Quando Robert Davies, editor da British Library, pediu a Andrew Smith que reunisse as melhores histórias sobre múmias, o especialista em literatura inglesa do século XIX não pensou duas vezes. Afinal, o tema não lhe era estranho. Em 2011, já se tinha debruçado sobre a matéria a propósito de uma pequena introdução que escreveu sobre o filme The Mummy (1959), da Hammer Film Productions. Foi nessa altura que descobriu a maioria dos textos que juntou no livro Lost in a Pyramid: And Other Classic Mummy Stories, disponível para compra a partir desta semana.
Ao todo, a obra reúne 12 histórias curtas publicadas entre 1869 e 1910, a época dourada da múmia. Durante este período, foram dados a conhecer ao público cerca de 100 contos, editados em revistas de ficção. A maioria, porém, não voltou a ser publicada desde então. Foi isso que aconteceu, por exemplo, com “The Curse of Vasartas” (1889), uma história de Eva M. Henry sobre a abertura de um sarcófago que faz cair uma maldição sobre todos os envolvidos que Andrew recuperou para este livro. É que, para ele, esse tinha de ser um dos requisitos — a obra tinha de ser uma coletânea de contos “que nunca tinham sido publicados com frequência” ou que raramente tinham sido incluídos numa antologia.
“Muitos deles foram escritos por autores obscuros”, explicou ao Observador o professor de literatura da Universidade de Sheffield, em Inglaterra. “Apesar de serem esses que dão um ‘sabor’ representativo da forma durante esse período”. É o caso “The Necklace of Dreams” (1910), de W. G. Peasgood, sobre um colar com poderes sobrenaturais que causa visões e até a morte a quem o usa, ou “The Dead Hand” (1904), de Hester White, sobre uma mão descontente que decide tornar a vida de todos num inferno até que seja devolvida ao seu dono.
Mas o índice de Lost in a Pyramid não tem só desconhecidos. O amor pelas histórias sobre múmias atingiu inclusivamente o criador de Sherlock Homes, Sir Arthur Conan Doyle, que, em 1892, publicou “Lote No. 249”. O conto (que em muitas coisas faz lembrar Frankenstein, o mostro de Mary Shelley) fala sobre a reanimação de uma múmia vingativa. “É muito conhecido, assim como o ‘Ring of Toth [1890]'”, salientou Andrew, referindo-se a outro conto de Conan Doyle que tem o Antigo Egito como pano de fundo.
A norte-americana Louisa May Alcott, autora de Mulherzitas, também caiu na maldição da múmia. “Lost in a Pyramid, or the Mummy’s Curse”, publicado em 1869, dá título ao livro e é uma das histórias mais famosas reunidas pelo académico. Redescoberto nos anos 90, o conto de May Alcott tornou-se num dos mais influentes dentro do género.
A mensagem da múmia é uma mensagem política
As histórias sobre múmias ganharam grande popularidade no final do século XIX (como muitas outras histórias de terror). Os motivos foram principalmente dois, como explicou ao Observador Andrew Smith: “O acabamento do Canal do Suez, em 1869, e as escavações arqueológicas sem fim das pirâmides e dos túmulos [no Egito]. A Grã-Bretanha tornou-se na principal dona da empresa que controlava o canal, [a Canal Company,] apoderando-se militarmente deste em 1882.”
Foi no final deste século que muitos dos lugares importantes do Antigo Egito — como os túmulos do Vale dos Reis — foram explorados pela primeira vez. Estas escavações, que começaram no início do século XIX e que se prolongaram até ao século XX (o túmulo de Tutankhamon, por exemplo, foi descoberto por Howard Carter em 1922) tiveram um grande impacto na sociedade britânica da época, que se tornou fascinada por tudo o que era egípcio, desde a religião à joalharia.
“Havia um grande interesse por tudo o que era egípcio”, salientou o professor inglês. “Podemos ver isso refletido no tipo de arquitetura que se tornou popular na Grã-Bretanha (principalmente no desenho de capelas e túmulos) e no interesse nas crenças e valores dos antigos egípcios Os contos sobre múmias tornaram-se numa forma de ‘ressuscitar’ o passado.”
Mas as histórias sobre múmias e maldições não eram só um reflexo do fascínio dos britânicos pelo Antigo Egito — eram uma resposta à situação política que se vivia na região. Depois de o Canal do Suez ter sido controlado militarmente pelo Reino Unido em 1882, os britânicos passaram a desempenhar um papel central na política e economia do país, uma situação que ficou conhecida como “Egyptian Question”. Isto significava que, apesar de oficialmente o país ser governado pelo quediva (vice-rei do Egito), as decisões políticas eram tomadas por um cônsul britânico.
Esta situação — “a presença britânica e a sua legitimidade territorial questionável” –, associada às “ansiedades relacionadas com a invasão dos túmulos”, que até para a altura deveria ser para muitos moralmente questionável, tornam a “vingança da múmia” potencialmente “moral e política”, explicou Andrew Smith. A múmia deixou de ser apenas um símbolo do oculto, passando a ser uma reação ao desrespeito mostrado pelos britânicos face a uma civilização.
Esta abordagem é visível nalguns dos contos reunidos pelo académico britânico, como o de Louisa May Alcott e do Eva M. Henry. Outros, porém, parecem mais preocupados em afirmar a legitimidade da posição britânica face ao Egito. Nestes, o país “é efetivamente demonizado através de elos explícitos com a forma popular do Gótico“, como aponta Andrew na introdução de Lost in a Pyramid.
Dois séculos depois, a múmia não morreu
Quando se fala em literatura gótica, o mais natural é referir a obra-prima de Bram Stoker (que também escreveu uma história de múmias, The Jewel of Seven Stars), Drácula. Apesar disso, o século XIX, que viu nascer muitas boas obras de terror, também foi assombrado por outras maldições. “No período vitoriano, as histórias de fantasmas também eram muito populares”, explicou Andrew. Uma popularidade que chegou aos dias de hoje.
Apesar disso, Andrew Smith acredita que a múmia não morreu, muito pelo contrário. “Têm havido filmes sobre múmias que têm sido muito populares, como por exemplo A Múmia [1999] e O Regresso da Múmia [2001]”, salientou. Mas não foram os únicos. Desde os primórdios do cinema que a história de uma múmia que regressa dos mortos parece fascinar os realizadores (e não apenas os escritores).
O primeiro grande sucesso cinematográfico foi, provavelmente, A Múmia, uma produção de 1932 da Universal Studios com Boris Karloff (conhecido por interpretar o mostro do doutor Frankenstein) a fazer de Imhotep. A esta versão seguiu-se a da Hammer, intitulada também (surpresa!) A Múmia, com Christopher Lee (que tinha feito de Drácula um ano antes, em 1958) e Peter Cushing (Van Helsing), duas estrelas da produtora, nos papéis principais.
A estes seguiram-se muitos outros filmes. O mais recente tem data de lançamento marcada para 2017. O título — A Múmia — não é novidade e o enredo também não — uma rainha, sepultada sob o deserto, acorda dos mortos para lançar uma maldição que desafia a compreensão humana. Original ou não, o filme é a prova de que, dois séculos depois, “a múmia continua viva”, como referiu Andrew Smith. E pronta para nos deixar os cabelos em pé.