Ao contrário que acontece com os números da equipa, irregulares como as exibições que conseguem variar entre o bom, o sofrível e o muito mau em menos de 90 minutos, o discurso de Nelson Veríssimo em qualquer aparição pública foi sempre muito estereotipado. Ser solução e não problema, a importância do coletivo para potenciar o individual, o perceber os momentos de jogo antes que os momentos de jogo se tornem difíceis de perceber. Por isso, qualquer frase ou ideia mais desviante ganha um impacto redobrado. Foi assim no final da partida com o Tondela, na defesa que fez do valor a todos os níveis que André Almeida e Pizzi ainda têm para o grupo. Foi assim agora na antevisão da receção ao Ajax na Luz, quando recusou apontar favoritos.

Benfica-Ajax. Águias tentam esquecer momento interno para brilharem na Europa

“Vai ser um jogo 50/50, na minha opinião”, atirou, numa opinião que se percebia entre a imprensa que vinha dos Países Baixos não ser unânime. “E isto é dito de forma genuína, não estou aqui com bazófias. Os números que vocês disseram são factos, já reconhecemos que eles têm qualidade, mas nós também temos. Já o demonstrámos em vários jogos. O encontro de amanhã [quarta-feira] vai ter umas caraterísticas diferentes e dividiria o favoritismo pelas duas equipas”, acrescentou na sequência da conversa com os jornalistas.

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Antes, vários pontos tinham sido abordados, quase todos com potencial de transformarem esses mesmos 50 em 40, 30, 20 ou mesmo 10%, num dia pior. Os problemas que a equipa tem enfrentado para estabilizar no plano defensivo – sem que isso signifique que a questão está apenas nas unidades recuadas dos encarnados como Otamendi, Vertonghen ou Grimaldo, três dos mais elogiados pelos neerlandeses –, a incapacidade de segurar vantagens em determinados momentos, as flutuações de exibições nos jogos, o desconforto que o Benfica sente perante a adversidade em termos emocionais. De uma forma ou outra, e aqui voltamos ao tal discurso mais estereotipado, Veríssimo ia dando respostas e apontando soluções para os problemas mas sempre que surgia algo que colocasse em causa os tais 50/50, lá vinha a confiança extra naquilo que alguns poderiam encarar como uma “surpresa” mas que o técnico entendia quase como uma “normalidade”.

“Ainda sinto que sou parte da solução. Sabemos o que andamos aqui a fazer, sabemos o potencial da equipa e o rumo que queremos. As questões são colocadas em função dos resultados e, pegando no último jogo tivemos 60 minutos muito positivos, mas temos de reconhecer que nos últimos 30 não estivemos nada bem. Os jogadores sabem o que deveríamos ter feito e não fizemos mas isso é um discurso que tem de ser e já foi feito internamente. Tendo em conta esse jogo no Bessa, é pegar nas muitas coisas positivas que fizemos no processo ofensivo e transportar para este jogo com o Ajax, reconhecendo também que temos de ser muito mais consistentes no processo defensivo”, referira de forma genérica sobre como ultrapassar os lanceiros.

Com 108 golos marcados em 33 jogos oficiais entre Campeonato, Taça, Supertaça e Liga dos Campeões, o Ajax foi de longe o melhor ataque da fase de grupos e voltou a mostrar bem aquilo que está no ADN do seu futebol com Erik ten Hag (e que o Sporting provou da pior forma, com duas derrotas e nove golos sofridos). Uma marca clara que cruzava com aquilo que o Benfica tinha de negro no atual momento, sofrendo golos de bola corrida e parada como não tinha acontecido ainda esta temporada. “A questão emocional tem a ver com os resultados. Pode-se colocar a questão dos últimos minutos em alguns jogos, em que não conseguimos dominar o jogo, mas não achamos que isso seja questão física. Temos de ter capacidade de roubar a bola ao adversário e manter a posse e temos de melhorar isso. Mas este jogo tem caraterísticas completamente diferentes onde essas questões não entram”, voltara a frisar Nelson Veríssimo.

A segunda parte, sobretudo a segunda parte perante tantos erros individuais e coletivos na defesa ao longo do primeiro tempo, mostrou que o técnico tinha razão. No entanto, foi preciso desbloquear algumas das figuras para resgatar um empate que até poderia a espaços mais além disso. Desbloqueou Taarabt a construir no meio-campo, desbloqueou Rafa nas transições e aproveitou uma fase maior fragilidade coletiva do Ajax no plano defensivo para fazer o 2-2. E entre tantas figuras num jogo de vertigem que poderia ter números bem diferentes no final dos 45 minutos iniciais, houve uma figura que deu menos nas vistas mas que nem por isso deve ser menos destacada: Gonçalo Ramos. Que fez de tudo para cumprir papéis principais que não eram seus mas que não deixou que fossem secundários, que mesmo sem forças não deixou de explorar as poucas fraquezas do Ajax. O avançado sabe muito mas, mais do que isso, quis muito. Se o Benfica procura de certa forma uma motivação para o final da temporada, é olhar para o número 88 e perceber tudo isso.

A aposta no jovem jogador não demorou a ser explicada pelo que se passava em campo. Aliás, nem a opção no avançado nem aquilo que era a proposta do Benfica para o encontro: com e sem bola, o número 88 era um terceiro médio e não um segundo avançado como fez tantas vezes na formação em sistemas de 4x3x3 com dois médios mais posicionais e uma unidade para se juntar aos avançados, ajudando também a fechar mais na esquerda pelas próprias características quer de Grimaldo, quer de Mazraoui (as de Antony eram bem conhecidas e ficaram logo patentes no minuto inicial com uma jogada fabulosa). E o jogo estava bom, muito intenso, com o Ajax a não conseguir ter tanta bola mas a jogar mais alto ganhando várias bolas ainda no primeiro terço dos encarnados enquanto o Benfica procurava as transições de fora para dentro. Até nos remates havia equilíbrio, entre um cabeceamento de Vertonghen (4′) e uma rosca de Antony (6′).

O Benfica tinha a postura certa, uma estratégia que poderia vingar mas corria um perigo por culpa própria: perder a bola em zona proibida com unidades como o Ajax tem na frente. Aconteceu uma, duas, três vezes, sempre sem consequências. À quarta, a história foi outra: Grimaldo recebeu mal uma bola que vinha tensa, Mazraoui procurou logo a frente do corredor, cruzamento largo para Tadic ao segundo poste e desvio de pé direito para o golo (18′). Era tudo o que não podia acontecer mas nem isso travou a conexão com as bancadas ou a forma de jogar tentando também aproveitar o erro adversário, como aconteceu no empate: após um canto ganho por Rafa numa jogada em que Pasveer quase foi enganado pelo desvio num colega, Vertonghen insistiu após dois remates na área prensados em adversários, cruzou tenso e rasteiro para a pequena área e Haller desviou para a própria baliza de forma inadvertida e sem pressão por perto (26′).

O Benfica chegava ao golo que precisava. Para reforçar a confiança, para perceber que podia ferir o Ajax sem bola, para se mostrar ao jogo. No entanto, tinha a necessidade de “congelar” a partida até colocá-la mais a seu jeito. E foi tudo o que não aconteceu: o mesmo Haller fez o 2-1 aproveitando uma defesa incompleta de Vlachodimos após um desvio de Vertonghen para a própria baliza na sequência de um cruzamento de Tadic (29′), depois foi Mazraoui a aparecer a rematar à entrada da área para defesa do grego numa jogada iniciada com uma arrancada fabulosa de Gravenberch que deixou um inexistente Taarabt para trás (40′), a seguir foi Alvarez a acertar no poste depois de uma assistência fabulosa de Antony antes da recarga de Haller completamente isolado na área e sem Vlachodimos na baliza que saiu ao lado (45′). Podia ter sido pior…

Ao intervalo, os encarnados como que “respeitaram” esses momentos de maior aflição no final da primeira parte, corrigiram alguns posicionamentos e entraram de forma corajosa para o segundo tempo. A fazer faltas quando necessário no processo de construção dos neerlandeses, a subir as linhas defensivas dando alguma profundidade ao Ajax na tentativa de ganhar antes a bola, a colocar mais unidades na frente para criar outro tipo de desequilíbrios. Foi assim que Everton viu a bola rasar o poste após passe frontal de Rafa depois de um desvio num defesa contrário (56′). Foi assim que Darwin Núñez atirou também de fora da área muito perto da baliza contrária (61′). Foi assim que Yaremchuk entrou em campo para o lugar de Everton, sendo que pouco depois Vlachodimos segurou a equipa defendendo um remate de Mazraoui sozinho (64′).

Perante aquilo que o Ajax deixava que o Benfica fizesse e perante aquilo que o Benfica fazia sem que o Ajax conseguisse contrariar, o jogo já tinha começado a conhecer um outro Taarabt e ganhou a partir daí um novo Rafa, tão bom ou melhor do que aquele Rafa que decidia jogos sozinho em transições na primeira volta. O Rafa que, depois de duas boas investidas, foi preponderante para o empate: na sequência de um lance em que Timber simulou um penálti na área encarnada e descurou o centro da defesa, o internacional português ligou a mota, ganhou metros, assistiu Ramos para o remate travado por Pasveer e Yaremchuk aproveitou a eternidade do guarda-redes para reagir à recarga para encostar de cabeça para o 2-2 (72′). Até ao final, Vlachodimos ainda travou dois remates de Antony mas as baterias não davam para mais.