O relatório da Comissão Independente do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra confirmou a existência de indícios de assédio sexual e, depois da divulgação deste documento, um conjunto de investigadoras que denunciaram vários casos de assédio por parte de Boaventura Sousa Santos decidiu, pela primeira vez, revelar a sua identidade. Ao todo, foram 13 as subscritoras de uma carta que, em março, elogiava o relatório da Comissão Independente do CES e agora, também pela primeira vez, algumas decidiram contar as suas histórias.

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À Agência Pública, um organismo que se descreve como promotor de “jornalismo de investigação” do Brasil, sete das 13 subscritoras da carta divulgada em março relataram os episódios que viveram com o investigador do CES e falam de “humilhações públicas” e “episódios de explosão de ira do professor”.

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“Quando as luzes se apagaram, ele colocou a mão entre as minhas pernas”

Uma das investigadoras que passou pelo CES e que assinou a carta que pedia um “processo de verdade, justiça, reparação e não-repetição”, Mariana Cabello, entrou no no CES em 2016, quando tinha 29 anos e ganhou uma bolsa de investigação que fazia parte do Projeto Alice. Boaventura era o responsável pela coordenação do projeto e estava, por isso, presente em todas as sessões.

Quando as luzes se apagaram, ele colocou a mão entre as minhas pernas, na minha virilha. Fiquei em choque. ‘Isto estava realmente a acontecer comigo?’, pensei. Ele continuou a olhar para a frente a ver o filme. Saí assustada”, contou a investigadora sobre uma das aulas em que os participantes estavam a ver um filme sobre direitos humanos.

A partir desse momento, Mariana Cabello diz ter passado a maior parte do tempo no quarto, tendo voltado a encontrar Boaventura na sessão de encerramento do projeto. “Ele chamou-me para uma mesa onde estavam outros estudantes. Fiquei novamente em choque.”

[Já saiu o segundo episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio.]

“Eu estava em pé, ao lado da mesa dele. Séria, em silêncio. Ele, em silêncio, pôs a mão na minha cintura, nessa posição ele ficou com a cara no meu peito”, acrescentou à Agência Pública. Depois deste episódio, Mariana Cabello não voltou “a ter contacto com ele ou com o CES”.

“Você pode ter uma relação especial comigo, porque, quando olho para si, quando vejo as suas pernas…”

Élida Lauris, investigadora brasileira, chegou ao CES com 25 anos, para fazer um doutoramento. A proximidade com Boaventura começou quando, em 2007, foi chamada para elaborar um documento sobre o acesso à Justiça no Brasil, uma vez que Boaventura tinha sido convidado para participar numa palestra do Ministério da Justiça brasileiro. “Ele passou a fazer pedidos de pesquisa de interesse dele, que eram um trabalho extra, sem reconhecer a minha autoria, nem acertar uma remuneração”, relatou Élida, caracterizando esta relação como “um sistema de servidão académica do qual não conseguia sair”.

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Élida conta ainda que foi obrigada a parar a sua tese para participar em projetos de Boaventura e que recebia menos do que as restantes investigadoras. Também Élida abandonou o CES e nunca mais teve qualquer contacto com a instituição: “No último jantar em que participei com Boaventura, ele disse: Você pode ter uma relação especial comigo, porque, quando olho para si, quando vejo as suas pernas… Nunca fiz nada, porque você era casada”. “Eu tinha o sonho de ser professora, hoje mal consigo entrar numa universidade”.

“Desenvolvi uma doença autoimune, porque vivia com medo”

Também no projeto Alice, a investigadora sul-africana Carla Paiva contou que sofreu humilhações por parte de Boaventura Sousa Santos, que coordenava o projeto. “Disse que eu não prestava para nada”, contou, admitindo que aquelas palavras foram “chocantes” e que “nunca tinha ouvido um professor dizer isso”.

Depois de sete meses de trabalho, em que se dedicou “a tarefas administrativas do projeto Boaventura”, esta investigadora diz ter sido afastada sem qualquer explicação, acabando por perder a bolsa. Além disso, aqueles meses deixaram marcas: “Desenvolvi uma doença autoimune, porque vivia com medo constante.”

Uma vez que ficou sem bolsa, Carla Paiva foi obrigada a abandonar a universidade, mas optou por permanecer em Portugal.

“Quando percebi que ele usava o sexo como moeda de troca, entendi que a minha carreira no CES tinha terminado ali”

A história de Sara Araújo, investigadora portuguesa, tem outros traços. Sara Araújo relata que recusou qualquer aproximação de Boaventura. E percebeu que essa barreira que colocara era o motivo da “tortura psicológica” em que vivia. Numa das reuniões, Boaventura terá dito que “o problema” era Sara Araújo ser a única mulher com quem tinha “uma relação tão próxima que não tem carácter sexual”.

“Quando percebi que ele usava o sexo como moeda de troca, entendi que a minha carreira no CES tinha terminado ali.” Sara Araújo foi excluída de todos os projetos que coordenava.

“Disse que sempre teve desejo pelo meu corpo, sobretudo pelas minhas pernas”

Em 2000, Aline Mendonça chegou ao CES para começar o seu doutoramento em Coimbra. E, tal como aconteceu com as restantes investigadoras, Boaventura terá também começado a utilizar os seus recursos académicos.

E ia cada vez mais longe: “Disse que sempre teve desejo pelo meu corpo, sobretudo pelas minhas pernas. Fiquei muito nervosa. Passei a ter incontinência urinária pelo medo e pelo ambiente de pressão constantes”, revelou à Agência Pública.

“Passou a ser intolerante e violento”

As investigadoras relatam, sobretudo, as mudanças visíveis no comportamento de Boaventura Sousa Santos e as diferenças entre o momento em que conheciam o investigador e os momentos que se seguiam. Eva Chueca foi também para o CES para fazer um doutoramento, em 2010, e foi nesse momento que conheceu Boaventura. No início “era educado”, mas assim que Eva Chueco assinou o contrato de trabalho com o CES, o professor passou “a ser intolerante e violento”.

Eva Chueca relatou um “medo constante” de poder ser vítima da violência que já tinha presenciado em relação a outras investigadoras e diz ter ficado com “uma sensação de vulnerabilidade”.

Na mesma linha, também a professora Gabriela Rocha explicou que, durante os 10 anos em que esteve no CES — entre 2013 e 2023 –, assistiu a vários episódios de assédio por parte de Boaventura, revelando que este foi “extremamente agressivo e impositivo com pessoas mais próximas”.

Boaventura sublinha que “não cometeu crime algum”

Contactado pelo organismo brasileiro, o gabinete de assessoria de Boaventura Sousa Santos adiantou que o investigador “aguarda o desenlace processual no Ministério Público português para que possa apresentar a sua defesa e confrontar adequadamente as acusações, demonstrando, com provas, que não cometeu crime algum”. E acrescentou ainda que a investigação independente “não imputou crimes nem faltas graves a nenhuma das pessoas denunciadas”.

A Agência Pública diz ter contactado ainda Maria Paula Meneses e Bruno Sena Martins, dois investigadores que são acusados de assédio por investigadores que passaram pela instituição de Coimbra. No caso de Ana Paula Menezes, a investigadora recusou-se a fazer declarações sobre as denúncias. Sena Martins não reagiu aos pedidos de esclarecimento.

Também ao organismo brasileiro, a Universidade de Coimbra — a que o Centro de Estudos Sociais pertence — disse condenar “veementemente todas as práticas de agressão física ou psicológica, violência ou assédio, exercendo uma atitude ativa, vigilante e pedagógica no que toca a situações de conduta imprópria”. E o próprio CES recordou ter “em curso um processo prévio de inquérito” que permita apurar “eventuais responsabilidades” sobre estes casos e que a “eventual abertura de processos disciplinares individuais depende dos resultados” desse processo. Ao mesmo tempo, o CES garante estar a preparar uma nova política institucional de prevenção e combate ao assédio e abuso.