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Atravessam-se campos minados e território ocupado em busca das crianças desaparecidas. Pode levar "mais de 90 anos" para as recuperar

Ucrânia diz que 19.546 crianças foram levadas para a Rússia ou para territórios sob ocupação. Investigadores trabalham para as localizar, mas receiam que nem todas venham um dia a regressar a casa.

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Ilya tem 11 anos. No ano passado, perdeu a mãe durante os bombardeamentos russos que arrasaram a cidade portuária de Mariupol, os mesmos que o deixaram com ferimentos de estilhaços numa perna e que foram tratados num hospital de Donetsk, sem recurso a anestesia. Lá, os adultos riam-se dele e corrigiam-no se proferia a tradicional frase “Slava Ukraini” (“Glória à Ucrânia”), à qual o seu médico chegou a acrescentar: “Como parte da Rússia”. Oleksandr, mais conhecido por Sashko, tem 12 e foi separado da mãe num campo de filtração depois de a cidade ter caído nas mãos dos russos, em maio de 2022. Não lhe permitiram despedir-se dela antes de ser enviado para um orfanato, onde deveria ficar até ser adotado por uma família russa.

As histórias dos dois rapazes, partilhadas pelos próprios em vídeos divulgados pelo governo ucraniano, são das poucas com um desfecho feliz — através dos esforços das avós, Olena e Ludmila, apoiadas por uma rede de organizações governamentais e não governamentais, conseguiram regressar a território controlado pela Ucrânia. São muitas mais as que continuam em aberto. Segundo as autoridades ucranianas, desde o início da invasão 19.546 crianças foram enviadas para a Rússia ou para territórios sob ocupação. Até agora, 522 foram recuperadas, 387 das quais, segundo as autoridades ucranianas, tinham sido deportadas ilegalmente para a Rússia.

“É o caso de desaparecimentos mais difícil desde a Segunda Guerra Mundial e pode argumentar-se que é o caso de sequestro de crianças mais difícil da História“, descreve ao Observador Nathaniel Raymon, diretor-executivo do Laboratório de Investigação Humanitária da Universidade de Yale. Há quase dois anos que esta equipa, em colaboração com o projeto Conflict Observatory do Departamento de Estado norte-americano, investiga os crimes cometidos na Ucrânia. Num primeiro relatório, publicado em fevereiro, denunciaram que mais de seis mil menores foram enviados para campos de reeducação e, em alguns casos, para o sistema de adoção russo. Num outro, divulgado nove meses depois, apontavam que mais de 2.400 foram levadas para territórios russos e daí para a aliada Bielorrússia.

É um “enorme AMBER alert [alerta originado nos EUA e emitido quando uma criança desaparece]”, chegou a descrever o investigador norte-americano, que ao Observador refere que estes números são apenas a ponta do icebergue. Com o conflito a aproximar-se da marca dos dois anos, assume ter dúvidas de que todas as crianças e adolescentes venham um dia a regressar a casa. “É improvável que todos sejam recuperados. A verdade é que não temos uma base real para saber a quantidade de crianças que foram raptadas”, reconhece.

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O receio é partilhado por Kateryna Rashevska, da organização de direitos humanos Regional Center for Human Rights. A advogada não tem dúvidas de que a previsão do Provedor de Justiça da Ucrânia, de que levará 55 anos a repatriar todos os menores — número que seria necessário caso se recuperasse uma criança por dia — é impossível de assegurar. “Vamos precisar de mais de 90 anos. Não houve um único mês ou semana em que tenhamos garantido o regresso de uma criança por dia, são casos esporádicos e é muito difícil prever qual será a velocidade possível no próximo ano”, admite.

A data que será “lembrada”

A primeira investigação do Laboratório de Yale prolongou-se durante vários meses. Focou-se especificamente nos menores ucranianos enviados para campos, a maior parte recreacionais, na península da Crimeia e em território russo. No que era suposto ser uma estadia temporária, as crianças foram, segundo o relatório, sujeitas a tentativas de reeducação e, em alguns locais, chegaram a receber treino militar. Em vários casos foi suspendido o seu regresso para junto das famílias, como têm vindo a relatar pais e crianças à imprensa internacional. O número que a equipa estimou no total foi de seis mil, mas Nathaniel Raymond não tem dúvidas de que será superior. Aponta que poderá ser na ordem dos 10 mil a 12 mil, valor que ainda está por validar.

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SOPA Images/LightRocket via Gett

Os casos começaram a ser investigados depois de, em março de 2022 — quando as tropas russas já tinham ocupado cerca de 20% do território ucraniano — as crianças que viviam perto das zonas de combate começarem a ser transferidas. O esforço acelerou depois da chegada do verão, primeiro em Kharkiv, região no nordeste da Ucrânia, e depois em Kherson, no sul. Denys Berezhnyi, de 17 anos, recorda bem o dia. Partiu para um desses locais depois de o diretor da sua escola lhe ter dito que era obrigatório participar. Receando que os pais fossem prejudicados se recusasse, acedeu. À semelhança de centenas de outros da região, deixou Kherson no dia 7 de outubro.

“Para as crianças que foram levadas ilegalmente, esta data será sempre lembrada”, sublinhou em declarações ao New York Times, que no último ano viajou pela Ucrânia e entrevistou mais de 30 crianças que regressaram da Rússia. Noutros casos, foram os próprios pais que decidiram enviar os filhos. Alla Yatsentiuk revelou ao mesmo jornal que os dois filhos, Ivan, de 9, e Danylo, de 13, mostraram interesse em ir. O caso não foi único, alguns motivados pela possibilidade de se juntarem aos amigos, outros desejosos de uma pausa num conflito sem fim à vista. O facto é que, quando o tempo de estadia nos campos foi suspendido ou prolongado, muitos pais viram-se obrigado a deslocar-se à Crimeia ou à Rússia para recuperar as crianças e adolescentes.

As principais conclusões do HRL sobre a Rússia

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  • Pelo menos 6.000 crianças ucranianas passaram por campos e outras instalações desde o início da invasão;
  • A rede abrange pelo menos 43 instalações, das quais 41 são campos de verão pré-existentes;
  • A rede de instalações estende-se da Crimeia à costa oriental da Rússia. O campo mais distante fica em Magadan — três vezes mais próximo dos EUA do que da fronteira ucraniana;
  • O objetivo principal dos campos parece ser a “reeducação política”: 32 “expõem as crianças a atividades académicas, culturais, patrióticas centradas na Rússia, e/ou educação militar”;
  • Vários campos são anunciados como “programas de integração”, com o aparente objetivo de integrar as crianças na visão russa sobre cultura, história e sociedade;
  • Pelo menos dois campos acolheram crianças alegadamente órfãs e que mais tarde foram deixadas ao cuidado de famílias de acolhimento russas;
  • O consentimento é “obtido sob coação e violado rotineiramente”. Os pais relatam violações às condições acordadas (prazo de permanência, procedimentos de regresso);
  • Em cerca 10% dos campos o regresso à Ucrânia terá sido suspenso. Em dois campos — Artek e Medvezhonok —  foi suspenso indefinidamente, segundo alguns pais;
  • A operação é coordenada centralmente pelo governo federal russo e envolve todos os níveis do governo.

“Provavelmente a maior parte já terá voltado, mas não sabemos isso com certeza”, admite o diretor-executivo do Laboratório Humanitário (HRL, na sigla em inglês), quase um ano depois da publicação do relatório. Mas a grande preocupação, explica o investigador, é que esta é apenas uma peça de um puzzle maior. A equipa que coordena distingue para além do caso das crianças levadas para esses campos, mais três situações sobre as quais as informações são ainda mais escassas.

Há um segundo grupo que diz respeito a menores que estavam em instituições estatais ucranianas — nem todos os menores nestes estabelecimentos são órfãos — em regiões que foram ocupadas pelos russos, particularmente na fase inicial da guerra. Acredita-se que na maior parte dos casos terão sido institucionalizados e introduzidos no sistema de adoção pela Rússia. Há ainda um terceiro e quarto grupo, composto por histórias como a de Ilya e Sashko. Isto é, de menores que foram capturados pelas forças russas no campo de batalha, principalmente na cidade de Mariupol — palco de intensos combates em 2022 – e os que foram separados das famílias nos chamados campos de filtração depois da queda da cidade. “Sabemos pouco sobre os números em causa, mas sabemos que existem”, sublinha Raymond.

"Disseram que a minha mãe não precisava de mim e que iam dar-me a uma família na Rússia. Nem sequer me deixaram despedir dela."
Oleksandr, 12 anos

O testemunho de Sashko é prova disso. “Os russos disseram que a minha mãe não precisava de mim e que iam dar-me a uma família na Rússia. Nem sequer me deixaram despedir dela”, recordou o rapaz, que não voltou a ver a mãe desde que foram separados num campo de filtração em Bezimenne (região de Donetsk). Casos como este são também o foco da investigação do Regional Center for Human Rights, que começou há mais de uma década a documentar os crimes cometidos na Ucrânia.

O arranque foi marcado pela anexação da Crimeia, que obrigou à deslocação da sede da organização da cidade de Sevastopol para a capital. Foi só a partir de 2018 que acrescentaram à lista de crimes em investigação a deportação e transferência forçada de crianças e até agora documentaram cerca de 50 casos na península, ainda que acreditem que o valor seja superior.

“Há vários projetos para isso e o mais popular é o ‘Train of Hope'”, explica Kateryna Rashevska. Segundo a advogada, a iniciativa, que em português se pode traduzir para “Comboio da Esperança”, permitiu a várias famílias russas viajar até à Crimeia para adotar menores ucranianos. Muito mudou nos métodos russos desde essa altura e se à época a Rússia procurava “esconder” a informação sobre esses casos, desde a invasão em larga escala muito faz para os publicitar. “Publicam quase tudo: onde as crianças estão, os números, até os nomes e apelidos. E nós documentamos tudo“, garante.

“Instrumentos” de propaganda russa

Uma peça chave no trabalho das organizações e autoridades ucranianas tem sido a propaganda russa com os menores e que os investigadores notam ter-se tornado particularmente evidente a partir do final do ano passado. “Eles tentaram fazer de mim um instrumento de propaganda, ensinaram-me a escrever em russo e uma vez o meu médico disse-me que eu não devia dizer ‘Glória à Ucrânia’, mas sim ‘Glória à Ucrânia, como parte da Rússia'”, revelou Ilya, meses depois de regressar a casa, ao cuidado da avó, que descobriu que o rapaz tinha sido levado ao ver um vídeo transmitido pelos média russos da criança sozinha num hospital.

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Num cartaz em Moscovo, pode ler-se em russo: "Pela Rússia! Pelos Filhos do Donbass!"

AFP via Getty Images

“Vemos muitas operações de propaganda que envolvem menores, com a Rússia a tentar justificar aos seus cidadãos a sua difícil invasão da Ucrânia como um esforço para as resgatar de supostos nazis”, refere o diretor da HRL. Um dos exemplos mais notórios foi a celebração russa, em Moscovo, para assinalar um ano da guerra. No evento, em que o Presidente Vladimir Putin discursou perante uma audiência de cerca de 200 mil pessoas, várias crianças ucranianas de Mariupol subiram ao palco do estádio Luzhniki para “agradecer” aos invasores, sendo mais tarde reconhecidas por antigos vizinhos da cidade. “A abominação é que não são atores”, disse na altura um ucraniano citado pelo The Guardian.

A propaganda não se resume a eventos públicos e tem um espaço privilegiado nas redes sociais, onde se exibe a transferência de menores como assistência humanitária. Através do Telegram, Maria Lvova-Belova, comissária russa para os Direitos das Crianças que adotou uma criança de Mariupol, partilha publicações recorrentes sobre estas ações. Numa das mais recentes alega que 50 crianças de Kherson foram enviadas para um sanatório na região russa de Krasnodar para “fortalecer a sua saúde junto ao mar”, sem explicar se regressaram ou não à Ucrânia. “Vamos definitivamente continuar este trabalho em 2024 para que tantas crianças quanto possível possam receber ajuda médica e psicológica, ganhar forças e sentir-se seguras”, escreveu a 28 de dezembro. Tanto ela, como o líder russo, estão na mira do Tribunal Penal Internacional, que emitiu sob eles um mandado de captura.

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Num encontro dias depois do relatório do HRL ser publicado, Lvova-Belova encontrou-se com Putin e falou-lhe da adoção de um jovem ucraniano de Mariupol

SPUTNIK/AFP via Getty Images

São também vários os governadores e autarcas russos a partilhar fotografias com crianças e adolescentes ucranianos. Esta foi uma das primeiras pistas que permitiram à BBC denunciar que Sergey Mironov, líder do partido Rússia Justa, teria adotado com a mulher uma criança ucraniana de dois anos que foi levada de uma instituição em Kherson no ano passado. Permitiram também ao laboratório de Yale obter coordenadas para localizar as instalações para onde são levadas e determinar a data das viagens, algo fundamental para chegar ao número 6.000 e é um método que continuam a utilizar.

Este número, admite Nathaniel Raymon, surpreendeu e muito a comunidade internacional e também deixou muitos céticos. “Quando falo com jornalistas, especialmente nos EUA e que estão habituados a que os valores sejam inflacionados para fins de defesa de direitos humanos, muitos assumem que organizações como a nossa, a Human Rights Watch ou a Amnistia estão a exagerar. É exatamente o oposto“, garante, acrescentando que os números são “logicamente astronomicamente maiores”.

"A Rússia declarou o 'Ano da Família'. Fazem-no não apenas como uma campanha de propaganda, mas por querem demonstrar que não existe um sistema ou metodologia especial para as crianças ucranianas."
Kateryna Rashevsk, Regional Center for Human Rights

Essa convicção provém, em parte, do facto de a rede de locais que já puderam identificar ser muito mais complexa do que seria necessário para manter as crianças que se suspeita terem sido levadas. Raymond destaca que algumas instalações podem por si só acomodar milhares de crianças. “Observámo-lo através de imagens de satélite, como a Artec na Crimeia. Nos vídeos vimos um pequeno estádio cheio de crianças ucranianas, é apenas um entre dezenas de campos na Crimeia. E depois há campos que estão operacionais na Sibéria, também em Magadan, que fica mais perto do Alasca e do Japão do que de Moscovo. Se são menos do que as estimadas, o que está a acontecer em todas estas outras instalações e com toda esta rede logística? O que estão eles a fazer?“, questiona.

Hospital Clínico Psiquiátrico nº 5, Rússia

Segundo o HRL, o Hospital Clínico Psiquiátrico nº 5 recebeu 12 crianças ucranianas

Humanitarian Research Lab, Universidade de Yale

A pergunta parece ganhar redobrado interesse depois de a Rússia ter declarado 2024 como o “Ano da Família”, uma iniciativa aprovada pelo Presidente russo. O próprio Sergei Mironov, que recusou responder à BBC sobre a alegada adoção da ucraniana Margarita, de dois anos, chegou a propor que fosse declarado como o “Ano das Famílias Numerosas”. Para Kateryna Rashevsk é mais uma prova do “cinismo russo”. “Fazem-no não apenas como uma campanha de propaganda, mas também por querem demonstrar que não existe um sistema ou metodologia especial para as crianças ucranianas”, acredita.

O “mistério” da Bielorrússia

As autoridades russas não são as únicas implicadas nos casos de desaparecimentos de menores ucranianos. A mira também está apontada à vizinha e aliada Bielorrússia. Mas este é um tema que ainda levanta muitas dúvidas ao laboratório de Yale, que indicou que mais de 2.400 crianças foram enviadas para esse território. “Tudo o que se sabe sobre a parte da operação na Bielorrússia já foi revelado, exceto um aspeto crítico: para onde vão as crianças. No que diz respeito à Bielorrússia, é realmente um grande mistério”, reconhece Nathaniel Raymond.

epa10653120 Belarusian President Alexander Lukashenko attends an expanded format meeting of the Supreme Eurasian Economic Council at the Kremlin in Moscow, Russia, 25 May 2023.  EPA/ILYA PITALEV / SPUTNIK / KREMLIN POOL MANDATORY CREDIT

Num evento com crianças ucranianas, Lukashenko prometeu tornar a infância delas "mais feliz"

ILYA PITALEV / SPUTNIK / KREMLIN POOL/EPA

O líder bielorrusso já participou em eventos com crianças ucranianas. Este mês, ao receber um grupo na chegada ao país, prometeu “abraçar” as crianças, “trazê-las para casa, mantê-las aquecidas e tornar a sua infância mais feliz”. Lukashenko e outras figuras bielorrussas já chegaram afirmam que alguns grupos regressaram às áreas sob ocupação russa na Ucrânia, mas para já é algo que o HRL não conseguiu confirmar. Há também relatos de que alguns foram enviados para a Rússia, algo que também está por provar. “Simplesmente não sabemos, de uma maneira ou de outra, onde estão aproximadamente essas 2.442 crianças”, diz o investigador.

As dúvidas são partilhadas pelo Regional Center for Human Rights, que, segundo Kateryna Rashevska, vai focar-se particularmente neste aspeto em 2024. Sobre as possíveis consequências legais que o líder bielorrusso poderá enfrentar, a advogada levanta vários obstáculos da justiça. “O papel de Lukashenko não é semelhante ao papel de Putin ou mesmo de Lvova-Belova. É um cúmplice, mas não o organizador”, aponta. Considera que o facto de vários aspetos estarem por apurar, incluindo o verdadeiro paradeiro das crianças, só beneficiam o chefe de Estado.

As crianças “não significam nada para eles”

A par das investigações, a comunidade internacional vai dando alguns passos para apoiar a Ucrânia a recuperar os menores. Um dos mais concretos foi a criação da Coligação Internacional para o Regresso de Crianças Ucranianas. Reuniu-se pela primeira vez no início deste mês, com a participação de vários países, entre eles Portugal. “A deportação forçada de crianças contradiz o direito humanitário internacional e os direitos fundamentais da criança e dos seres humanos (…). Importa garantir a responsabilização daqueles que cometeram estes crimes”, sublinhou o Presidente da República, numa intervenção por vídeochamada.

Coligação Internacional para o Regresso de Crianças Ucranianas reuniu-se pela primeira vez este mês

Vão surgindo também iniciativas individuais, como a anunciada pelos Países Baixos para um projeto de reunificação de famílias através do uso de testes de ADN. O objetivo é criar uma base de dados que permita restabelecer rapidamente as ligações familiares dos menores e facilitar o regresso às famílias. Criar uma base de dados que possa ser partilhada internacionalmente é, para Nathaniel Raymond, um passo que já vem com algum atraso. “A primeira coisa que o FBI faz num caso de crianças desaparecidas ou de rapto é fornecer uma base de documentação que será partilhado com outras autoridades nacionais e internacionais — incluindo a Interpol, Europol. Já passaram quase dois anos deste caso e ainda não temos o ponto de partida básico para o trabalho policial”, aponta.

Na ausência de um sistema central de dados para registar e procurar os menores, o investigador crê que o apoio policial que a comunidade internacional pode oferecer não será totalmente aproveitado. “Estamos a meses ou até anos de estar prontos para usar testes de ADN. Temos de ser capazes primeiro de registar casos. E muitas pessoas dizem que é preciso usar os recursos tecnológicos. A tecnologia de que precisamos agora chama-se uma folha de cálculo“, defende.

No terreno, grupos de direitos humanos juntamente com organizações governamentais vão apoiando as famílias ucranianas para trazer de volta os menores. A Save Ukraine, organização fundada em 2014 pelo ex-comissário dos Direitos das Crianças Mykola Kuleba, é uma das mais ativas neste esforço. Na semana passada Kuleba revelou, através de uma publicação na conta de Telegram, que terminaram a 14.ª missão de resgate deste ano, trazendo de volta mais 14 menores. Desde o início da guerra, a organização já ajudou a recuperar 226.

Com os homens na frente de combate, são as mulheres que encabeçam estas missões de resgate. Mães e avós recebem instruções da Save Ukraine antes de começar as viagens, muitas vezes perigosas. “Nós explicamos-lhes que os russos as vão intimidar, que vão fazer tudo o que puderem para os impedir, para os provocar”, explicou Kuleba à CBS News. Estes conselhos revelaram-se fundamentais em casos como o de Polina, cujo neto, Nikita, foi transferido do internato ucraniano para crianças com necessidades especiais em que vivia quando a guerra começou para uma escola em território sob ocupação.

“As crianças ucranianas não significam nada para eles [os russos]”, afirmou a mulher em declarações ao canal norte-americano. Para recuperar o neto teve de passar por campos minados e atravessar vários postos de fronteira controlados pelos russos, fingindo ser trabalhadora humanitária da Polónia, onde vive desde antes do conflito. Mesmo apresentando na escola os documentos necessários, o diretor responsável recusou a partida do rapaz. O processo arrastou-se por 70 dias e quando finalmente se reencontrou com ele estavam câmaras russas a gravar na presença de Lvova-Belova, que entregou presentes a Nikita e perguntou a Polina se gostaria de ficar na Rússia. Recusou.

"Muitos são adolescentes, entendem a situação e gostariam de ser repatriadas. Mas há crianças que têm dois, três, quatro anos de idade e que nem se lembram do seu país ou dos seus verdadeiros pais."
Kateryna Rashevsk, Regional Center for Human Rights

O número de crianças que, como Nikita, foram repatriadas, “não é suficiente”. É a convicção de Kateryna Rashevska. Alerta que o passo tem de ser acelerado, ainda que seja preciso cuidado e que os processos de repatriação, reabilitação e reintegração variem consoante o caso. “Crianças que são postas aos cuidados de famílias russas, crianças deportadas de orfanatos não podem ser repatriadas em orfanatos ucranianos. É proibido pelo direito internacional”, exemplifica a advogada. Isso obriga as autoridades ucranianas a encontrar famílias que as possam acolher.

Rashevska destaca, por isso, a importância de se estabelecer um processo que tenha em conta a situação específica dos menores e tenha em atenção o seu estado e experiência. “Há muitos que são adolescentes, que entendem a situação e que gostariam de ser repatriados. Mas também há crianças que têm dois, três, quatro anos de idade e que nem se lembravam do seu país ou dos seus verdadeiros pais”, relembra.

Ajustar a mira numa “fase crítica”

Ao Observador, Nathaniel Raymond reconhece que se estão a aproximar de uma “fase crítica” e de novas descobertas, mas que há muito que só será divulgado ao público no início do próximo ano. Depois de uma primeira investigação para descrever a dimensão da crise e de uma segunda para mostrar o envolvimento da Bielorrússia, a próxima fase passa por compreender com maior pormenor o sistema de adoção dos menores ucranianos. “Isso será crucial para qualquer esforço para os recuperar”, refere.

"O padrão de atividade está a mudar com o tempo: os espaços que são utilizados, para quê e por quem. Está a tornar-se cada vez mais claro que o foco é precisamente mover-se para a adoção."
Nathaniel Raymond, Humanitarian Research Lab

Até agora, o HRL duplicou o número de locais sob investigação. Dos 43 avançados no primeiro relatório, têm agora na mira mais de 80, mas pelo meio vão surgindo novos desafios. “O padrão de atividade está a mudar com o tempo: os espaços que são utilizados, para quê e por quem. Está a tornar-se cada vez mais claro que o foco é precisamente mover-se para a adoção“, considera o investigador.

Um dos grandes desafios, crê Kateryna Rashevska, é manter os olhares do mundo voltados para um problema cuja resolução está à distância de anos. “Precisamos de mais 90 anos para devolver todas as crianças, mas não temos esse tempo. Os rapazes, por exemplo, podem vir a ser usados como soldados. Muitas crianças ucranianas foram transferidas para famílias russas e já receberam passaportes russos”, destaca.

Nathaniel Raymond não deixa de traçar uma comparação com um dos maiores esforços de identificação levados a cabo por Washington: “Os EUA, com algumas das capacidades mais avançadas do mundo, levaram mais de 20 anos para fechar os casos de desaparecimentos relacionados com o 11 de setembro (…), sabendo que todos estavam mortos, numa área de cerca de dois a quatro hectares. Aqui as vítimas estão vivas, estão a crescer e ocupam pelo menos uma área do tamanho da Rússia”.

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