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Tiago Couto/Observador

Tiago Couto/Observador

A história de Manuel Guicho: há mais de 40 anos a mandar no palco do D. Maria II

O diretor de cena do Teatro Nacional é um dos mais antigos profissionais em atividade. No Dia Mundial do Teatro, viajamos pelas memórias de Manuel Guicho, da Revolução a "Passa por mim no Rossio".

Assim que chegamos ao palco do Teatro Nacional D. Maria II (TNDMII) Manuel Guicho está a colocar líquido nas máquinas de fumo que servem “Frei Luís de Sousa”, encenado por Miguel Loureiro, e que está nesta morada até dia 7 de abril. É a quarta vez que faz este espectáculo: “Gosto muito de fazer espectáculos pela segunda vez, pelo menos duas vezes, sendo que o ‘Frei Luís de Sousa’ já fiz quatro. Embora duas não fossem produções nossas, tirando esta a outra foi do Carlos Avillez, lá para 95 ou 96. E dessa vez foi mais pesado, os adereços, os figurinos, vinte e tal atores, tudo o que está indicado no texto estava na peça, aqui não, menciona-se, mas não está lá”, diz. Manuel Guicho é um dos mais antigos profissionais de teatro em Portugal, é diretor de cena do TNDMII há 41 anos e está no teatro há 45. A propósito do Dia Mundial do Teatro, recuperamos a sua história.

A forma particular e engraçada com que fala é só mais um dado na sua pinta castiça, o bigode ajuda, claro – daqueles que já não abundam por aí. É transmontano e veio para Lisboa aos 11 anos, cidade onde a mãe já estava. A infância “tinha poucas coisas, era a escola, ajudar os avós na horta e pouco mais que isso”. Assim que acabou a quarta classe veio para a capital, trabalhar numa mercearia. Ou seja, nada na sua infância indicava que viria a ser alguém com tanta história no panorama teatral português: “Não, de maneira nenhuma. Em 1974, quando se deu o 25 de Abril, um amigo que conhecia do café perguntou-me se queria fazer umas mutações de cena na revista no Teatro ABC. Entretanto, ele teve que sair e eu fiquei a substituí-lo nas mudanças de cenário e quando este teatro reabriu vim para aqui. O senhor Ribeirinho veio a ser o primeiro diretor desta casa e trouxe o contra-regra e trouxe-me a mim”, explica.

“Acho que não se percebe [o meu trabalho] e é bom que não se perceba.” Foto: Tiago Couto/Observador

Contra-regra? Pois, sempre foi este o nome dado a este profissional, a pessoa que marca as entradas e as saídas de cena dos atores, que se responsabiliza pela mudança de cenários, que é, como Manuel, confirma, “a autoridade máxima do palco”, uma espécie de faz-tudo durante toda a preparação e carreira de um espectáculo. “O nome é que mudou, antes chamava-se contra-regra e hoje chama-se diretor de cena, mas as funções são as mesmas. Quando há um espectáculo em produção, o diretor de cena acompanha o processo desde o seu início até ao final do espectáculo, toda a parte dos ensaios, do espectáculo. O diretor de cena é das primeiras pessoas presentes, está lá a prestar apoio à companhia, ao encenador, aos atores, a toda a equipa criativa. Procurar tudo o que o encenador precisa para os ensaios”, clarifica.

E para que se perceba ainda melhor as suas funções, façamos uma analogia com o árbitro de futebol, aquele de quem se quer tudo menos destaque. O mesmo se aplica à direção de cena: quanto menos se conseguir perceber uma assinatura nesse sentido, quanto mais normalmente o espectáculo correr, melhor: “Acho que não se percebe e é bom que não se perceba. O que interessa é que o espectáculo corra o melhor possível sem que se note nada de anormal, aí o diretor de cena fez bem o seu trabalho”.

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O “Frei Luís de Sousa” agora em cena do D. Maria II (Foto de Filipe Ferreira)

Manuel Guicho está no TNDMII desde que o equipamento foi reaberto, depois do grave incêndio de 1964. Em 1978, já percorria aqueles corredores, que por certo deve conhecer como poucos. O primeiro espectáculo em que trabalhou nesta casa foi precisamente a estreia dupla, em simultâneo, que marcou a reabertura do TNDMII: “O Alfageme de Santarém” – “que era trabalhoso, tinha várias coisas, espadas, adereços, varas do alfageme, etc”, diz – encenação do Ribeirinho (diretor artístico de então) e “Auto de Geração Humana”, de Gil Vicente, encenação de Carlos Cabral.

"Se posso nomear algum que me marcou, talvez seja o ‘Passa por mim no Rossio’, porque foi o espectáculo que esteve mais tempo em cena, foram dois anos em cena, mais os ensaios e a preparação foram três. Portanto, lembro-me sempre deste."

Um elenco de trinta atores que se dividia pelas duas peças, aquele “tudo-à-grande” que é impossível não recuperar. Sobretudo estando nós perante alguém que viveu tudo isso, mas que garante não lhe parecer que o teatro tenha mudado assim tanto: “Era um bocado diferente, sim, não muito, mas um bocado, não havia as ferramentas que existem agora mas não é com as ferramentas que a gente faz o espectáculo. Se é preciso mudar o cenário tenho que ir lá empurrar, sou eu que meto o líquido para as máquinas deitarem fumo, portanto, sim a tecnologia dá-nos mais conhecimentos, mas as práticas são basicamente as mesmas”.

Ainda que os tempos sejam, notoriamente, outros. A formalidade parece ter caído, tal como uma rígida e clássica forma de fazer: “O ambiente tem que ver com as pessoas, as pessoas é que fazem o ambiente, desde que as pessoas se deem bem… mas sim, há diferenças. Era muito mais político, mas não sei se hoje também não é. Era talvez um ambiente mais fechado, mais formal, agora não, faço todo o tipo de espectáculos, antes não havia o experimentalismo que existe agora”, conclui o diretor de cena.

[Manuel Guicho foi diretor de cena na adaptação de Christiane Jatahy de “As Três Irmãs”, em 2018:]

Manuel Guicho não consegue dizer em quantos espectáculos já participou, são contas difíceis de fazer. Outras mais acessíveis são aquelas em que se dispensa calculadora e dedos das mãos, são aquelas em que assume não ter qualquer preferência por espectáculos com mais ou menos cenário, com mais ou menos atores, para Manuel Guicho, é-lhe igual: “Faço os espectáculos que o encenador entende, se ele acha que deve ser assim ele terá as suas razões. Já fiz espectáculos muito parecidos e outros totalmente diferentes, já fiz três ‘As Três Irmãs’, uma delas foi o ano passado, com a Christiane Jatahy e não tinha nada que ver com o que já tinha feito. Já tinha feito uma do Nuno Cardoso e mesmo essa também não tinha nada que ver com a outra vez que fiz, em 1980, com encenação da Fernanda Alves e do Costa Ferreira, que tinha os três quartos e o palco ia girando, tínhamos 30 atores, os militares todos. Dá-me muito gosto pensar e fazer essa comparação, sabe muito bem”

“Hoje em dia já não há filas, só no Dia Mundial do Teatro, não é como no ‘Passa por mim no Rossio’”. Foto: Tiago Couto/Observador

Voltando às contas, outra vez menos exigentes, perguntamos a Guicho se, com tanto por onde escolher, consegue falar de alguns que o tenham marcado particularmente. “Há poucos espectáculos em que eu diga: este espectáculo foi uma estucha. Mas se posso nomear algum que me marcou, talvez seja o ‘Passa por mim no Rossio’, porque foi o espectáculo que esteve mais tempo em cena, foram dois anos em cena, mais os ensaios e a preparação foram três. Portanto lembro-me sempre deste. Começámos em 90, estreou em 91 e terminámos em 93 no Porto, no São João. Era um espectáculo que era para ficar até Junho, tendo estreado em maio e no dia seguinte, quando chegámos aqui, a fila para os bilhetes chegava à porta, e portanto pensámos que não ia até junho, ia até ao fim do ano. O êxito foi tanto que não parou, levámos o espectáculo 45 dias para o Funchal, no Casino da Madeira”.

Encenado por Filipe La Féria, “Passa por mim no Rossio” era um espectáculo de revista que marcou aquele período do teatro comercial português. Responsável até pela mudança do Teatro São João para Teatro Nacional São João: “A ideia era que fosse ao São João, no Porto, mas não havia condições. Portanto o ‘Passa por mim no Rossio’ é responsável pelo São João se ter tornado um teatro nacional, não sei se as pessoas sabem disto, é que na altura o São João era privado, foi comprado pela Secretaria de Estado da Cultura, Santana Lopes era um dos interessados em criar um teatro nacional no Porto e quando fomos ver o teatro não havia condições, mas foi adquirido e fizeram-se obras para o espectáculo ser apresentado ali. Esteve quase sempre esgotado”, conta.

"Conheço basicamente aquilo que passa aqui, porque não tenho tempo para ir ver outras coisas. Às vezes nem os espectáculos da Sala Estúdio consigo ver porque estou aqui na Sala Garrett, ou vice-versa.”

O diretor de cena, que assegura ficar sempre triste quando um espectáculo termina, ou até na semana antes, antevendo já as saudades, admite que com o final de “Passa por mim no Rossio” até ficou aliviado: “Confesso que nesse já estava um bocado cansado quando acabou”. A verdade é que muitos foram os que passaram por Manuel Guicho no Rossio. É amigo e viu crescer alguns dos melhores profissionais do teatro. É claro que atualmente – a não ser agora no Dia Mundial do Teatro, em que toda a programação tem entrada livre no TNDMII – já não se fazem filas para comprar bilhetes. As coisas mudaram, mas Manuel Guicho continua, diz ele, a ser um sortudo, continua a ver salas cheias: “Tive a sorte de nesta temporada começar um espectáculo, ‘À espera de Godot’, na Sala Estúdio, que esteve sempre esgotado, até ao fim. Depois passei para o ‘Alice no País das Maravilhas’, estreámos dia 27 e esteve sempre esgotado. É claro que hoje em dia já não há filas, só no Dia Mundial do Teatro, não é como no ‘Passa por mim no Rossio’”.

[a cena de abertura de “Passa por mim no Rossio”:]

Também pelo Rossio e por Manuel Guicho passaram todos os diretores do TNDMII depois da sua reabertura: Ribeirinho, Lima de Freitas, Braz Teixeira, Afonso Botelho, Ricardo Pais, Agustina Bessa-Luís, António Xavier, Carlos Avillez, José Amaral Lopes, João Grosso, António Lagarto, Diogo Infante, João Mota e Tiago Rodrigues. Há preferidos? “O último. Mais a sério, não tenho razões de queixa de ninguém, com o Tiago tenho uma boa relação, claro, até porque é uma pessoa muito mais aberta do que os outros, também porque é mais novo. Comparativamente posso falar do Diogo Infante, que também é novo e que se estreou aqui comigo. Também me dava muito bem com o João Mota. São pessoas diferentes, mas com quem me dei bem, sempre. Quando o Tiago foi escolhido e tomou posse disse-lhe logo: ‘Tiago, vê lá se ficas pelo menos dois mandatos que eu já não tenho pachorra para aturar mais diretores’”, brinca.

“O que eu faço seria difícil de retratar em palco”. Foto: Tiago Couto/Observador

Então e se Tiago Rodrigues se lembrar de fazer com Manuel Guicho algo à imagem do que fez com Cristina Vidal, a ponto histórica da casa em quem se baseou para fazer “Sopro”, brilhante espectáculo estreado no Festival d’Avignon em 2017? “Não estou a ver, quer dizer, lá maluco é ele, inventa mil e uma coisas. O que queria dizer é que não foi fácil transpor aquilo para o teatro, mas comigo seria muito mais difícil, é uma questão de trabalho, o que ela faz anda com ela, o que eu faço pode andar ou não andar, seria mais difícil de retratar”.

Cristina Vidal, a última ponto no teatro. “A profissão vai morrer comigo”

Aos 66 anos, Manuel Guicho está quase na idade da reforma. Garante não saber o que vai fazer depois. Mas tendo em conta que o seu trabalho o impossibilitou de ver teatro a não ser aquele que passava pelo TNDMII – “conheço basicamente aquilo que passa aqui, porque não tenho tempo para ir ver outras coisas. Às vezes nem os espectáculos da Sala Estúdio consigo ver porque estou aqui na Sala Garrett, ou vice-versa” – aqui fica a nossa dica: é ir ao teatro, Manuel. Mas se estiver cansado, a gente percebe.

Fotografias: Tiago Couto

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