Que grande desperdício seria se usássemos apenas uma décima parte do nosso cérebro. Este órgão consome 20% da energia que se gasta diariamente – 50% no caso das crianças -, mesmo tendo apenas 2% do peso total do corpo. Foram precisos milhões de anos de evolução humana para que o cérebro triplicasse de tamanho e nos desse a capacidade de usar ferramentas e desenvolver a linguagem. Porque se daria a natureza a tanto trabalho se não fosse para o usarmos na totalidade?

“Estima-se que a maioria dos seres humanos use apenas 10% da capacidade cerebral. Imagine se conseguissemos ter acesso a 100%. Aconteceriam coisas interessantes.” Uma deixa do professor Norman, interpretado por Morgan Freeman, no filme Lucy que estreia esta quinta-feira em Portugal, mas que poderia ter sido proferida por qualquer pessoa na vida real. O mito persiste.

Como surgiu o mito não se sabe, mas pode ter a certeza que não é nenhuma frase de Albert Einstein como é, por vezes, sugerido. Aliás, uma ressonância magnética ao cérebro mostra atividade em todo o órgão, com zonas mais estimuladas consoante a função que a pessoa esteja a desempenhar, explica ao Observador João Relvas, neurocientista no Instituto de Biologia Molecular e Celular. E se a mínima lesão cerebral pode ter impacto na vida de uma pessoa seria preciso muito azar que essa lesão acontecesse nos únicos 10% que supostamente têm algum interesse.

“Talvez o mito seja perpetuado porque as funções de que temos consciência – memória, capacidade cognitiva, visão ou linguagem – estão em regiões bem demarcadas no cérebro. Mas há muitas atividades comandadas pelo nosso cérebro que não são conscientes, como o equilíbrio ou o ritmo cardíaco”, diz o investigador. “Além disso, há muitas funções que não são exclusivas de uma única parte do cérebro.”

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No entanto, talvez haja um fundo de verdade neste mito. Embora ainda não seja um valor que reúna total consenso entre a comunidade científica acredita-se que do volume total do cérebro apenas 10% sejam neurónios – cerca de 100 mil milhões de neurónios -, sendo superados 10 a 50 vezes pelas não menos importantes da célula da glia. Estas células envolvem os neurónios e são responsáveis por dar suporte estrutural e proteger os neurónios, também tem um papel na formação de circuitos neuronais impedindo a propagação desordenada de impulsos nervosos.

Outro ponto verdadeiro por trás do mito é que quanto mais uso dermos ao cérebro mais sinapses – pontos de ligação entre as células nervosas e as células-alvo – se formam. Da mesma forma que as sinapses que deixam de ser usadas degeneram. O mesmo acontece com as dendrites, os prolongamentos dos neurónios que transportam os impulsos nervosos. Mas para aumentar o número de sinapses ou dendrites é preciso exercitar o cérebro, resolver problemas do dia a dia ou puzzles, ler uma notícia ou ver um filme e ser capaz de interpretar.

“Pode treinar-se o cérebro tal como se treina qualquer outro órgão”, diz João Relvas, acrescentando que o treino não nos faz usar mais partes do cérebro, mas que o conseguimos usar melhor. “Não se pode dizer que só um corredor de fundo seja capaz de usar o coração a 100%.” Mas os resultados são conseguidos por atividades de estimulação cognitiva, como o cálculo mental ou a leitura rápida, ou até as atividades artísticas, como a música, e não pelo uso de qualquer químico ou droga como acontece com Lucy, a personagem interpretada por Scarlett Johansson.

Mas se ainda lhe restam dúvidas não deixe de ver este vídeo (em inglês).