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[Artigo originalmente publicado a 21 de abril de 2016, a propósito do 90º aniversário da rainha Isabel II, e atualizado após a notícia da sua morte, esta quinta-feira dia 8 de setembro de 2022]
A princesa que não nasceu para ser rainha
“Alguma vez conheceu a rainha?” Esta foi, muito provavelmente, a pergunta mais insólita que alguém fez a Isabel II. Enquanto passeava a pé pelas redondezas da sua residência de férias em Balmoral, na Escócia, a monarca foi abordada por um grupo de turistas norte-americanos. Um lenço na cabeça a cobrir-lhe os cabelos brancos deu-lhe uma oportunidade praticamente inédita: passar despercebida. Conta um ex-membro da equipa de segurança de Isabel II que os viajantes perguntaram se esta vivia ali perto e se, por algum acaso do destino, conhecera Sua Majestade, a rainha de Inglaterra. “Não”, atirou Isabel, que depois apontou para o segurança: “Mas ele já”.
A monarca que celebrou 96 anos de vida este ano (e soma já quase 70 de reinado) é notoriamente conhecida pela privacidade. Os traços de personalidade que são do domínio público resumem-se aos gostos, como o amor pelos cães corgi, raça já associada à realeza britânica, e os sorrisos aparentemente espontâneos que volta e meia a câmara apanha. É estranho pensar que uma figura feminina ao comando de uma nação seja de sorrisos largos, pelo que se coloca a questão: quem é a senhora de chapéus vistosos e fatos coloridos que durante o reinado mais longo do Reino Unido fez mais de 100 viagens, conheceu 15 primeiros-ministros britânicos, 13 presidentes norte-americanos e sete papas? Quem é Isabel II, a única mulher a tornar-se rainha no cimo de uma árvore?
Elizabeth Alexandra Mary não nasceu para ser rainha. A filha mais velha do príncipe Albert, segundo filho do rei George V, cresceu para gozar a vida enquanto membro da realeza e desfrutar de uma relativa privacidade. Mas quis o destino e as vicissitudes do amor de terceiros que uma jovem mulher de apenas 25 anos ascendesse ao trono, já lá vão mais de 69 anos.
Lilibet aos olhos da mãe — por em pequena não conseguir pronunciar “Elizabeth” –, Isabel foi educada em casa por tutores juntamente com a irmã mais nova, a já falecida princesa Margaret. Além de nadadora premiada e música talentosa, a jovem teve aulas de francês com governantas de nacionalidade francesa e belga, um investimento que se veio a provar útil de cada vez que a rainha recebe embaixadores ou chefes de Estado de nações com o francês na ponta da língua.
Isabel tinha apenas 13 anos quando o mundo acordou para uma segunda guerra mundial, situação que a obrigou a mudar-se, juntamente com a irmã, para o Castelo de Windsor. Desde cedo a futura rainha deu provas de vingar no papel que por acaso lhe calhou na rifa. Prova disso foi a transmissão radiofónica que dirigiu às crianças do Reino Unido quando contava apenas 14 anos. Numa voz aguda e dicção cuidada, tentou levantar a moral de quem estava refém de um conflito que parecia não ter tréguas.
Mas falar não bastava, era preciso agir. Sendo incapaz de ignorar o que se passava à sua volta, Isabel ingressou no exército para ser condutora e mecânica, cargo para o qual tirou um curso de manutenção de veículos. Escreve o Independent que ela é, muito provavelmente, a única monarca britânica da História a ter recebido o treino apropriado para mudar uma vela de ignição. A adolescência foi maioritariamente vivida nestes anos difíceis, uma realidade que (in)voluntariamente haveria de reforçar o seu sentido de dever.
Ainda de uniforme colado ao corpo, a futura rainha surgiu lado a lado com os pais e o então primeiro-ministro, Winston Churchill, na varanda do Palácio de Buckingham para celebrar o fim da guerra, a 8 de maio de 1945. Aproveitando uma onda gigante de celebração, à jovem e à irmã foi dada autorização para se perderem por entre a multidão — foi uma das poucas vezes em que Isabel passou por terceiros incógnita, irreconhecível, sem precisar de qualquer lenço na cabeça. Apenas um sorriso no rosto.
Nesta altura a monarca já adivinhava o futuro que a esperava: a vida trocou-lhe as voltas ainda em 1936, o ano dos três reis. Isabel é a filha mais velha do príncipe Albert, o filho mais novo do rei George V. A responsabilidade de dirigir uma nação cabia desde nascença ao tio de Isabel, Edward, que por amor cedeu a coroa ao fim de um reinado de apenas 325 dias. O rumo da história do Reino Unido ficaria para sempre alterado para que este pudesse viver a sua história de amor com a norte-americana “pebleia”, já duas vezes divorciada, Wallis Simpson. Isabel era, aos 10 anos, herdeira do trono.
1952: George VI dies and Elizabeth II ascends to the throne. https://t.co/UjPbALtgm3 pic.twitter.com/FVHctfEAK6
— The New York Times Archives (@NYTArchives) February 6, 2016
Foi o seu pai — interpretado pelo ator Colin Firth no filme O Discurso do Rei — quem subiu ao poder e aí permanceu até 1952, já Isabel se tinha casado com o amor de adolescência e dado à luz dois filhos. O rei que também não nasceu para o ser morreria durante o sono a 6 de fevereiro de 1952, estava a futura monarca no Quénia, numa viagem oficial em representação do pai já debilitado (sofria de um cancro nos pulmões). A jovem princesa tornou-se rainha enquanto visitava o Treetops Hotel (hotel no topo das árvores), no Parque Nacional de Aberdare, no coração da floresta queniana. Apesar de existirem teorias contraditórias quanto ao exato momento em que o marido, o Duque de Edimburgo, lhe transmitiu a triste notícia, a unidade hoteleira hoje decrépita ficou para sempre associada à realeza britânica. “Ela é a única mulher que subiu a uma árvore enquanto princesa e desceu enquanto rainha”, disse o escritor e comentador britânico William Shawcross durante um documentário da BBC dedicado à monarca.
Um casamento real
Mesmo sendo de uma rainha, a história de Isabel II tem pouco em comum com a de um conto de fadas. À postura apontada por muitos como estoica acrescenta-se a fragilidade do elo entre mãe e filhos, ligação que a profissão de soberana ajudou a fragilizar. Mas isso não impediu, ao que parece, uma jovem mulher de subir ao altar com o homem que escolhera, mesmo contra a opinião da família mais imediata e de outros círculos da realeza.
Primos afastados, os dois conheceram-se quando Isabel tinha apenas 13 anos. A ligação prevaleceu durante a adolescência da futura rainha e a 20 de novembro de 1947 Isabel casou-se com Filipe, duque de Edimburgo, na Abadia de Westminster, numa cerimónia transmitida pela rádio que fez com que cerca de 200 milhões de pessoas ficassem coladas aos aparelhos de casa.
Apesar de o casal estar apaixonado, tal como conta a BBC, a escolha da jovem princesa foi controversa. Não só Filipe era estrangeiro, como não tinha uma posição financeira favorável ou qualquer reino sobre o qual reinar. Mais: as suas irmãs estavam casadas com nazis e não foram convidadas para o casamento real. Filipe, agora o príncipe consorte da rainha Isabel II do Reino Unido, abdicou dos seus títulos e mudou de religião para fazer de Isabel sua mulher. Abdicou também de uma carreira promissora na Royal Navy de modo a apoiar a jovem rainha.
Segundo escreveu o The Daily Mail, a propósito do 90º aniversário de sua majestade, o duque de Edimburgo permanecia até então uma figura carismática e uma opinião crucial que a rainha sempre teve muito em conta. Talvez isso aconteça porque, tal como disse uma fonte à mesma publicação, Filipe sempre foi invariavelmente honesto com a rainha e provavelmente a única pessoa que a tratou como um ser humano normal.
O casamento — o mais longo da monarquia britânica — foi resistindo ao tempo, é certo, embora não tenha ficado imune aos rumores de infidelidade por parte do príncipe. Ainda assim, isso não impediu a rainha de dizer, em 1997, que “o meu marido tem sido simplesmente a minha força durante todos estes anos e tenho para com ele uma dívida maior do que aquela que ele alguma vez vai exigir, que alguma vez irá imaginar”.
O começo de um longo reinado
A responsabilidade de liderar uma nação chegou cedo para a monarca. Em 1953, Elizabeth Alexandra Mary tornou-se rainha Isabel II, com a coroação a ser transmitida pela primeira vez na televisão, a preto e branco, para 20 milhões de britânicos verem. Já antes, aquando do 21º aniversário, a rainha prometera dedicar a sua vida a esse papel numa emissão que se tornou icónica: “Eu declaro à vossa frente que toda a minha vida, seja ela curta ou longa, será dedicada ao vosso serviço e ao serviço da nossa grandiosa família imperial.” Longa seria a vida e a missão, com a rainha a atingir a marca dos 96 anos, a 21 de abril de 2022, sem abdicar do trono — ainda que tenha passado a liderança da Commonwealth ao príncipe Carlos em 2016.
Disse em tempos, numa rara entrevista, que ser rainha era um trabalho vitalício, daqueles que vêm com uma cláusula de flexibilidade de horário no contrato. “A maior parte das pessoas tem um trabalho e, depois, vai para casa. Nesta existência, o trabalho e a vida andam de mãos dadas porque não é possível dividi-lo. É um trabalho para a vida.” Num pequeno excerto disponibilizado pela BBC, é possível reconhecer a voz de Isabel quando a própria confessa que nunca teve quem lhe ensinasse a ser responsável por um reino e que o pai se foi embora demasiado cedo.
Quem reinou tanto como Isabel II?
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Segundo o Telegraph, só há cinco monarcas que, tal como Isabel II, serviram o Reino Unido por mais de 50 anos: a rainha Victoria, a trisavó de Isabel II (63 anos), Jorge III (59 anos), Henrique III (56 anos), Eduardo III (50 anos) e Jaime VI da Escócia e I de Inglaterra (58 anos). Mas dificilmente a rainha vigente da coroa inglesa será a monarca há mais tempo em serviço. Esse título pertence ao rei Sobhuza II, que governou a Suazilândia durante 82 anos, de 10 de dezembro de 1899 a 21 de agosto de 1982.
Dificilmente alguém com 25 anos se sentiria à altura de tal papel, mas são poucos os que não reconhecem o compromisso de Isabel para com uma nação que nem sempre a acarinhou. Exemplo dessa dedicação são os encontros semanais que realiza há 70 anos com o primeiro-ministro vigente. E foram muitos os primeiros-ministros que passaram pelo poder britânico durante o seu reinado, desde Sir Winston Churchill (1951-1955) a Margaret Thatcher (1979-1990), passando por Tony Blair (1997-2007) e terminando com Liz Truss, com quem teve a primeira audiência para a indigitar como primeira-ministra esta semana. Segundo o The Telegraph, estas são umas das reuniões mais secretas de sempre, envoltas num mistério tal que existe um acordo tácito para que nenhuma das partes diga publicamente o que é discutido entre quatro paredes.
Isabel II não só conheceu 15 primeiros-ministros britânicos como também 13 presidentes dos Estados Unidos da América, à exceção de Lyndon Johnson (mais recente foi o encontro com Joe Biden). Dwight D. Eisenhower foi o primeiro a recebê-la enquanto rainha, Gerald Ford dançou com ela na Casa Branca e Jimmy Carter incomodou-a ao recusar-se a fazer uma vénia perante a sua presença, preferindo beijá-la. Mas não foram apenas figuras da democracia que já apertaram a mão à rainha. Da lista também fazem parte ditadores. São exemplo o presidente sírio Bashar al-Assad, Robert Mugabe, presidente do Zimbabué durante 30 anos, e o sultão do Brunei, Hassanal Bolkiah.
Os muitos apertos de mão não são, contudo, um reflexo de ideologias, até porque não se conhece a consciência política da rainha. Ao Euronews, a biógrafa real Ingrid Seward, autora do livro O Discurso da Rainha, chegou a dizer: “A rainha atual é um símbolo de unidade, nunca falou sobre os seus pontos de vista políticos, nunca falou sobre os seus pontos de vista pessoais, está acima da política, é alguém que, neste mundo em rápida mudança, podemos ter como exemplo e é uma influência segura.”
Apenas a pandemia levou a monarca a parar. Longe vão os tempos em que cumpria centenas de compromissos no Reino Unido e dezenas no estrangeiro, isto num único ano. A isso acrescentam-se as mais de 110 viagens que já realizou ao longo das décadas, tendo feito e desfeito as malas mais do que qualquer outro monarca na história. E entre tantos destinos há uns mais preferidos do que outros: até 2016, Isabel II tinha ido 24 vezes ao Canadá, 16 à Austrália e 10 à Nova Zelândia.
As representações oficiais ganham um peso mais significativo quando em causa estão deslocações que entraram para a História por diferentes motivos: ela foi a primeira monarca do seu país a visitar a China, em 1986, onde foi fotografada sorridente na companhia do marido na icónica muralha. Seguiram-se o Brunei e a Malásia quatro anos depois. E sim, com 92 anos Isabel II ainda era capaz de se aventurar a bordo de um avião, com as alturas a serem uma espécie de segunda morada real.
God save the queen, reclamam os ingleses há mais de meio século. E Deus protegeu-a desde 1953 até 2022. Nenhuma monarquia britânica viveu para ver os cabelos brancos sucederem-se às rugas e à pele engelhada, escreve o The Guardian. Podemos acrescentar também que nunca nenhuma monarquia britânica chegou tão enérgica à terceira idade. A 9 de setembro de 2015, quando o relógio marcou as 17h30 (hora portuguesa), Isabel tornou-se a monarca com o reinado mais longo de sempre no Reino Unido, pondo elegantemente a um canto o recorde detido pela sua tetravó, Victoria, que serviu o reino durante 63 anos e 217 dias. Os números contam uma segunda realidade: em 2011, Carlos tornou-se o herdeiro do trono que está há mais tempo à espera da sua vez, ele que um ano depois admitia — “estou a ficar sem tempo”.
O “annus horribilis” e a morte da princesa Diana
“Annus horrribilis”, que em latim quer dizer “ano horrível”, foi a frase usada pela própria rainha para descrever 1992. E, de facto, este foi um ano particularmente conturbado, marcado pela separação de três dos seus quatros filhos — Carlos, Ana e André –, mas também por um incêndio que consumiu parcialmente o Castelo de Windsor. Não só as separações reais encheram páginas sucessivas nos tabloides britânicos e suscitaram escândalos associados, como a reconstrução do castelo levantou polémica tendo em conta o uso de fundos públicos. “1992 não é um ano para o qual possa olhar com especial prazer. Nas palavras de um dos meus secretários mais queridos: acabou por ser um annus horribilis”, disse a rainha numa transmissão televisiva.
Ao longo de um reinado chegou ao jubileu de platina, Isabel viu muita coisa acontecer — desde o fim de um império colonial à queda do muro de Berlim –, mas também esteve sujeita a um vaivém de popularidade. A monarquia britânica nem sempre gozou de boa fama. Se o casamento real entre o príncipe William e Kate Middleton em abril de 2011 veio serenar os ânimos — a cerimónia teve lugar na Abadia de Westminster, em Londres, perante cerca de dois mil convidados e 24 milhões de telespetadores só no Reino Unido –, no passado foi a união entre Carlos e Diana que esteve no centro de muitos e acesos rumores. E a fama da monarquia haveria de sofrer outro duro golpe com o desaparecimento da princesa do povo.
A morte de Diana de Gales chocou o mundo quando, no dia 31 de agosto de 1997, foi vítima num acidente de automóvel em Paris — o veículo em que seguia era perseguido por paparazzi, perdeu o controlo e acabou por chocar fatalmente contra um pilar no túnel Pont de l’Alma. Perante a trágica notícia, a rainha tinha intenções de permanecer no Castelo de Balmoral, na Escócia, e aí manter a rotina com os príncipes William e Harry — a intenção era fazer o luto em privado. A nação não gostou da alegada frieza da monarca e o jornal Express chegou a escrever “mostre-nos que se preocupa, senhora” (Ma’am, em inglês). Depois de muito zunzum, a princesa do povo acabou por ter direito a um funeral de Estado e Isabel II falou publicamente sobre Diana — a qual nunca se entrosara na família real — admitindo que havia lições a retirar do acidente que a vitimou.
Chapéu a chapéu, uma moda realmente vistosa
Isabel cresceu a usar casacos tweed e vestidos rodados, referências de um estilo clássico que lhe foi imposto desde cedo — ela e a irmã Margaret eram vestidas de forma idêntica, igualmente régia. Menos formal eram as malhas de lã e os kilts que optavam por roubar do armário nos momentos em que podiam ser apenas duas crianças em vez de duas princesas de obrigações múltiplas. Com o tempo isso haveria de mudar.
Fatos coloridos — sejam eles de um violeta vivo ou de um amarelo de fazer corar o sol –, chapéus arquitetónicos e colares de pérolas fizeram parte de uma equação de moda que permaneceu inalterada. As tonalidades garridas e monocromáticas que compunham o guarda-roupa de Sua Majestade tinham razão de ser e não passavam propriamente por uma escolha pessoal. “Têm de me ver para acreditarem que eu existo”, disse a rainha em tempos, sinalizando o porquê dos seus visuais. A ideia era pura e simplesmente dar nas vistas, e é a pensar nisso que Isabel recusava usar o tom bege, uma cor que não permitia que ela se destaque entre a multidão.
On this date in 1952, Elizabeth II was proclaimed Queen of the U.K. 64 years later and she's done it all & in style pic.twitter.com/D95kDAxdIC
— MsMojo (@MsWatchMojo) February 8, 2016
Promessa feita é promessa cumprida. Em 2012, a edição britânica da Vogue publicava um gráfico onde dava conta das cores mais utilizadas pela rainha no decorrer de um ano. À data, os resultados falaram por si: 29% azul e 10% cor-de-rosa, enquanto 13% das vezes optou por um padrão floral. E se ao visitar escolas a rainha vestia uma cor divertida, o preto ficava reservado para os momentos em que é preciso expressar condolências. Opções não faltavam e regras de etiqueta também não. Angela Kelly que o diga: estilista da monarca desde 1994, explicou num livro lançado em 2013 que cria pelo menos quatro esboços para um tecido em particular.
Mas falar do guarda-roupa real é falar essencialmente de dois nomes, isto é, dos costureiros Norman Hartnell e Hardy Amies. O primeiro desenhou-lhe o vestido de casamento e aquele que Isabel levou no dia da coroação, além de confeções em cetim que pontuaram diversas ocasiões formais; já o segundo ficou encarregue dos visuais do dia-a-dia. O certo é que durante as seis décadas que se seguiram à coroação Isabel nunca cometeu um deslize de alfaiataria, escreve o The Telegraph, nem mesmo considerando os muitos chapéus com que saiu à rua.
Quando Isabel II veio a Portugal
Uma multidão de pessoas encheu as ruas de Lisboa para ver a rainha de Inglaterra passar. Estávamos em fevereiro de 1957 quando Isabel II visitou Portugal pela primeira vez a mando de uma visita oficial. A monarca foi então recebida pelo Presidente da República Craveiro Lopes e pelo Presidente do Conselho, Oliveira Salazar. A visita aconteceu entre 18 e 23 de fevereiro, apenas cinco anos após a coroação de Isabel II. O cortejo que então fez virar muitas cabeças foi desde o Cais das Colunas até ao Parque Eduardo VII e contou com a presença de milhares de pessoas, tal como se pode ver no vídeo abaixo.
Segundo se lê num documento do Museu da Presidência da República, “muitos outros ‘momentos altos’ assinalaram a visita da Rainha Isabel II a Portugal: o faustoso banquete no Palácio da Ajuda — onde brilharam os vestidos e os fatos, as joias e as condecorações (…); a récita de gala no Teatro S. Carlos, as efusivas manifestações populares de boas-vindas; a colorida receção de campinos em Vila Franca de Xira, ou, ainda, a simbólica visita ao túmulo de D. João I e D. Filipa de Lencastre, no Mosteiro da Batalha, cujo casamento, em 1387, selou o tratado de Windsor entre Portugal e a Inglaterra”.
Esta não foi, porém, a única vez que Isabel pisou o chão de Camões e do pé direito de Cristiano Ronaldo. A visita seguinte aconteceu em 1985, já Ramalho Eanes era Presidente e a Revolução dos Cravos havia destronado uma ditadura.
Isabel e o elixir da juventude
Foram 96 anos de vida que fizeram muitos questionar: qual o segredo da vitalidade de Isabel II? A BBC interrogou-se sobre o mesmo e apontou algumas respostas, sendo os bons genes uma primeira opção. Enquanto o pai da rainha, George VI, morreu aos 57 anos, a mãe viveu para completar 101. A isso acrescentam-se os bons hábitos alimentares, com o ex- da rainha, Darren McGrady, a garantir à imprensa que quando Isabel não estava de serviço em banquetes ou jantares oficiais preferia comida simples, como um bom prato de frango grelhado com salada. “Ela é muito disciplinada. Não come batatas, arroz ou massa ao jantar.”
Também Dickie Arbiter, ex-assessor da rainha, comentou que Isabel nunca bebia muito e que raras foram as vezes em que passou de um primeiro copo. Além disso, a rainha sempre manteve uma atividade física regular, montando a cavalo em Windsor ou em passeios pedestres durante o dia — a monarca deixou de andar a cavalo desde o início de setembro de 2021. “Ao contrário de muitos trabalhadores modernos, ela não fica sentada à secretária durante todo o dia”, recordou o ex-assessor.
Como se isso não bastasse, a chefe de Estado do Reino Unido tem sempre a mente ocupada ao receber documentos governamentais de vários países. “Ela lê e responde a correspondência, prepara audiências e fala com todo o tipo de pessoas. Tem receções que variam da saúde às artes e à política e passa a primeira hora das festas de jardins a falar com pessoas. A agenda dela é implacável”, concluiu. Isabel II, pelos vistos, também o era.
Um Megxit e um funeral depois
O jubileu de platina assinalou-se com pompa e circunstância em maio deste ano. Mas o facto de Isabel II ainda ter participado nessa celebração não significava já que o clã não acusava sinais de desgaste. A morte de Filipe, a 9 de abril de 2021, foi um duro golpe para a matriarca. Na existência de Isabel II abriu-se um vazio, parafraseando o príncipe André. A rainha e o seu consorte fariam, em novembro desse mesmo ano, 73 anos de casados.
O certo é que poucos momentos têm marcado tanto a imagem pública da família real como os casamentos. No final de 2017, a notícia do noivado de Harry e Meghan Markle deixou o mundo em alvoroço. Afro-americana, atriz e divorciada — ela representava um misto de progresso e ameaça para a estrutura centenária. A cerimónia realizou-se no ano seguinte, a 19 de maio, em Windsor — um conto de fadas contagiante que renovou os mais entusiasmados votos na monarquia britânica. Exultante, a monarca casava mais um neto, embora a história de Harry e Meghan reservasse ainda vários dissabores.
Aos primeiros colaboradores demissionários, os sinais de que uma tempestade mediática (não no bom sentido) voltaria a assolar a família. O litígio entre os Sussex e os tabloides adensou-se e a infelicidade de Meghan veio à tona num documentário transmitido pela ITV no final de 2019. O momento abriu caminho para o Megxit. Com Harry e Meghan de partida para o Canadá e prontos para abandonar os papéis de membros seniores da família real, o novo vocábulo assentou que nem uma luva. Para a História ficará a reunião que Isabel II, Carlos, William e Harry em Sandringham, em janeiro de 2020.
“A minha família e eu apoiamos inteiramente o desejo de Harry e Meghan de criarem uma nova vida […] Embora preferíssemos que se mantivessem a trabalhar a tempo inteiro como membros da família real, respeitamos e entendemos a sua vontade de levar uma vida mais independente […]”, reagiu a monarca em comunicado, poucos dias após o anúncio da retirada. Mas qualquer indício de remate seria meramente ilusório.
Decorrido um ano, já com uma vida totalmente separada dos Windsor, os Sussex voltariam à carga, em plena consolidação do Megxit. Numa entrevista a Oprah Winfrey, as revelações sobre a vida dentro do palácio caíram como uma bomba do lado de cá do Atlântico — racismo, saúde mental e litígio familiar provocaram “horror e consternação”. Perante uma crise que urgia gerir, Buckingham voltou a pronunciar-se: as questões levantadas eram preocupantes e seriam alvo de investigação, no recato da família como sempre caracterizou a estrutura liderada por sua majestade. No texto, uma ressalva: Harry e Meghan continuavam a ser “membros muito queridos da família”.
Mas esta não foi a única dor de cabeça com que Isabel II teve de lidar recentemente. O verão de 2019 foi também o momento em que o multimilionário norte-americano Jeffrey Epstein foi preso nos Estados Unidos por tráfico e abuso sexual, uma teia complexa que acabou por envolver o príncipe André, um dos filhos da rainha de Inglaterra. A monarca nunca se pronunciou sobre o tema, mas em novembro desse mesmo ano, foi o próprio príncipe a conceder uma entrevista à BBC. O desastre foi além do que se esperava, com o duque de Iorque a defender-se de forma pouco sustentada, quer das ligações a Epstein, quer das acusações feitas por Virginia Guiffre, com quem se terá envolvido sexualmente quando esta ainda era menor.
Juiz marca audiência dos advogados do príncipe André nos EUA para janeiro
Poucos dias depois, surgia o anúncio de que o príncipe havia abandonado as funções públicas, admitindo que o seu envolvimento no caso Epstein estava a causar um “grande transtorno” à família real. O caso não perdeu fôlego e só terminou com um acordo judicial entre o filho mais novo de Isabel II e a alegada vítima, Virginia Giuffre.
Em 2020, a pandemia de Covid-19 interferiu diretamente na agenda real. Logo em março, Isabel II isolou-se no Castelo Windsor sob um apertado controlo e com um rol de funcionários resumido ao essencial. As aparições passaram a ser raras, mas em abril de 2021, tomadas ambas as doses da vacina contra o novo coronavírus, a rainha surgiu bem disposta naquele que foi o primeiro compromisso de sua majestade em cinco meses. Acabaria por ficar infetada em fevereiro, mas sobreviveu à doença, que apenas lhe provocou “sintomas ligeiros”. A monarca acabaria por morrer no seu lugar preferido, o castelo de Balmoral, a 8 de setembro de 2022.