papa Paulo VI. Conhecia bem a situação portuguesa e o que ele fez foi nomear uma série de bispos” – a começar por António Ribeiro, que substituiu Manuel Cerejeira como patriarca de Lisboa — que deram “um rosto novo à Igreja em Portugal”.

E se, a par desta evolução no seio da Igreja, faz questão de afirmar que “a construção da democracia portuguesa teve um caminho de sucesso”, não esquece o que o seu mentor dos tempos de estudante, o padre italiano Gastão Canova, lhe disse na tarde do próprio dia 25 de Abril de 1974: “Ornelas, [foi] bonito hoje. Mas, agora é que começa a dificuldade. Instaurar um regime democrático é razoável, é fazer uma revolução e virar as coisas, deitar abaixo a ditadura. Foi muito importante, mas agora trata-se de construir a democracia e viver em democracia e aí começam as dificuldades”, embora “dificuldades bonitas”.

 João Luís Gomes (texto) e Paulo Cunha (fotos)