Tal como uma pessoa que se apresente como médico numa festa tem de ver aquela mancha esquisita que nos apareceu na virilha, ou um informático tem de automaticamente meter a nossa impressora a funcionar, também um guionista tem um pedido inesperadamente recorrente quando conhece alguém num contexto social: “oh pá, a mim aconteceu-me uma cena bué fora que dava um filme, tu é que podias escrever”. É, claro, uma frase dita entre cervejas e vinho carrascão, por isso não é para levar a sério.

Mas esconde uma tendência, que é a das pessoas acharem que os casos reais, tal e qual como aconteceram, são a melhor matéria-prima possível para a ficção. É neste “tal e qual” que reside muitas vezes o problema, porque os factos verídicos são os sapatos de salto alto da escrita: parecem uma óptima e glamourosa ideia inicialmente, mas regra geral acabamos com dores e a ponderar quão mau é chorar em público. É um processo de escrita bem mais difícil e ingrato do que parece, porque a ficção, para parecer real, tem muitas vezes de tomar atalhos.

“Narcos”, que estreia agora a sua segunda temporada na Netflix, parte de uma incrível e sumarenta história real, daquelas quase demasiado boas para serem verdade. Pablo Escobar foi o maior barão da droga de todos os tempos, um homem com uma fortuna estimada nos 30 mil milhões de dólares que, alegadamente, gastava 2500 dólares mensalmente só em elásticos para organizar as suas notas em delicados montinhos – porque fazer explodir um voo comercial com 111 pessoas a bordo tudo bem, ser desarrumado é que uma falta de chá incrível.

[o trailer da segunda temporada de “Narcos”]

https://www.youtube.com/watch?v=nkOKkS7mKfY

O original Netflix não é primeira adaptação da vida do colombiano a uma obra de ficção e estará longe de ser a última (há pelo menos dois filmes sobre o barão a sair só em 2017), mas é certamente a primeira a cavalgar a onda da tendência iniciada por “Sopranos” e cimentada por “Breaking Bad”: a de que as pessoas querem é ver os antiheróis, os sacanas, torcer pelos vilões, sentir o friozinho na barriga de privar com um criminoso enquanto estamos de pantufas e com uma T-shirt XXXL que só serve para dormir.

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Chris Brancato, co-criador e um dos argumentistas da série, teve exactamente o receio de tornar aquele que é considerado o primeiro narco-terrorista da História em alguém apelativo. Por isso, e para que não restem dúvidas, não hesita em descrever Escobar como um “tipo sem remorsos” e “um psicopata que te mata a ti e à tua mãe”. O próprio filho do traficante, Juan Pablo Escobar (hoje com o nome Sebastián Marroquín, renegando assim ao passado onde nas suas festas de aniversário eram rebentadas piñatas com dinheiro em vez de doces), escreveu livros onde descreve o violência e loucura a que assistiu na infância, concluindo:

“O meu pai está muito longe de ser um herói — digo sempre que se alguém ler os meus livros e quiser ser como ele, é porque fiz um mau trabalho”.

Mesmo assim, o fascínio é inevitável, como provam as populares tours turísticas a Medellín, a cidade colombiana onde morava. Como traças seduzidas pela luz, é difícil não querermos seguir a aura de um criminoso que existiu mesmo mas que parece inventado de tão superlativo que era.

Acredita que é verdade

Com substancial matéria-prima de excelência (Escobar foi dos homens sobre os quais mais se noticiou durante as décadas de 80 e 90, uma autêntica pop star da ilegalidade e da crueldade), “Narcos” recorre à realidade constantemente. Steve Murphy e Javier Pena, os dois polícias que conseguiram desmantelar o cartel, são não só personagens como consultores na série. Sempre que possível, são usadas imagens reais. O exemplo mais emblemático é o da mugshot (a típica fotografia tirada aos detidos para efeito de arquivo) do traficante, cuja versão real aparece constantemente na série.

O primeiro impacto é bizarro, uma vez que de repente temos de mandar o suspention of desbelief pastar e aceitar que o verdadeiro Pablo e o actor Wagner Moura em versão bigode farfalhudo, ambos, estão ali para representar uma e a mesma pessoa. Esta sede pela realidade tal como ela é causa assim o momento no qual ficamos mais alerta para o facto de que estamos a ver só uma série.

Locais, pessoas e alguns detalhes foram alterados ou sacrificados, a bem de tornar uma história tão complexa mais escorreita. Mesmo assim, o que torna “Narcos” incrível é que tudo o que parece demasiado rebuscado, demasiado violento, demasiado fora para ter acontecido, aconteceu mesmo. Ver a série com uma página de Wikipedia aberta ao lado não só não arruína a experiência, como a intensifica. Todos queremos fugir de spoilers, mas quando o spoiler é a validação de que estamos apenas a usar um mecanismo de ficção para sermos testemunhas da História passada a acontecer, o impacto é totalmente diferente.

“A diferença entre realidade e ficção é que a ficção tem de fazer sentido”. A frase do autor Tom Clancy atormenta o processo criativo de argumentistas e escritores, porque num livro ou filme ou série todo o puzzle tem de encaixar. Na vida real, o puzzle pode ter para sempre bocados do céu a faltar ou um pedaço de bolacha maria a fazer de peça porque, sem querer entrar em grandes filosofias, a vida às vezes não faz grande sentido. Nem sempre tem relação causa-efeito, nem sempre tem uma progressão, nem sempre percebemos que raio está ali aquele interveniente a fazer.

A ficção não se presta a isso. Perante um plot de uma série que achamos que não está a fazer sentido, o zapping leva-nos até ao telejornal ou programa de culinária mais próximo. “Narcos” faz o esforço de fazer sempre sentido, de nos pegar pela mão e de levar por uma versão compacta de quase 20 anos de pura loucura. Para isso, recorre a um dos mecanismo mais mal amados pelos guionistas: a voz off. Gurus da escrita para cinema como Robert Mckee levam as mãos à cabeça, considerando preguiçoso ter um personagem a explicar directamente ao espectador o que se passa. Brancato defende-se: “Quando a informação pura e dura é fascinante, resulta entregá-la directamente ao espectador”.

Num registo que acaba por estar entre o documental e uma reconstituição de um crime (pensem em CMTV com muito mais dinheiro e infinitamente mais bom senso), “Narcos” nunca perde o pé do facto de ter de resultar como as restantes obras de ficção. Tem de ser tão cativante como a “Guerra dos Tronos”, mas sem poder meter um dragão para animar o plot. Talvez por isso, a série assume-se como indo beber ao estilo literário mais famoso da América do Sul: o realismo mágico. A primeira citação a aparecer em “Narcos” é:

“O realismo mágico é definido como o que acontece quando um ambiente altamente realístico e detalhado é invadido por algo demasiado estranho para ser credível. Há uma razão para o realismo mágico ter nascido na Colômbia”.

Pablo Escobar é demasiado estranho para ser credível, mas partilhou mesmo o planeta connosco. Se ele alguma vez me tivesse dito numa festa “aconteceu-me uma cena bué fora, devias escrever um filme”, acho que pela primeira vez acedia.

Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa