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A fábrica em Odrinhas fechou quando a marca foi adquirida pela Lactogal. As garrafas de vidro foram substituídas por razões de segurança e transporte
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A fábrica em Odrinhas fechou quando a marca foi adquirida pela Lactogal. As garrafas de vidro foram substituídas por razões de segurança e transporte

A fábrica em Odrinhas fechou quando a marca foi adquirida pela Lactogal. As garrafas de vidro foram substituídas por razões de segurança e transporte

1/4 de Vigor, se faz favor. 70 anos de leite fresco, da garrafa de vidro ao kefir

A Vigor elevou o leite fresco a um pedestal que marcou a memória coletiva dos portugueses com a mítica garrafa de vidro entregue à porta e muito requisitada nos cafés e pastelarias da Grande Lisboa.

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“É o único leite que é chamado pelo nome”. É o leite Vigor. Antigamente não se pedia um copo de leite, pedia-se ¼ de Vigor. Era assim que muito boa gente chegava ao balcão da pastelaria a exigir a sua garrafa de vidro, mítica e símbolo de uma era de consumo de leite fresco que começou há precisamente 70 anos, com leiteiros que deixavam à porta de casa o fruto da ordenha diária. O vidro caiu, com a última garrafa a ir para o mercado em 2008, e deu lugar à embalagem de cartão comum que permitiu à marca ser distribuída em todo o país. Já sem garrafinhas frágeis com letras vermelhas, a memória coletiva persiste naqueles que lembram uma era de consumo que atravessou gerações.

O primeiro registo da marca data de 1951 não como Vigor, mas como “Leite Especial Vigor Pasteurizado”, foi assim que um grupo de empreendedores — sim, já o eram naquela altura —, mais concretamente as sociedades Martins & Rebelo e a C. Novais (Irmãos), Lda, lançaram a primeira pedra daquela que viria a ser uma das mais icónicas marcas de laticínios do país.

Surge num contexto pós-guerra, pouco propício ao negócio, mas o olho de lince deste grupo de fundadores não falhou em identificar a tendência de refúgio de muitas famílias britânicas que fugiram do conflito e das suas consequências neste eixo de Sintra-Cascais-Lisboa. “Eles sabiam que havia muitos ingleses nestas áreas e é conhecida a tendência de consumo de leite fresco no Reino Unido, já na altura por lá recebiam todos os dias o leiteiro à porta que era uma coisa que cá não acontecia”, conta Maria João Godinho, coordenadora de gestão de marcas da Lactogal, o grupo que acabou por comprar a Vigor na viragem do século. “De uma necessidade surgiu a oportunidade de começar a fazer o mesmo que em Inglaterra. Tínhamos as vacas, os clientes e os meios para fazer acontecer. Foi assim que nasceu a Vigor”.

Em 2014, a BBC contava a história da Dairy Crest, a maior distribuidora britânica de lacticínios, e como ainda em 1975 era habitual ver debaixo da ombreira da porta, por volta das 7h30 da manhã, a clientela ainda em preparos à espera do tilintar das garrafas que o leiteiro ali deixava. Por cá, a Vigor replicou essa tradição inglesa já de décadas.

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As garrafas eram distribuídas porta a porta seguindo o exemplo dos hábitos ingleses

“Ainda hoje os ingleses optam por leite fresco, em Portugal isso não acontece ainda, por comodismo ou por falta de conhecimento de causa, mas nisso a Vigor conseguiu apontar o caminho para uma introdução do leite fresco na vida das pessoas”, diz.

Miguel Esteves Cardoso, numa crónica dos anos 80, compilada no livro A Causa das Coisas que reúne uma série de textos que assinou no jornal Expresso nessa altura, escreve que “existe em Portugal um leite autêntico, branco e espesso, que ainda simboliza, de modo intacto, a privilegiada relação entre o ser humano e o ser vaca”, isto em contraponto com “aquilo a que hoje se chama ‘leite’”, escrevia num texto inteiramente dedicado à Vigor.

Odrinhas, o centro de operações leiteiras

À pequena localidade de Odrinhas, em São João das Lampas, Sintra, calhou-lhe a sorte grande na hora de mandar erguer uma fábrica. Foi lá que tudo nasceu e se manteve até já ao século XXI, muito por ser uma região mais rural e ter por perto largos campos de pasto onde as vacas já antes faziam a sua vida.

“Havia a intenção de recolher leite com alguma proximidade e portanto desde logo que os fundadores se preocuparam em manter a cadeia muito próxima — desde a recolha, preparação e distribuição do leite”, explica. “Não estamos a falar de uma zona urbana, por isso foi também importante para a comunidade da zona ter aquele incentivo económico, falando dos produtores, e também das pessoas que ficaram a trabalhar na fábrica”.

Maria João não sabe precisar quantos trabalhadores empregava a fábrica em Odrinhas, mas até ao seu fecho tinha perto de uma centena de pessoas. “Tudo tinha dimensões mais pequenas, daí a marca ter tido uma projeção maior apenas aqui na zona da Grande Lisboa, por se ter mantido muito focado na produção e distribuição aqui em redor da fábrica”.

Há ainda quem se lembre de Emídio Silva, conhecido na zona de Sintra como Ti Mafra, que trabalhava as terras todos os dias com o seu trator e que dedicou grande parte da sua vida — morreu em janeiro deste ano — também à produção de leite, que entregava na fábrica da Vigor, quando esta era ao lado de sua casa em Odrinhas.

Da fábrica partiam todos os dias leiteiros com garrafas de leite fresco, em vidro com letras vermelhas onde se lia “Leite Especial Vigor Pasteurizado”, com uma tampinha de alumínio azul. Deixavam as novas e recolhiam as antigas. Eram distribuídas em garrafas de litro, meio litro e também no icónico tamanho ¼ de Vigor. Chegavam às casas das pessoas — como quem diz à porta — naquele tal eixo Sintra-Lisboa-Cascais porque era aí que se encontravam as famílias anglosaxónicas.

A fábrica em Odrinhas abriu logo em 1951 e para manter a frescura focava a distribuição na zona da Grande Lisboa

Não tardou a que a população local percebesse o fenómeno e o provasse, no fundo. “As pessoas que moravam nestas zonas perceberam que isto estava a acontecer e com a facilidade da entrega do leite porta a porta foram aderindo à coisa, porque perceberam a que sabia o leite fresco”, explica Maria João, que conta que a população gostava da proximidade que se mantinha entre as pessoas e os produtores porque “sabiam exatamente de onde vinha o leite e quem o ordenhava”.

“As vacas da ‘Vigor’, portentosas bestas que criaram já mais de uma geração, são vacas que declaradamente não se riem (apenas dão umas gargalhadas , baixinho, quando alguém diz ‘Ucal’)”, escreveu ainda Miguel Esteves Cardoso.

Foi um ponto de partida para novos hábitos de consumo de laticínios que os portugueses não tinham. “A Vigor conseguiu ser pioneira primeiro a distribuir à porta das casas, depois a introduzir o leite fresco na alimentação regular das famílias, e nisso muito ajudou quando as garrafas começaram a aparecer nas pastelarias”, aponta.

Uma tertúlia e uma garrafa de leite

Os anos seguintes aos nascimento da Vigor, e ainda mais no pós-Revolução, ficaram marcados pelos encontros sociais, sobretudo em cafés e pastelarias, os locais onde depois da entrega porta a porta as garrafinhas de Vigor começaram a chegar logo a seguir. Eram distribuídas na zona da Grande Lisboa, isto porque leite fresco requeria, precisamente, frescura e na altura só era garantida com uma distribuição de proximidade.

“É engraçado ver essa mudança e a transição do consumo em casa para os cafés e pastelarias da Sintra, Cascais e Lisboa. Apesar de a Vigor não ser uma empresa familiar, a verdade é que acabou por atravessar gerações que criaram o hábito de beber leite fresco”, diz Maria João. Na época, conta, esses eram locais de encontro tanto entre amigos como para as famílias, havendo sempre em cima das mesas um elemento comum: a garrafa de leite. Foram esses encontros que elevaram o ¼  de Vigor à instituição de leite com nome próprio.

“Tornou-se icónico porque, de facto, correspondia a uma dose individual e foi muito bem pensado na altura pelos donos da Vigor porque era a medida certa, enquanto que para ter em casa as pessoas optavam pelas garrafas maiores”, refere. “Havia fotos da Pastelaria Versailles da altura com mesas cheias de homens a beberem leite, eram tempo de tertúlias, de encontros intelectuais. As pessoas reuniam-se à mesa para discutir a atualidade política e económica do país, era até um contexto mais masculino que não associamos imediatamente ao consumo de leite”.

Também Miguel Esteves Cardoso apelidou nessa famosa crónica o ¼ de Vigor como “uma das grandes instituições da Pastelaria Portuguesa”. E, de facto, poucos são aqueles que viveram aqueles tempos que não têm memória de um ou outro lanche acompanhado de uma garrafa de leite fresco. “O nome do leite — ‘Vigor’— não deixa margem para quaisquer dúvidas quanto ao propósito do produto. O leite ‘Vigor’ dá, como é óbvio, vigor”, lê-se na mesma crónica.

O mítico 1/4 de Vigor passou de garrafa também a cartão

Os encontros sociais rapidamente ganharam concorrência com os encontros familiares, que se expandiram. Foram as famílias que, aos finais de semana, acabaram por invadir as pastelarias da zona da Grande Lisboa. “As crianças fizeram parte desta evolução da marca, adoravam o leite branquinho nas garrafas, era uma coisa que começou a fazer parte das rotinas também fora de casa, sobretudo durante os lanches”, recorda Maria João. “Ricos, pobres, homens, mulheres, crianças, todos bebiam leite, até pela sua versatilidade. Frio, quente, simples para os mais novos ou com café aos pequenos almoços”.

Ainda hoje, conta Maria João, que as pastelaria e cafés parceiros da Vigor, que todos os dias recebem o leite fresco, não deixam que falhe uma gota à hora de abertura dos estabelecimentos, até porque “a clientela é exigente com o que bebe” e há quem não dispense ainda agora o seu pãozinho com o copo de leite ou galão — vertido não do vidro, mas da embalagem de cartão. Já lá vai o tempo.

Tempo esse em que também as gelatarias elegiam a Vigor como a marca indispensável à cremosidade dos gelados — é o caso da Santini, diz a responsável da marca, que era uma forte cliente na altura. “E mais recentemente a Artisani e a Nannarella, por exemplo”, diz. “O leite pode estar associado a uma questão sensorial e se pensarmos em retrospetiva das pastelarias de antigamente, hoje temos os baristas dos cafés a quererem usar leite fresco para os lattes, em contraposição aos galões de antes. Prova que, com o mesmo leite, pode-se acompanhar tendências ao longo de 70 anos”.

A queda da garrafa para o domínio do cartão

A garrafa de vidro é património da marca. Mas a verdade é que, com a aquisição da Lactogal e a necessidade de expansão, houve ajustes que tiveram de ser feitos para que se tornasse mais prática a comercialização da Vigor por uma área mais alargada.

“Na altura a Vigor optou por embalá-lo em vidro pela tradição que já havia e também porque era a forma como era possível conservá-lo e entregá-lo. A garrafa era por excelência o material mais adequado”, explica. “Obviamente que ao longo dos anos a Vigor foi evoluindo e a nossa preocupação, mesmo a nível de investimento de tecnologia, teve sempre a ver com a preservação e integridade máxima do leite”.

A transição para o cartão deu-se aquando da compra pelo grupo Lactogal

A mudança para a embalagens Tetra Pak deu-se aquando da integração na Lactogal, altura em que a garrafa de vidro cai — o último lote foi embalado e enviado para o mercado em 2008. Maria João explica que na altura estavam também em cima da mesa questões de segurança — sobretudo para as crianças — e também de comodidade na hora da compra em superfícies comerciais. “Abandonámos o vidro e optámos pelo cartão, ainda assim o leite continuou a ter o menor processo possível, é essa a ideia do leite fresco, uma vez que é pasteurizado a baixa temperatura para ter mais nutrientes”, refere. “Precisávamos de garantir também que o leite chegava a mais pessoas, era impossível com a garrafa de vidro. Mar por mais saudosista que se seja, as pessoas veem a garrafa como um símbolo, mas reconhecem a facilidade em ter o leite de sempre num pacote”.

A era do leite em garrafa de vidro deixou um legado, que mais não seja um legado de memórias, que hoje se mantém com o design reproduzido nas embalagens. “Foi uma decisão que se tomou para precisamente manter viva a memória daquilo que era o leite engarrafado. Na embalagem do leite estampamos o contorno exato daquelas que eram as garrafas de vidro, com direito à vaquinha e tudo”, explica Maria João Godinho.

O passado e o futuro. A compra pela Lactogal: o que mudou?

A fábrica em Odrinhas fechou no momento em que a Lactogal adquiriu a Vigor e a integrou no seu portfólio de marcas de laticínios, isto entre 2007 e 2008. O maior choque, ainda que positivo, foi o alcance — mudou sobretudo o número de pessoas que passou a beber Vigor.

O impacto de uma grande empresa numa outra que era independente e que tinha um raio de atuação muito focado na Grande Lisboa, devido à frescura do produto, foi imediato até porque as mudanças arrancaram desde o primeiro dia. A troca do vidro pelo cartão permitiu uma distribuição em massa pelo país, mas mudou também a comunicação com uma forte aposta na publicidade.

Em 2008 ainda lançaram o leite com chocolate, em 2013 foram os primeiros a lançar o leite sem lactose e em 2018 foram pioneiros no kefir. “O segredo da longevidade passa por conseguirmos ao longo de sete décadas a tradição com a modernidade, as pessoas percebem que fomos introduzindo novas coisas e que há um acompanhamento de resposta aos clientes”, repara a coordenadora.

A missão atual da marca continua a ser não deixar que a Vigor caia na lei do esquecimento, mantendo vivas as memórias de infância de muita gente que ainda hoje compra pacotes de leite fresco com 70 anos. “Acho que temos uma responsabilidade acrescida pelo facto de a Vigor ser uma marca de memória e por isso temos de manter essa presença nas pessoas:  o leite não é só o seu valor nutricional, também tem uma dimensão sensorial e é essa que nos propomos a manter”, diz Maria João. “Espero que haja mais 70 anos pelo menos de histórias para contar”.

Lembrar o passado, passadas sete décadas, requer que se tenha o olho também no futuro. Apesar das mudanças, a Lactogal quis que a Vigor mantivesse a proximidade com as comunidades locais, mantendo o abastecimento junto de pequenos produtores nacionais.

A marca de culto quer agora ‘Começar de Fresco’,  com o foco cada vez mais voltado para a sustentabilidade — mesmo sem garrafa de vidro — com uma nova embalagem de cartão feita com 93% de materiais renováveis, que permite uma redução de 41% das emissões de carbono em comparação com as embalagens standard.

As atuais embalagens da Vigor com referência à mítica garrafa de vidro, sempre impressa em cada pacote ©DR

“São operações invisíveis que têm o seu peso na marca. Há uma preocupação atual em tentar que a base da marca se mantenha, falando da comunidade local que produz leite, como se fazia em Odrinhas. Estamos a falar de leite português mas estamos a falar também de uma comunidade à volta que vibra com a marca e depende dela”, diz. “Quantas marcas começam e acabam? A nossa persistiu porque tem relevância, faz sentido, e eu acho que 2021 vai ser um ano para as pessoas redescobrirem a experiência de beber leite fresco”

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