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Houve uma mudança acentuada no consumo musical de há vinte anos para cá: antes as tabelas de vendas eram dominadas por rapazes (zangados ou hedonistas) de guitarras; agora são dominadas por hip-hop ou reggaeton ou funk da favela. Anitta é um dos nomes que protagoniza esta contemporaneidade
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Houve uma mudança acentuada no consumo musical de há vinte anos para cá: antes as tabelas de vendas eram dominadas por rapazes (zangados ou hedonistas) de guitarras; agora são dominadas por hip-hop ou reggaeton ou funk da favela. Anitta é um dos nomes que protagoniza esta contemporaneidade

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Houve uma mudança acentuada no consumo musical de há vinte anos para cá: antes as tabelas de vendas eram dominadas por rapazes (zangados ou hedonistas) de guitarras; agora são dominadas por hip-hop ou reggaeton ou funk da favela. Anitta é um dos nomes que protagoniza esta contemporaneidade

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

A pop, o corpo e a liberdade entre gerações: o que aprendemos com Anitta?

O concerto no Rock in Rio Lisboa e as reações que se seguiram voltaram a mostrar o óbvio: a cantora brasileira é um exemplo perfeito de como a música pop reflete e constrói comportamentos sociais.

Se a internet estiver correta, houve um rapaz na primeira fila do Parque da Bela Vista, na noite de domingo, 26 de junho, que esticou o braço na direção do palco, empunhando uma bandeira; a artista pegou na bandeira, os espectadores tiraram fotos e colocaram na web e os internautas enlouqueceram: como é possível que uma artista brasileira, que fala português, venha ao Rock in Rio Lisboa e segure em palco uma bandeira DE ESPANHA?

Uma das regras das querelas online é que nenhuma discussão permanece durante muito tempo no lugar onde nasceu: como um rio, o diferendo espalha-se por diferentes braços onde novas controvérsias florescem, conversas paralelas crescem junto às novas margens, sendo que este rio nunca chega à foz, apenas se fragmenta em mais e mais discussões concentradas em redor de dois ou três pontos particularmente fraturantes, pelo menos para aqueles que os discutem.

Assim, a controvérsia acerca da legitimidade de uma artista brasileira que canta em português pegar numa bandeira espanhola que lhe foi oferecida por um fã (espanhol, de acordo com a internet) e agitá-la em palco subdividiu-se rapidamente em outras duas discussões ontológicas profundas: será Anitta, que passa uma boa parte do seu tempo em palco de costas para o público a abanar o rabo, uma (e cito da internet) “porca”? E, noblesse oblige, seria aquilo que Anitta estava a cantar efetivamente música?

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Desde tempos imemoriais que as mesmas pessoas que retorciam os olhos quando ouviam os seus pais, tios e avós começar uma frase por “No meu tempo” acabaram, décadas depois, por começar frases por “No meu tempo”. No meu tempo, a internet era coisa de jovens; hoje, está cheia de maiores de 40 e 50 ou, no caso do Facebook, 60 e 70. Estas pessoas passaram uma boa parte de domingo a escrever coisas como “No meu tempo havia músicos que tocavam instrumentos e os cantores sabiam cantar e não passavam todo o espectáculo de costas para o público a abanar o rabo”.

É possível. Elvis, por exemplo, só passava alguma parte do tempo a abanar o rabo – as outras partes do tempo passava-as a abanar a anca em movimentos pélvicos considerados obscenos à época; ou então estava demasiado drogado para se mover. James Brown passaria quando muito metade do tempo de costas para a audiência – 50% dos quais a abanar o rabo, enquanto os outros 50% lhe serviam para apontar o dedo a um músico que falhasse uma nota (e por conseguinte iria ter de passar multa). É difícil dizer quanto tempo Prince passou de costas para o público, tendo em conta que em boa parte das suas atuações estava a simular coitos (deitado por cima de uma bailarina, em pé por trás de uma bailarina, de lado com bailarinos, em comboinho com bailarinas e bailarinos). No entanto, quando Prince se virava de costas para a audiência, não era incomum que as calças estivessem abertas e mostrassem as nádegas do criador e um fio dental.

"Elvis" - The Comeback TV Special James Brown Performs At Wembley Arena in London

Elvis, James Brown, Prince e Iggy Pop foram considerados maus exemplos morais, como Mick Jagger, dos Stones. Mas o tom das críticas muda quando são mulheres

Michael Ochs Archives

Talvez esteja errado quanto a isto, mas a única certeza que podemos ter acerca de nudez no mundo do espectáculo é que até muito recentemente nunca Iggy Pop esteve vestido com uma camisa – por oposição, Beyoncé nunca esteve de mamas ao léu. Ninguém chateia Iggy Pop por estar de tronco nu, mas muita gente comenta, em tom pejorativo, as diminutas roupas que Beyoncé escolhe para se tapar (também há muito boa gente que agradece a Beyoncé as diminutas roupas que esta escolha para se destapar).

O corpo na pop – seja mainstream ou não – sempre foi um local de batalha. Os mencionados Elvis, Brown, Prince e Pop foram considerados maus exemplos morais, como Mick Jagger, dos Stones (que imitou os passos de Elvis, de Brown e de Tina Turner) também o foi. Mas o tom das críticas muda quando são mulheres: Madonna deve ter ouvido todos os insultos ao cimo da Terra (e, consciente disso, capitalizou nos insultos). Mas teve o condão de demonstrar que uma mulher pode exibir a sua sexualidade e ter ainda assim êxito – abrindo as portas para as Beyoncés, as Britneys, as Rihannas (que surgia de top transparente no vídeo de “Work”) e, mais tarde, as Nicki Minajs deste mundo.

Menciono Nicki Minaj porque há semelhanças entre ela e Anitta – ambas simbolizam a ascensão do maior ícone atual da pop: o rabo. Não é um acaso: Minaj fazia uma espécie de r’n’b sensual ancorado no hip-hop, enquanto Anitta é uma versão suave e mainstream (sim, leram bem, suave e mainstream) do funk brasileiro. Se perguntarem a qualquer miúdo ou miúda entre os 12 e os 30 o que é funk, eles respondem que é o que a Anitta faz, e muito provavelmente nem sabem que funk é um termo americano que outrora designou a música de Brown, dos Funkadelic ou de Prince.

Por norma, os géneros musicais, quando nascem, abordam os temas queridos dos seus criadores – uma forma pomposa de dizer que os pioneiros falam do que está à sua frente. E o que estava à frente dos pioneiros das favelas era o tráfico de drogas, tiros e sexo. Sendo a pop, por excelência, uma arena onde cada um define a sua identidade, é mais que natural que exibir qualidades sexuais tenha servido de veículo de integração na comunidade.

Isto porque houve uma mudança acentuada no consumo musical de há vinte anos para cá: antes as tabelas de vendas eram dominadas por rapazes (zangados ou hedonistas) de guitarras; agora são dominadas por hip-hop ou reggaeton ou funk da favela – o mundo negro e latino são hoje mais monetizáveis que toda a música herdada dos Beatles e dos Stones. Tendo em conta que Beatles e Stones, por sua vez, já haviam pilhado na música negra (em particular os blues, mas também a country e o funk, no caso dos Stones), este é um dado positivo: significa que os nativos dos contextos culturais aprenderam a vender, que são mais aceites, em vez de verem réplicas suas serem comercializadas por brancos. Quem nasce na favela e faz música na favela pode hoje ser uma estrela global (e Anitta, como Rosalía, são estrelas globais, de Espanha aos EUA, passando pela América Latina).

Aquilo a que chamamos funk da favela tem paralelismos com o hip-hop: como este, começou por designar festas espontâneas (nas favelas brasileiras), em que o sistema de som consistia em dois pratos e um microfone, que um MC usava para gritar palavras de ordem. Na década de 80 o som aproxima-se do Miami Bass, um som eletro com graves poderosos, que ainda hoje domina o som do que chamamos funk da favela.

Na base desse som está uma máquina de ritmos, o Roland 808, que já teve todo o tipo de uso (da house à música industrial) e que produz o que podemos qualificar como linhas de baixo sintetizadas, aquele som cavo na parte de baixo do espectro sonoro do funk da favela original, antes de começarem a surgir as estrelas mundiais.

Madonna 62nd Annual GRAMMY Awards - Show

Tal como aconteceu com Madonna ou Beyoncé, faz sentido que uma miúda de 15 anos tenha hoje como heroínas Rosalía e Anitta, porque elas reclamam para si as rédeas do seu destino e do seu corpo.

Getty Images

Por norma, os géneros musicais, quando nascem, abordam os temas queridos dos seus criadores – uma forma pomposa de dizer que os pioneiros falam do que está à sua frente. E o que estava à frente dos pioneiros das favelas era o tráfico de drogas, tiros e sexo. Sendo a pop, por excelência, uma arena onde cada um define a sua identidade, é mais do que natural que exibir qualidades sexuais tenha servido de veículo de integração na comunidade. Se crescemos rodeados de pessoas que leem Proust, acabamos por saber o que é uma madalena; se crescemos na favela, aprendemos a mexer o rabo.

Nada disto é novo: achamos a bossa-nova um exemplo de classe, mas é bom lembrar que esta nasce do samba e do jazz, e que ambos os géneros nasceram em locais pobres, serviam para dançar e eram – em particular o samba – profundamente sexuais. Se acham Anitta sexual, olhem para uma sambista e as roupas que usa (quando usa). A única diferença é que o funk da favela – como algum hip-hop praticado no feminino – optou por celebrar o rabo, em particular os rabos grandes (em termos crassos, ou se preferirem, nos termos do hip-hop masculino: os rabos das negras, por oposição aos rabos magrinhos das brancas). Nada mais comum que definir o que é nosso como sendo o melhor. No caso, um tipo de rabo.

De modo que muito antes de Miley Cyrus tornar o twerk uma coisa mainstream para os brancos, já virar de costas e mexer as nádegas como se estas estivessem a levar pequenos electro-choques era uma forma de afirmação feminina, uma maneira de uma rapariga dizer que faz o que quer com o corpo e sabe fazê-lo. No século XXI, o fenómeno começa a espalhar-se: MIA sampla o funk carioca em “Bucky Done Gun”, enquanto o seu então namorado Diplo edita coleções de funk carioca e passa faixas do mundo nos seus DJ sets.

Não há nada de errado em ouvir-se apenas a música com que se cresceu na adolescência. Mas os adolescentes vão sempre ouvir a música que mais lhes fala, em todos os tempos e gerações, sobretudo quando é diferente daquela que os mais velhos ouvem. E que ninguém faça de conta que noutros tempos os "heróis" eram santos. Não eram. Eram só homens a exibir-se – e agora são mulheres.

Isto significa que na Europa o funk carioca entra pela porta do cavalo: os hipsters, os melómanos, aquele tipo de gente que está sempre à procura de novos sons, de música que ainda não foi domada, que surge ainda por polir. O dinheiro começa a surgir na favela e com o dinheiro vêm melhores produtores, melodistas para compor o refrão, letristas para encontrar as palavras certas (poucas mas certas), vídeos caríssimos, roupas extravagantes, e o que antes fora um fenómeno local que ocorria em condições ilegais (não é como se alguém pedisse uma licença para dar uma festa, né?) tornou-se um negócio.

Nos anos 80, quando a pop de sintetizadores explodiu, nasceram e morreram dezenas de grandes bandas que fizeram milhentos singles e discos de eleição. Duas décadas antes aconteceu o mesmo com o rock’n’roll; pouco depois o mesmo se passou com o hip-hop. Nada disto é novo, são apenas as gerações a identificar-se com a música do seu tempo. Faz sentido que uma miúda de 15 anos tenha hoje como heroínas Rosalía e Anitta, porque elas reclamam para si as rédeas do seu destino e do seu corpo — e, no caso específico de Anitta, faz uso do mediatismo conquistado para passar mensagens com o conteúdo político e social em que acredita.

Podem começar-se frases por “No meu tempo”, podem muitos perguntar se isto é música. A resposta é sempre a mesma: se começam frases por “No meu tempo” é porque já desistiram de acompanhar a contemporaneidade; e se perguntam se “é música?”, então sim, é. É música que não tem culpa muitos tenham desistido de ouvir o que anda à sua volta.

Não há nada de errado em ouvir-se apenas a música com que se cresceu na adolescência. Mas os adolescentes vão sempre ouvir a música que mais lhes fala, em todos os tempos e gerações, sobretudo quando é diferente daquela que os mais velhos ouvem. E que ninguém faça de conta que noutros tempos os “heróis” eram santos. Não eram. Eram só homens a exibir-se – e agora são mulheres. Que elas nunca mais dobrem a espinha – exceto se for para abanar o rabo porque querem, quando querem.

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