Num ano, tudo mudou. Recuando até maio de 2023, uma qualquer entrevista de Rui Costa à BTV não seria mais do que um autoelogio natural para as opções de sucesso tomadas a nível de futebol, fosse na vertente técnica, fosse na política de contratações de jogadores. Na altura, e pode mais do que uma vez, o presidente do conjunto da Luz falou numa mudança de paradigma no clube com a chegada de um treinador estrangeiro com as características de Roger Schmidt. O ciclo vicioso tornara-se um ciclo vitorioso, não só pela conquista do Campeonato e chegada aos quartos da Champions mas também pela valorização de ativos, pelo reforço da marca, pelo acréscimo de assistências e sócios e por tudo aquilo que de bom chega de forma direta ou indireta quando se ganha. Esta temporada, não sendo uma antítese, falhou. E falhou em vários cenários.

O jornal Record fez um curioso exercício antes da entrevista de Rui Costa à BTV (que se sabia apenas ter um formato diferente das habituais mas com poucos mais pormenores), questionando os seus leitores sobre as perguntas que consideravam ser essencial encontrarem resposta por parte do líder dos encarnados. Não se pode dizer que tenham existido grandes surpresas em relação aos resultados finais mas os mesmos faziam a “confirmação” do que não correu bem esta época: política de contratações, estado atual do scouting, reforços para a próxima temporada e a continuidade de Schmidt numa ótica de futebol, auditoria interna, discussão dos estatutos e momento das modalidades no masculino numa vertente mais de “clube”.

Havia mais pontos a adensar a importância desta intervenção pública de Rui Costa, neste caso o contexto de eleições no próximo ano e todas as manobras de bastidores que começam a ser mais percetíveis para que exista pelo menos um movimento forte para colocar em causa o atual elenco como aconteceu em 2020, por exemplo, quando João Noronha Lopes desafiou Luís Filipe Vieira na votação mais renhida das últimas duas décadas. Era também à luz disso que o presidente dos encarnados iria tomar a palavra, sabendo que a época de 2024/25 será fundamental para aquilo que poderá acontecer em contexto eleitoral no próximo ano.

“Acho que estão reunidas as condições para continuar a ser treinador do Benfica, Roger Schmidt vai continuar a ser treinador do Benfica. De resto, nunca houve da nossa parte uma notícia contrária a isso e se não considerasse que tivesse todas as condições para continuar a ser treinador evidentemente a minha opção seria até mais fácil, mais populista, mas acredito na estabilidade do projeto, acredito no treinador que já deu mais do que mostras da qualidade dele. O que foi feito na época passada não pode ser obra do acaso”, referiu o presidente dos encarnados, na entrevista concedida a jornalistas dos meios escolhidos pelo clube.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Este ano efetivamente houve coisas que não correram como esperávamos e desejávamos, acabámos a temporada aquém do que eram as expectativas iniciais mas não faço nem nunca farei deste treinador um bode expiatório porque não foi o único responsável. Terá as suas responsabilidades também, como é óbvio e inerente, mas não é o único responsável de todo e o que nos importa agora é criar as condições necessárias e internas para que ele possa fazer o mesmo trabalho que fez há um ano e é com ele que tenho a máxima convicção de que iremos conquistar títulos no próximo ano. E é nesse sentido que já estamos a trabalhar há imenso tempo, para emendar o que não foi bem feito este ano e para que possamos entrar na próxima época da mesma forma que entrámos há um ano”, acrescentou a esse propósito.

[Já saiu o segundo episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio.]

“Se considerássemos que a responsabilidade e a época não tão positiva como há um ano tivesse sido meramente da responsabilidade de Roger Schmidt, talvez a situação seria outra. Este ano, e não vale a pena esconder, não tivemos o mesmo acerto em termos do input que demos à equipa. Este ano não conseguimos ter o mesmo sucesso, sobretudo imediato, face à adaptação de jogadores. Há um ano, se bem se recordam, praticamente desde a primeira jornada Roger Schmidt acertou no onze que foi andando durante a época toda. Este ano tivemos vários problemas para resolver desde o início até ao final da época e aqui considero que não seja meramente culpa de Schmidt. O trabalho foi feito em conjunto. Há coisas que não correram bem, não acertámos e temos que assumir. Eu assumo essa responsabilidade”, destacou Rui Costa.

“É um treinador que trabalha com o Benfica de corpo e alma. Vocês ao longo deste tempo foram anunciando até alguns clubes que o podiam pretender. É uma pessoa muito honesta e se o próprio não considerasse ter condições para fazer o trabalho que esperamos e que acreditamos que venha a ser feito, acredito que até tivesse sido o próprio a assumir isso. Para quem trabalha com ele diariamente, convive com ele e para quem consegue perceber a paixão e entrega que tem com este clube e trabalhando diretamente com a equipa, do comportamento que tem para com os jogadores e os jogadores para com ele, confiamos plenamente que ele terá todas as condições para fazer um bom trabalho”, prosseguiu ainda na parte sobre o técnico alemão.

“O que aconteceu há um ano, de chegar ao Benfica desconhecendo todos os jogadores e ter feito o trabalho que desenvolveu não pode ser obra do acaso, não pode ser casualidade. Conhecemos o valor deste treinador e entendemos que, para dar estabilidade ao clube e à equipa, o Benfica não pode constantemente, assim que não ganha o Campeonato, mudar tudo o que está envolvido, fazer quase um reset de tudo. Não significa que o facto de eu considerar que a estabilidade passa pela manutenção do treinador seja ad aeternum. Com tudo o que foi feito nestes dois anos, uma remodelação quase completa do futebol profissional do Benfica, temos de reconhecer que este não correu na perfeição, emendar os erros, proporcionar ao treinador que possa ter em mãos o que não teve este ano e muitas vezes teve de improvisar ainda até prejudicado com isso. É raro um treinador que está num clube e prefere, mesmo em termos comunicativos, ser prejudicado e dar a cara em vez de atacar o clube por esta ou aquela razão”, voltou a reforçar o número 1 dos encarnados.

“Os novos jogadores não tiveram o mesmo impacto do ano passado e isso acabou por ser muito prejudicial. Nomeadamente nas laterais, onde acabámos por não conseguir colmatar a saída de um jogador tão importante como o Grimaldo, em várias posições oscilámos. Não passou unicamente por Roger Schmidt a ausência de títulos ou uma época menos conseguida. Seria muito fácil e mais populista mudar de treinador e partirmos para uma era nova. A troca de treinador seria mais fácil, mais ágil, mais populista mas a pergunta que faço é: se as coisas não começassem a correr bem com o treinador que viesse, alterava alguma coisa ao que é a exigência do clube? Não acredito, conheço muito bem o clube. É preciso de uma vez por todos pensarmos que não podemos começar projetos do zero anualmente, mudando tudo e mais alguma coisa”, especificou Rui Costa, nessa fase inicial em que abordou a continuidade do técnico germânico.

“Partimos para a época com dois laterais esquerdos, um lateral direito um joker, o Fredrik [Aursnes]. Joga bem em qualquer posição. Tivemos um problema de adaptação imediata de Jurásek, percebemos que estava a demorar a adaptar-se à responsabilidade de jogar no Benfica mas não deixámos de ir buscar um jogador que vinha credenciado, como é Bernat. Nunca tivemos Bernat. Chega com mais cartel do que aquele com que Grimaldo sai do Benfica. O que acontece é que, não tendo Bernat quase no ano inteiro, fustigado com lesões raras na carreira dele, entre elas uma lesão grave, ficamos sem lateral esquerdo. Estivemos grande parte da época sem os laterais de raiz, quer de um lado quer do outro, e Schmidt teve de acabar por improvisar. É um erro crasso, assumido. Seria mais fácil para mim dizer: tive lesões daqui, lesões dali, o que podia fazer? Se calhar devíamos ter feito mais. Obrigámos o nosso treinador a ter de improvisar muitas vezes”, aferiu.

“Acredito que este ano tenha sido um ano de grande frustração pelo facto de as expectativas terem sido bem altas. Éramos campeões nacionais e começámos a época com as expectativas lá em cima. Começámos por ganhar a Supertaça, tínhamos reforços de peso que nos permitiam pensar que a época fosse mais gloriosa e houve uma frustração grande da parte dos nossos adeptos dentro da exigência que é natural num clube como o Benfica. Houve exibições que não agradaram, que não satisfizeram e elevaram a crítica. Crítica que respeito, contestação que respeito, como é óbvio, mau era se assim não fosse. Mas como disse Roger Schmidt, é evidente que quem está nesta posição, dentro de campo, como treinador, o que pretende para o clube é que o clube esteja unido. Mas vamos partir para uma época nova e tenho a certeza absoluta que não há um benfiquista que não queira começar bem, a lutar pelo título. É um apelo”, apontou.

“José Mourinho? Quem disser, em qualquer clube do mundo, que não pensa em planos B, C ou D, ou não está a fazer bem o seu papel ou está a mentir. Mesmo com a minha convicção que Roger Schmidt é o melhor treinador para o Benfica neste momento, e não arredo pé disso até prova em contrário, tinha preparado um plano B, C e D. Nunca falei com José Mourinho. Houve uma altura em que foi ver jogos do Benfica e que se começou a julgar que pudesse ser o próximo treinador do Benfica. Nunca falei com José Mourinho, nunca tive uma abordagem como tal”, admitiu também Rui Costa sobre o técnico português.

“Kökçü? Se me perguntarem pessoalmente, digo que gosto ainda mais dele hoje do que o que gostava há um ano quando o vi. É um jogador com características fantásticas, qualidade e que não conseguiu expressar ao máximo o seu potencial. É inequívoco e que todos consideram que Kökçü é um jogador de nível elevadíssimo. Tanto joga a 8 como a 10, são posições que conhece na perfeição. E naquele momento, independentemente da entrevista, não era aqui que estavam as lacunas do Benfica. Vlachodimos? Deu-nos muito e tenho todo o respeito por ele. A ideia era ficar com Trubin, com o Samuel [Soares] e com o Vlachodimos mas para acabar com um problema que pudesse ser criado mais para a frente, se chegasse uma proposta, como chegou, que o melhor para ambas as partes, era ele aproveitar essa oportunidade e sair”, explicou Rui Costa.

“Não é normal numa equipa como o Benfica o ponta de lança não ultrapassar os dez golos numa época. Também foi um problema que sentimos na equipa e por isso essas tais rotações de avançados à procura da melhor solução. Recordo que o Darwin quando chegou ao Benfica, o primeiro ano não foi tão produtivo como o segundo. O próprio Gonçalo Ramos quando partiu para a época passada como titular a número 9 havia muitas dúvidas. É uma exigência muito grande jogar neste clube e há posições muito críticas, esta é uma delas. Foi um dos problemas que tivemos neste ano, os golos da nossa estrutura atacante para não ser de um jogador só. Foi uma lacuna que tivemos e que prejudicou o resultado global dos objetivos que tínhamos para a época. Não estou em condições hoje de vos dizer quem sai ou quem não sai, estou em condições de vos dizer que a equipa será reforçada para ser muito mais forte do que aquilo que foi neste ano”, comentou ainda o líder dos encarnados, referindo que não pode nesta fase dizer se Di María vai ficar ou não mas garantindo que todos os alvos estão identificados e que existirão também vários jogadores cobiçados.

“O Álvaro [Carreras] está confirmado, é mais um daqueles talentos em que temos muita esperança de que tenha uma carreira muito digna. O Leandro [Barreiro] também é jogador do Benfica. É um médio muito rotativo, muito dinâmico e vem completar o meio-campo, um espaço que nos faltava. Mais uma solução no meio-campo. Com uma produtividade muito grande, uma capacidade física elevada, qualidade técnica fiável para jogar no Benfica e temos esperança de que seja um grande elemento”, confirmou.

Neste contexto, e perante a defesa acérrima de Schmidt, poderá o alemão ser o Rúben Amorim do Benfica? “Não, quero que o Roger Schmidt seja o treinador do Benfica de sucesso. Não sou o clube, sou o presidente do clube e tenho que tomar as decisões que considere as melhores. Posso estar errado, como errarei muitas vezes, como é natural, mas não quero que ninguém seja o meu treinador. Eleições? É o que menos me preocupa. Ponto número um, estamos a falar de eleições que serão em outubro de 2025. Ponto número dois, estarei nesta cadeira até considerar que posso ajudar o clube e não agarrado a uma cadeira à qual nunca me agarrei. A única coisa que quero é que a pessoa que se sentar nesta cadeira seja bem melhor do que eu para levar o Benfica às vitórias que irei festejar no Marquês também como adepto. Esse é o menor dos meus problemas, nunca poderei estar a pensar nas eleições quando tenho tanto a fazer até lá”, salientou.

Por fim, Rui Costa abordou ainda duas questões mais ligadas ao clube, entre a revisão de estatutos (que será sufragada em Assembleia Geral no próximo mês) e a auditoria interna. “São dois temas muito em voga nos sócios do Benfica, com toda a razão. Os estatutos estão prontos para serem apresentados, já foram aprovados pela Direção mas são para entrar em vigor nas próximas eleições. Quisemos fazer estatutos dignos do Benfica, não do presidente do Benfica. Passou por uma série da fases desde a primeira comissão, depois pela a Direção e pela primeira vez foi posto à disposição para os sócios darem o seu contributo”, referiu.

“Quando se fala de esconder alguma coisa ou de pouca democracia, parece-me errado. Nunca houve uns estatutos tão democráticos como estes, uns estatutos criados com tanta presença e contributo dos sócios do Benfica. Depois há aqui outro fator, quer para os estatutos como para a auditoria, que me parece que as pessoas não têm que duvidar: não há nada para esconder. Se eu fosse um político e não o presidente, tenho a presunção de poder dizê-lo, tínhamos feito as coisas muito mais à pressa. Tinha apresentado tanto os estatutos como a auditoria no ano passado, em que tínhamos sido campeões, toda a gente estava feliz e passava muito melhor do que até apresentar este ano, muito mais problemático. As coisas serão apresentadas e discutidas agora e serão finalizadas em breve tempo. Não há nada debaixo do tapete”, acrescentou.

“A auditoria está finalizada. Demorou muito mais do que esperávamos mas porque foram analisados 51 contratos, que faziam parte do processo Cartão Vermelho. Finalmente está concluída, teve uma série de complementos para poder ser uma auditoria completa. Processo na Justiça? Em relação ao processo atual, tudo o que está neste processo não está na auditoria, mas assim que tomámos conhecimento do processo, mandámos abrir uma auditoria nova sobre todos os contratos que possam estar incluídos neste processo. Não estavam na outra porque não faziam parte do processo. A última coisa que quero é que não se saiba o que realmente se passa. Prestei todos os esclarecimentos que me pediram. E deixem-me referir: desconheço por completo qualquer plano que visasse prejudicar o Benfica, não quero pensar porque caso contrário não fazia sentido continuar no Benfica naquela altura e muito menos estar nesta cadeira. Não caí aqui de paraquedas, sirvo o Benfica desde os oito anos. Posso ter 1.001 defeitos, errar em muita coisa, mas neste aspeto magoa-me pensar na ideia de ser desleal ao meu clube”, concluiu Rui Costa.