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Mais internacional, mais inovadora, mais forte, mais vigiada e mais verde. A propósito do 70º aniversário da República Popular da China, assinalado este 1 de outubro, olhamos para as aspirações do gigante asiático para o futuro. Onde quer estar a China nos próximos 70 anos?
A Nova Rota da Seda, em que todos os caminhos vão dar a Pequim
O projeto da Nova Rota da Seda, anunciado em 2013, é, ainda hoje, pouco mais do que um projeto em construção — e assim permanecerá durante vários anos. Isso não significa que seja apenas um projeto cheio percalços e de difícil execução, mesmo que também isso seja verdade. Parte do tempo que demorará a ser executado deve-se à enormidade que representa.
O objetivo da China é ligar o seu país ao mundo, por terra (em linha ferroviária) e por mar (através de portos), de forma a transportar com mais facilidade matérias primas e recursos energéticos (do mundo para a China) e produtos fabricados ou peças (da China para o mundo).
Imagine uma única linha de comboio que una Pequim a Londres, Xangai a Moscovo ou Guangzhou a Lisboa. Imagine uma linha de comboio que vai da China à costa do Paquistão e que ali transfere os seus contentores para um navio-cargueiro pronto a partir para África. Tudo isso, e muito mais, é o mapa dos sonhos de Xi Jinping.
Com a Nova Rota da Seda, a China poderá evitar aquele que é hoje um dos seus maiores problemas geopolíticos, o Mar do Sul da China. Zona de enorme tensão internacional e palco de disputas territoriais, é por ali que passa grande parte dos navios-cargueiros com contentores que chegam e saem da China — uma rota com custos e riscos que, para Pequim, devem ser evitados a médio-longo prazo.
Mas não é só o Mar do Sul da China que Pequim evitaria com a construção da Nova Rota. É também a instabilidade em alguns dos estreitos mais importantes para o comércio mundial, como o Estreito de Bab-el-Mandeb (entre o Djibouti e o Iémen) e o Estreito de Ormuz (entre os Emirados Árabes Unidos e o Irão). Contornar este último estreito seria particularmente importante para a China, já que ali passa quase um terço do crude e outros produtos petrolíferos comercializados em todo o mundo — um fator que, aliado à instabilidade daquele troço de pouco mais de 30 mil quilómetros, entre a costa iraniana e a costa emirate, preocupa a China, como maior importador de energia a nível mundial.
De acordo com o Banco Mundial, a Nova Rota da Seda, se implementada na sua totalidade, poderá ter benefícios a nível global: reduzindo os tempos de transporte nos corredores económicos (ferrovia, neste caso) em 12%, aumentando as trocas comerciais entre 2,7% e 9,7%, subindo rendimentos em 3,4% e retirando 7,6 milhões de pessoas da pobreza extrema em todo o mundo.
Tudo isto, porém, pouco passa de um projeto neste momento. Com um custo estimado em 1 bilião de dólares (equivalente a quase 920 mil milhões de euros, que é o mesmo que dizer 4.536 vezes o PIB de Portugal em 2018), a Nova Rota da Seda é o maior e mais caro projeto de infraestrutura de sempre.
Para conseguir levá-lo avante, a China não dependerá apenas de si — terá de convencer todos os países por onde quer assentar as suas ferrovias e construir os seus portos. Se há zonas do mundo onde esse trabalho parece já estar avançado e é mais facilmente executado (como acontece no continente africano, onde a China está já fortemente instalada), outras representam ainda um desafio considerável para Pequim. É o caso de países como o Sri Lanka, Maldivas, Malásia ou o Paquistão, países de primeira e segunda linha para a Nova Rota da Seda, onde alterações do statu quo político levaram a que projetos previamente orçamentados fossem cancelados ou suspensos.
Se sair do projeto, bastarão 70 anos para completá-la? Esse será, possivelmente, um dos maiores desafios da China daqui em diante.
A inovação como motor da grande “ultrapassagem”
Aos 70 anos, a China é a segunda maior economia a nível mundial — e aquilo para que todas as previsões apontam é que não serão precisos outros 70 anos para o gigante asiático destronar os EUA. Pequim chegou ao número dois recorrendo, entre outras coisas, à enorme mão-de-obra que tem ao seu dispor e aos salários baixos praticados na generalidade do país. Porém, para passar de número dois a número um, tem outra carta na manga: a inovação.
A China está a caminho de se tornar a maior potência a nível de investigação científica e tecnológica. Com origem direta ou indireta nos cofres do Estado chinês — o verdadeiro motor da política maoísta de “ganchao” (ultrapassagem) —, este investimento na inovação está a ajudar a catapultar o país para o topo de várias corridas: comunicações, ciência e investigação, meios militares e indústria, entre tantas outras.
Esta “ultrapassagem” é um produto direto do investimento em investigação e desenvolvimento por parte do Estado chinês, que passou de gastar, naquela área, 0,72% do seu PIB em 1991 para, em 2017, chegar aos 2,13%. Nesse período, de ano para ano, a China aumentou o investimento em investigação e desenvolvimento, em média, 12,3%.
Os número podiam ser mais altos — e muito provavelmente sê-lo-ão. Mas a dimensão da China já se faz sentir quando confrontada com os seus concorrentes. Apesar de a média dos países da OCDE investir em investigação e desenvolvimento 2,37% do PIB e de o Japão ainda manter essa cifra nos 3,16%, a dimensão da economia chinesa permite-lhe estar substancialmente acima de qualquer um destes exemplos.
Restam apenas os EUA, país com o qual a China mantém uma guerra comercial em que, de parte a parte, são aplicadas tarifas aos principais produtos que cada um exporta. De acordo com Jonathan Gruber e Simon Johnson, professores do MIT, nos EUA, a postura de Donald Trump nesta guerra comercial assenta na “visão” de “ameaças ultrapassadas” e não na batalha pela inovação, onde a China está em posição de se tornar líder mundial.
“A maior ameaça da China é muito mais séria e consideravelmente mais fácil de abordar do que qualquer uma daquelas que a administração Trump tem identificado. Através de investimentos do governo em investigação e desenvolvimento, a China está no caminho de se tornar no líder global na inovação científica e tecnológica num futuro próximo, retirando os EUA da posição que tem tido ao longo de 70 anos”, escrevem aqueles dois investigadores na Foreign Affairs. “O crescimento da China nesta área não só ameaçará a segurança nacional dos EUA como irá privar a economia norte-americana de vários empregos.”
Desta forma, apontam aqueles dois investigadores do MIT, os EUA deveriam, antes, “aumentar dramaticamente o seu investimento em pesquisa e em desenvolvimento”. Ou seja: para não serem ultrapassados pela China, os EUA terão de copiar os seus passos.
Uma potência militar, com recados para todo o mundo
Nas comemorações dos 70 anos da República Popular da China, a praça de Tiananmen vai ser cruzada por 15 mil militares e 580 tanques e outro tipo de armamento, além dos 160 aviões militares que vão voar por cima de tudo isto. A informação é vaga porque assim mesmo quer o regime de Pequim — vão ser guardadas muitas surpresas para aquela parada militar, onde a China irá mostrar armas nunca antes vistas. Entre as armas expostas, o papel de destaque deverá ir para mísseis balísticos e nucleares supersónicos e com alcance intercontinental.
A mensagem enviada não tem qualquer subtileza: a China quer mostrar ao mundo que é uma potência militar em franco crescimento e capaz de rivalizar com qualquer outra no mundo.
O porta-voz do Ministério da Defesa chinês, Wu Qian, recusou, ainda assim, que a parada sirva para “mostrar os músculos” da China. “Ao longo dos últimos 70 anos, o mundo foi testemunha das contribuições das forças armadas da China. Quanto mais fortes ficámos, mais contribuições fizemos para a paz no mundo”, disse.
De acordo com Antoine Bondaz e Stéphane Delory, investigadores da francesa Foundation pour la Recherche Stratégique (FPRS), Pequim procura com esta parada militar passar “uma imagem de poder, dissuasão e coerção”. E a mensagem que quer passar não é apenas para consumir no 1 de outubro de 2019, mas antes para guardar para os anos vindouros.
“Não só a China demonstra capacidade para desenvolver um arsenal nuclear em termos de qualidade e quantidade, como ilustra a sua capacidade para a inovação no campo dos ataques com precisão”, lê-se no relatório daqueles dois investigadores.
“Desta forma, a Rússia vai demonstrar que conseguiu o feito de conseguir um arsenal nuclear limitado [mas] com uma qualidade igual à dos dois maiores super-poderes nucleares”, lê-se naquele relatório da FPRS. Por isso, não será de estranhar que, este terça-feira, quando os novos mísseis da China estiverem a ser exibidos na praça de Tiananmen, o mais certo é que os espectadores mais atentos estejam concentrados no Pentágono e no Ministério da Defesa da Rússia. Naqueles corredores, e também fora deles, só os mais distraídos poderão ignorar o poderio militar da China nos 70 anos que se seguem.
Na Internet, a nova Grande Muralha da China; nas ruas, uma câmara em cada esquina
George W. Bush estava para lá de otimista quando, em 1999, num debate para as primárias do Partido Republicano, falava da perspetiva de a Internet se massificar na China. “Imaginem se Internet toma conta da China. Imaginem como a liberdade se iria espalhar”, disse.
Passados 20 anos, a previsão do ex-Presidente dos EUA não podia estar mais errada. Feitas as contas, não foi a Internet que tomou conta da China, mas antes a China (que aqui serve de sinónimo para Partido Comunista da China (PCC) que tomou conta da Internet, no que ao seu país diz respeito. E não foi a liberdade que se espalhou — antes pelo contrário.
De acordo com o ranking Freedom on the Net, da ONG Freedom House, a China está em 88º numa lista de 100 países no que diz respeito à liberdade na Internet.
Não é de espantar. Quem quer que utilize a Internet na China não poderá aceder à maior parte das redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram, Snapchat e até o Tinder), não conseguirá trocar mensagens nas aplicações mais utilizadas para esse efeito (Messenger, WhatsApp, Slack ou Telegram), ficará sem acesso a plataformas de vídeo e streaming (YouTube, Netflix, Vimeo) e estará impedido de ler notícias nos principais órgãos de comunicação social ocidentais: The New York Times, BBC, Financial Times Reuters, Le Monde ou El País, entre tantos outros). Não vale a pena procurar alternativas a tudo isto no Google, porque também esse motor de busca está vedado.
A Internet chinesa é cada vez mais um mundo à parte, com substitutos “Made in China” para muitos dos sites que são banidos no país — e que, vantagem e principal objetivo do PCC, pode assim ser vigiados com maior facilidade. A haver uma revolução na China dos próximos 70 anos, dificilmente esta passará no Weibo (semelhante ao Twitter), no Youku Tudou (o YouTube chinês) ou no Renren (uma espécie de Facebook).
E se Tiananmen fosse agora? Entrevista a quatro ativistas chineses
De acordo com números do governo chinês de 2018, a China tem pelo menos 802 milhões de pessoas a utilizar a Internet, o que representa 57,7% da sua população total. Esta é uma fatia em crescimento e, por isso, um fator de preocupação para o regime de Pequim, que investirá fortemente para que o controlo da população seja possível.
A vigilância, porém, não termina quando se desliga o computador ou se larga o telemóvel — e também chega aos 42,3% que ainda não têm acesso à Internet. Por esta altura, estima-se que a China tenha 200 milhões de câmaras de vigilância, muitas delas equipadas com inteligência artificial que permite identificar várias caras em simultâneo. Numa estação de comboio, na rua, no hospital, na sala da universidade, ao volante do carro e até à janela de casa: os chineses estão sempre a ser vigiados.
Controlo, censura e ansiedade. “Na China todos sabem que estão sempre a ser vigiados”
A ideia da vigilância omnipresente está já tão naturalizada que até o Global Times, jornal anglófono do regime de Pequim, gaba a invenção de uma “super câmara” de 500 megapixel e equipada de inteligência artificial. O arranque do texto sobre esta invenção é sintomático do quão avançadas estão as tecnologias de vigilância na China: “Cientistas chineses desenvolveram uma câmara com inteligência artificial com 500 megapixel capaz de captar as caras de milhares de pessoas num estádio na perfeição e de gerar dados faciais para uma cloud, ao mesmo tempo que localiza um alvo em particular num instante”.
Com os céus mais azuis
Como pode um país cujo músculo reside na indústria poluir menos? Essa é uma pergunta que ocupará a cabeça de muitos no PCC e também nas universidades daquele país, onde os níveis de poluição são anormalmente altos.
Os números são sufocantes. De acordo com um estudo da Universidade Chinesa de Hong Kong, de outubro de 2018, a poluição do ar é responsável por uma média anual de 1,1 milhões de mortes prematuras em todo o país e traz custos na ordem dos 267 mil milhões de yuans ao ano (o equivalente a, praticamente, 34,3 mil milhões de euros).
Esta é já uma preocupação do Estado chinês, apresentando resultados na redução da poluição, embora a um ritmo lento e, por isso, deixando as principais cidades do país muito longe de terem um ar saudável. No 19.º Congresso do PCC, Xi Jinping afirmou o compromisso da China de “continuar a sua campanha para prevenir e controlar a poluição do ar e para devolver o azul aos céus”.
De acordo com um estudo do think tank Macro Polo, que estuda a economia chinesa, os graus de poluição das 50 zonas urbanas mais populosas da China caíram quase um terço entre 2013 e 2017. Mas para os céus da China voltarem a ser mesmo azuis, será preciso que o país e a sua economia dependam menos do carvão e transitem para o uso de gás natural (menos poluente) e também de energias renováveis.
O mesmo estudo, publicado em junho deste ano, indica que o consumo de carvão na China caiu agora para o nível mais baixo dos últimos 25 anos, depois de ter atingido um pico em 2013. Já o uso de gás natural cresceu 213% entre 2009 e 2018 e as energias renováveis subiram 239% apenas entre 2013 e 2018.
Ainda assim, cerca de 60% do consumo energético na China continua a ser composto apenas por carvão — o que demonstra que, por maiores que sejam as melhorias dos últimos anos, continuam a ser poucas e insuficientes. Prova disso é que cidades como Pequim e Xangai têm, neste momento, níveis de poluição que põem em perigo a saúde de grupos de risco, ao mesmo tempo que em cidades como Guangzhou ou Hong Kong os níveis são nocivos para a generalidade da população.