Um de Novembro, faltam 60 dias para o fim do ano. A data é especial até dizer chega. Veja lá bem esta série de acontecimentos: o teto da Capela Sistina é exibido pela primeira vez (1512), há o famoso terramoto em Lisboa (1755), a inauguração da Casa Branca (1800) e a fundação da Juventus (1897). Futebol, sempre o futebol.

Um de Novembro, faltam 60 dias para o fim do ano. A data é especial até dizer chega. Que o diga o Benfica na Europa. Em 1989, por exemplo. Imagine só isto: quarta-feira europeia à tarde. Entram em campo Benfica e Honved com o árbitro inglês Gunn. A eliminatória está quase quase resolvida com o 2-0 em Budapeste, golos de Pacheco (penálti) e Valdo (após tabelinha preciosa com Vata) e o treinador Eriksson insiste na melhor equipa. Naquele tempo, não há cá frescuras nem poupanças e, atenção, há uma deslocação a Alvalade no domingo, para o campeonato nacional. O onze é Silvino; José Carlos, Ricardo, Aldair e Veloso (cap.); Thern; Paneira e Valdo; Abel, Magnusson e César Brito. Seria este a assinar o 1-0 aos 19’, Abel Campos acerta no poste aos 34’ e faz o 2-0 aos 36’. Antes do intervalo, César Brito arranca cheio de energia, passa por três defesas e conclui na cara de Péter Disztl, guarda-redes barbudo da Hungria no Mundial-86.

https://www.youtube.com/watch?v=tsVo2ErB21o

Na segunda parte sai César Brito (o herói do tal dérbi do domingo seguinte, 1-0 ao Sporting) e entra Vata. O angolano bisa em menos de 270 segundos (com o pé direito e de cabeça, ambos na marca de penálti) e estabelece o resultado em 5-0. Para o fim, está guardado o melhor: Super-Mats. Magnusson é habilidoso no 6-0 (ganha um ressalto e finta um defesa antes de rematar rasteiro) e guerreiro no 7-0 (golpe karateca), aos 86 e 89 minutos. O Benfica festeja o apuramento fácil na tarde dos três bis, um feito único na história do futebol português.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Avança-se no tempo, até 2006. Sempre 1 Novembro. É a Liga dos Campeões, quarta jornada da fase de grupos. Quinze dias antes, o Celtic despedaçara o Benfica em três tempos na segunda parte, em Glasgow. Agora, na Luz, outro galo cantará. Caldwell, pobre coitado, é o infeliz contemplado dessa noite europeia. Ao cruzamento do lateral Nélson, o escocês atira-se para o chão e mete o pé direito à bola sob a ameaça da entrada de rompante de Nuno Gomes, nas suas costas. É (auto)golo. Aos 22′, o guarda-redes Quim atira lá para a frente, a bola ressalta na cara do desajeitado Caldwell e sobra, agora sim, para Nuno Gomes. O avançado domina e atira para a baliza, sem dificuldade. Já na segunda parte, o suplente russo Karyaka fixa o 3-0 numa belíssima jogada de ataque desde o meio-campo.

E é isto, dois jogos europeus na Luz e 10-0 em golos. Segue-se esta terça-feira o Dínamo Kiev, o bicampeão ucraniano em título, agora segundo classificado do campeonato, atrás do Shakhtar Donetsk de Paulo Fonseca. Os tempos dourados já lá vão, o Dínamo é uma cópia macaca da fabulosa equipa dos anos 80. Lembram-se de Chernobyl? A 26 de Abril de 1986, os técnicos nucleares soviéticos querem fazer uma experiência com o reactor número quatro. A intenção é observar o comportamento do dito cujo quando utilizado com baixos níveis de energia. Para que tal seja possível, quebram-se, assim de repente, umas quantas regras de segurança indispensáveis. Para começar, interrompe-se a circulação do sistema hidráulico que controla as temperaturas do reator. Isto escrito parece ser do pior, imagine-se agora…

Em poucos minutos, o reator entra num processo de super-aquecimento incapaz de ser revertido. Forma-se então uma bola de fogo e lá se vai o reator número quatro. Em termos comparativos, as quantidades letais de material radioactivo são assustadoramente 400 vezes maior que o das bombas atómicas nos ataques aéreos dos EUA às cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, na 2.ª Guerra Mundial. A URSS reage e envia uma equipa de limpeza composta por 600 mil homens e um número ilimitado de helicópteros, cuja missão é descarregar areia a chumbo para conter as chamas. Mas a nuvem radioactiva avança quilómetros e mais quilómetros. Estende-se até à fronteira francesa.

Sim senhor, uma nuvem branca passa literalmente pelo Estádio Gerland, em Lyon, na sexta-feira dia 2 de Maio. Quem, onde, porquê? Um país enorme (URSS de Gorbachev), uma época de mudança (Glasnost e Perestroika), uma catástrofe nuclear (Chernobyl), uma província rebelde (Ucrânia), um treinador genial (Valeri Lobanovski), uma final de referência (3-0 ao Atlético Madrid na Taça das Taças), uma chuva de estrelas (Blokhin, Zavarov, Rats, Demianenko, Yakovenko, Kuznetsov, Bessonov) e um futuro Bola de Ouro (Belanov). Senhoras e senhores, o Dínamo Kiev-1986 à prova de catástrofes naturais e outras que tais.

A equipa embarca para França antes do desastre nuclear. Quando faz escala em Paris, o assunto entre os jornalistas é obviamente Chernobyl. Atento a tudo o que mexe, Lobanovski proíbe-os (aos jornalistas) de fazerem perguntas extra-futebol e impede-os (aos jogadores) de sequer pronunciar a palavra Chernobyl. “Estamos aqui para jogar uma final europeia e só isso”, justifica o treinador, que limita ao máximo a informação sobre a explosão do reator número quatro. Até 2 de Maio, no comments. Lobanovski é dos homens indecifráveis do futebol – mais esfíngico até que o holandês Rinus Michels.

Como avançado do Dínamo, é campeão da URSS (1961) e vencedor da Taça da URSS (1964). Como treinador, é um íman de títulos. Ao todo, trinta (30), três deles internacionais: uma Supertaça europeia (1975) e duas Taças das Taças (1975 e 1986). E ele não tirara o curso de treinador, só o de engenharia em termotecnia. Selecionador da URSS nos Jogos Olímpicos-76, chega a casa “só” com a medalha de bronze. O PC não só o demite do cargo como o considera persona non grata para a seleção daí em diante. Em 1982, o partido volta atrás e reintegra-o na estrutura da “federação” e Lobanovski falha o apuramento para o Euro-84 por culpa de um penálti cavado por Chalana fora da área, inventado pelo árbitro francês Konrath e transformado por Jordão, na Luz. É despedido em Novembro de 1983. Baaah, voltaria para o quatriénio 1986-90. Nesses parêntesis da seleção, Loba é do Dínamo Kiev.

Leva o seu trabalho de treinador com uma seriedade e um pragmatismo ilimitados. “Não há concepção socialista para marcar golos.” A sua onda é tornar o futebol científico, com métodos revolucionários. Geek da informática, Lobanovski pede um computador ao KGB. Estamos a falar dos anos 70 e a URSS está metida na Guerra Fria, só que a patente de general e a insistência garantem-lhe um aparelho rudimentar. Nele, cria programas com gráficos e mais gráficos sobre a evolução física e psicológica dos seus jogadores para maximizar o potencial deles. Jogo após jogo, uma equipa de estatística contratada por si trabalha os números de cada jogador: distâncias percorridas, velocidade média, número de bolas perdidas…

O “engenheiro” cria o futebol robótico, sem a ingrata necessidade de repetir exercícios nos treinos. “A improvisação é o nível supremo da organização”, justifica. Os seus treinos não têm baliza nem há golos. “Apenas velocidade, desmarcação, trocas de bola ao primeiro toque e pressing.” Tudo para chegar ao futebol total. “Não quero jogadores de campo em lugares específicos. Para mim, não existe o avançado-centro, o médio ou o defesa. Os jogadores devem saber fazer tudo em campo.” Em Lyon, na tal final da Taça das Taças, a telepatia entre os jogadores é mais do que evidente. Assustadora até. Luis Aragonés, treinador do Atlético Madrid, lembra-se do aquecimento do Dínamo Kiev: “Uma rabia de cinco para cinco e a bola não parou um segundo com sucessivas desmarcações ao primeiro toque. Fazia mal aos olhos.”

Aos cinco minutos, uma arrancada do possante lateral-esquerdo Demianenko leva tudo à frente e do seu cruzamento nasce o 1-0 de Zavarov. O Atlético tenta reagir e nem sequer se dá pela sua presença durante os 90 minutos. O Dínamo é esmagador e o 3-0 final peca por escasso. Aos 85 minutos, o dois-zero é um dos mais belos movimentos ofensivos depois de Alexandre, o Grande. Mais uma vez, começa Demianenko, ainda no seu meio-campo. Depois Rats para a direita, onde aparece Belanov, que desmarca Yevtushenko e este para Blokhin bater o argentino Fillol. Aceleração, reacção em cadeia e explosão final. O 3-0 de Yevtushenko surge no derradeiro minuto e é o décimo remate do Dínamo à baliza do Atleti.

Terminado o espectáculo, o Dínamo volta para casa. Nove jogadores voam directamente para Moscovo, onde se encontram com Dasaev e Aleinikov para formar o onze da URSS no Mundial do México, e os outros aterram em Kiev para serem recebidos como heróis nacionais na Praça Kpeschatik, espécie de Marquês de Pombal. Cem mil pessoas aplaudem-nos e esquecem o desastre nuclear. “Só quando chegámos a Kiev”, conta o defesa Baltacha “é que tivemos a real noção do que se passara em Chernobyl, mas as pessoas estavam tão eufóricas que o choque só foi entendido como tal uns dias depois.”

No Mundial-86, a URSS de Lobanovski dá um festival de bola na fase de grupos: 6-0 à Hungria (com penálti falhado incluído), 1-1 com campeã europeia França e 2-0 ao Canadá. Nos oitavos-de-final, o hat-trick de Belanov é insuficiente para derrubar a Bélgica (4-3) e o árbitro sueco Erik Fredriksson, que valida um golo de Demol em fora-de-jogo. No fim desse ano, Belanov ganha a Bola de Ouro (84 votos), à frente de Gary Lineker (62) e Emilio Butragueño (59). Deveria ser uma boa notícia, só que o avançado não encaixa a vitória como deve e provoca fissuras no homogéneo plantel do Dínamo Kiev. Os ciúmes começam a ser mais que percetíveis e nem o computador de Lobanovski impede o mau ambiente. A isto, acrescente-se a abertura ao Ocidente.

A condição de homo sovieticus desta talentosa geração desfaz-se aos poucos. A começar pelo veterano Oleg Blokhin, Bola de Ouro em 1975. Com autorização para emigrar (finalmente), escolhe os austríacos do Vorwärts-Steyr. “Estou livre. Aos 36 anos, posso fazer o que quero, posso abrir uma conta bancária e utilizá-la como desejo.” Uma hecatombe Kalachnikov vai derrubar as outras estrelas do Dínamo. Contratado pela Juventus para suceder a Platini em 1988, Zavarov passa duas épocas deprimentes antes de passar ao Nancy e depois ao semi-amador Saint-Dizier. O matulão Baltacha escolhe a Escócia (Saint Johnstone e Inverness), o magnífico Rats só consegue estar longe de casa uma época, no Espanyol. O Bola de Ouro Belanov aventura-se na Alemanha (Borussia M’Gladbach) e acaba na 2.ª divisão (Eintracht Braunschweig) depois de passar pela esquadra da polícia para pagar a fiança da sua mulher, apanhada a roubar roupa num supermercado. O ruivo Kuznetsov lesiona-se no Rangers e mais se parece com um homem invisível. Bal faz tilt em Israel e Demianenko fica-se pelo Magdeburgo da 2.ª divisão alemã. Por fim, Yakovenko faz seis jogos pelo Sochaux. I-n-a-c-r-e-d-i-t-á-v-e-l. A culpa será da radioactividade? O Benfica que se cuide esta noite. Há um ano, mais coisa menos coisa, o Dínamo de Rebrov (discípulo de Lobanovsky) silencia o Dragão por 2-0.