O poder corrompe ou as pessoas corrompíveis gostam mais do poder? Os políticos perigosos são-no porque nasceram assim ou o sistema tornou-os assim? A democracia é o melhor sistema para garantir limites ao poder ou está a perder essa capacidade?
Estas foram algumas das perguntas a que Brian Klaas se propôs a responder quando começou a escrever o livro Corruptíveis: o poder corrompe ou atrai os corruptos? (Ed. Bertrand). Para isso, entrevistou psicólogos, politólogos, neurologistas e, é claro, políticos — desde o antigo primeiro-ministro britânico Tony Blair até ao ex-Presidente de Madagáscar, Marc Ravalomanana, que chegou a estar preso por abuso de poder.
Nada que fosse novo para Klaas. Professor de Política Global na University College of London, há muito que se debruça sobre o tema do poder (quer na política, quer nas empresas), com vários livros sobre o tema e um podcast (“Power Corrupts”) que durou dois anos. Na imprensa norte-americana, tornou-se um especialista a analisar o tópico através do caso concreto de Donald Trump — o ex-Presidente novamente candidato que está a ser acusado de apoiar o ataque ao Capitólio de 6 de janeiro de 2021 —, sobre quem escreveu a obra The Despot’s Apprentice: Donald Trump’s Attack on Democracy (sem edição em português).
A propósito da sua passagem por Portugal, a convite da Líder no âmbito dos encontros “Off the Record”, o académico deu uma entrevista ao Observador onde fez questão de dizer que estava a par das notícias recentes sobre a Operação Influencer. E quis deixar conselhos: “Aquilo que definirá a democracia portuguesa é a forma como lidará com este escândalo. Se disserem ‘não toleramos a corrupção, não toleramos qualquer forma de abuso’, isso afetará não só a colheita atual de políticos, mas também a próxima geração”, avisou.
[Já saiu: pode ouvir aqui o terceiro episódio da série em podcast “O Encantador de Ricos”, que conta a história de Pedro Caldeira e de como o maior corretor da Bolsa portuguesa seduziu a alta sociedade. Pode ainda ouvir o primeiro episódio aqui e o segundo episódio aqui.]
O caso de Trump, porém, é o que capta mais a sua atenção, sobretudo por dizer respeito ao seu país. E apesar de se opor claramente ao antigo presidente republicano, Brian Klaas diz que quer ouvir falar ainda mais dele nas notícias. “Tenho familiares que votam em Trump — não quero que eles possam fingir que não sabiam no que estavam a votar”, diz. “Se o quiserem fazer à mesma, tudo bem, discordamos fortemente e pronto. Mas não quero que eles possam dizer ‘Ah, não sabia que ele era assim tão mau’.” O papel de escrutinador do jornalismo é, para si, uma das limitações ao poder que considera fulcrais — embora não se coíba de fazer críticas e sugestões aos media.
O abuso de poder por parte de políticos nas democracias preocupa e muito o investigador, que faz uma distinção profunda entre os sistemas democráticos e os autoritários. Vladimir Putin, por exemplo, “foi criado no KGB”, nota. “Não é possível obter um servidor público democrata quando ele vem do KGB. Não é o tipo de ambiente certo para isso.”
Nas democracias ocidentais, porém, a situação é outra. E, no entanto, o investigador crê que continuamos a ter “os políticos errados”, com base num sistema que premeia o espetáculo acima da competência. “[As pessoas] têm algo contra os políticos aborrecidos, mas o que eu quero é alguém que consiga resolver problemas. E essas pessoas não costumam entrar na política, porque não são atraídas pelas luzes, pelo palco, pela pompa do poder”, afirma. Também não são “encantadoras”, como diz que a maioria dos líderes políticos conseguem ser. Líderes esses que, desconfia Klass, não “sofrem” o suficiente com o peso da responsabilidade: “Se isso não tiver um impacto emocional na pessoa que ocupa o cargo, então é porque essa pessoa não devia estar nesse cargo”.
A sua investigação foca-se no poder. Diz que há uma ideia de senso comum de que o poder corrompe quem o detém, mas que, na verdade, o mais certo é que o poder atrai um certo tipo de pessoa que é corrompível. Quando votamos não nos apercebemos disso? É um ângulo morto?
A forma como descreveria isto é que é como um icebergue. A ponta do icebergue é o poder que corrompe; a atração pelo poder é o que acontece abaixo da superfície. Porque é um problema muito mais lato, muito mais perigoso, mas que normalmente não vemos. Mas só temos o conjunto de políticos que nos são oferecidos. E essas pessoas muitas vezes já passaram por aquilo a que chamo um enviesamento de auto-seleção. Ou seja, numa eleição pergunta-se “Quem quer ser poderoso?” E, surpresa! Quem quer ser poderoso são as pessoas famintas pelo poder. Agora, respondendo mais em concreto à questão: já entrevistei gente muito horrível por todo o mundo, gente que tinha feito coisas terríveis, mas todos eles eram encantadores. Porque num mundo político que recompensa a persuasão, não se chega às esferas mais altas se não se conseguir apresentar uma persona encantadora. Portanto, não acho que conheçamos a sério os nossos políticos. A maioria é excecionalmente capaz de um charme superficial, está no conjunto de 0,1% da população capaz desse nível de fazer as pessoas gostarem delas, mesmo quando estão erradas.
Isto é amplificado pelo que chamamos de polarização, pela forma de ver a política pelo prisma de duas equipas. Porque isto significa que perdoamos o abuso ou a corrupção do nosso próprio lado e ficamos horrorizados quando acontece do outro lado, o que cria uma dicotomia. E sim, nós votamos nos nossos políticos, até certo ponto merecemos o que recebemos. Mas creio que isso ignora o facto de que os sistemas produzem determinados resultados. E se tivéssemos uma reforma sistémica, poderíamos ter melhores políticos. Temos de ter muito mais escrutínio e castigar os políticos quando são corruptos. Temos de investir muito mais no recrutamento dos candidatos, para garantir que os que concorrem são os melhores. E temos de ter eleitores mais conscientes dos seus enviesamentos cognitivos, que os fazem escolher pessoas que não são aptas para o cargo. Sou dos Estados Unidos, nós temos o melhor caso de estudo do mundo: como é que Donald Trump ainda tem 45% do país do seu lado? É uma das histórias mais desconcertantes do século XXI, mas ilustra esta ideia de que as pessoas votam em quem não está apto a governar.
É curioso, porque Trump não me parece o tipo de político que se possa definir como encantador ou capaz de esconder os seus problemas…
Para a sua base eleitoral, ele é encantador. Temos de nos por na mentalidade das pessoas que odeiam as elites, que se sentem abandonadas, que não vivem nas regiões mais ricas do país, etc. E temos de ir aos comícios dele: os comícios dele são divertidos. Atenção, sou muito, muito anti-Trump. Mas consigo perceber que alguém encontre uma certa cola política naqueles comícios, em que se apupa, em que ele conta piadas, etc. Para muita gente, a política torna-se uma bússola, através da qual conseguem projetar a sua identidade no mundo. E, até certo ponto, o facto de Trump irritar as elites é o suficiente para os fazerem sentir-se parte de um movimento, certo? E sentir que se pertence a algo maior do que a sua pequena comunidade. Ele tem esta persona de estrela de rock. Discordo de tudo o que ele diz, mas os políticos norte-americanos têm muitas vezes esta persona, nunca são aborrecidos. [Joe] Biden talvez seja um pouco, em comparação com os presidentes anteriores. Mas veja-se [Barack] Obama, Bill Clinton…
Ronald Reagan.
Exato. Têm todos esta persona de estrela rock. E é aqui que nos deixamos enredar no entretenimento da política. Isto relaciona-se com a sua primeira pergunta, sobre por que é que elegemos estas pessoas. Já me perguntaram “Se só pudesse fazer uma pergunta a uma pessoa poderosa, qual seria?” E a resposta que dou sempre é “Se chegasse ao poder, qual a razão que o faria abdicar dele voluntariamente?” Porque é suposto o poder ser uma ferramenta, é suposto servir para alguma coisa, não ser um objetivo em si mesmo. E todos os políticos pensam no poder como “Por quanto tempo consigo mantê-lo?” Quando aquilo que queremos é que as pessoas vejam o poder como um mecanismo para atingir um objetivo, para ajudar as pessoas. Tudo isso está tão perdido…
Nunca ninguém perguntou a Trump por que é que ele se quer tornar poderoso. Não é para ajudar as pessoas, ninguém acredita nisso! Ninguém acha que ele é alguém empático, que quer melhorar a vida dos outros. Por isso, perdemos completamente o rumo. A política devia ser um espaço onde as pessoas se unem, chegam a compromissos, melhoram a vida dos cidadãos comuns. Em vez disso, temos a política como drama, como desporto, como entretenimento. E os eleitores são enredados nisso e escolhem as pessoas que as entretêm melhor. Têm algo contra políticos aborrecidos, mas o que quero é alguém que consiga resolver problemas. E essas pessoas não costumam entrar na política, porque não são atraídas pelas luzes, pelo palco, pela pompa do poder. É por isso que o recrutamento de candidatos é tão importante, para colocar no poder pessoas que de outra forma talvez não o procurassem.
Diz que esse processo de recrutamento deve incluir avaliações psicológicas dos candidatos. Mas como pode ser isso compatível com uma eleição democrática?
Há algumas coisas a ter em atenção. Primeiro, fico espantado com o pouco dinheiro que os partidos gastam a recrutar candidatos. A identificar pessoas nas comunidades que têm um registo de liderança íntegra, em posições de serviço. Essas pessoas dariam excelentes políticos. O paradoxo que noto sempre é que quando se pergunta a alguém “Conhece alguma pessoa que seria ótima a gerir o país?”, quase toda a gente diz que sim. Toda a gente conhece pessoas na sua comunidade que seriam lideranças excelentes. Deram provas e preocupam-se com as coisas certas. E depois olhamos para o topo da sociedade e ficamos desiludidos, achamos que todos estão ali pelas razões erradas. Aquilo que digo é que não é impossível mudar isso. Podemos desenhar um sistema. Temos de persuadir as pessoas de que vale a pena ter poder, mesmo que por pouco tempo — porque a maioria das pessoas acha o poder um fardo. As pessoas que não desejam o poder acham a ideia de entrar na política aterradora.
Mas não é suposto ser difícil?
É. Esse é um dos grandes testes. Um político que quer ficar no poder para sempre não está a entender que as suas decisões estão a destruir vidas. Isso faz parte da vida dum político. Se tudo correr bem, melhorará mais vidas do que aquelas que piorará, mas algumas das suas decisões vão estragar a vida de alguns.
É sempre uma escolha entre duas más opções?
Exatamente. E se isso não tiver um impacto emocional na pessoa que ocupa o cargo, então é porque essa pessoa não devia estar nesse cargo. O meu irmão é médico e costumo fazer uma analogia com o que ele me diz. Pergunto-lhe: “Muitos dos teus pacientes morrem. Vai ficando mais fácil com o tempo?”. E ele diz-me: “Se ficasse mais fácil, demitia-me. Porque se não entender o que está em jogo, não devo ser médico.” Passa-se exatamente o mesmo com os políticos. Quando eles começam a pensar que as pessoas são só números numa folha de Excel, devem sair do poder. Não conheço Obama, mas sei que ele fazia uma coisa muito boa. Ele tinha um sistema em que, todos os dias, a equipa lhe trazia dez cartas de norte-americanos comuns que tinham sido enviadas para a Casa Branca, a queixarem-se de problemas. E, todas as noites, antes de ir dormir, ele lia essas cartas e só depois se ia deitar. Porque é preciso a pessoa lembrar-se proativamente de que não é a estrela, mesmo quando habitualmente é aplaudida ao entrar numa sala. Psicologicamente, o poder cria uma espécie de cortina de ferro entre as emoções do próprio e tudo o resto, há evidências neurológicas e psicológicas disto. Por isso é preciso criar sistemas que lembrem àquela pessoa o que está em jogo.
Quero que quem esteja no poder esteja em sofrimento. Quero que sinta que é difícil. Porque essas pessoas são os melhores líderes. E este é o tipo de coisas que os eleitores devem perguntar a quem está no poder. “Por que quer isto?” ou “Isto afeta-o?”. Porque se eles disserem que não, isso é mau. Muitas vezes perguntam-me se o limite de mandatos não é já suficiente. E sim, acho que eles têm uma função. Mas também acho que não devíamos precisar deles. Se eu fosse Presidente, não quereria ter mais do que um, dois mandatos no máximo. Uma pessoa normal não aprecia aquele período da sua vida. Porque é suposto ser apenas um serviço aos outros.
No seu livro Corruptíveis fala em como os sistemas influenciam o próprio poder e dá o exemplo do Rei Leopoldo, que tinha um comportamento diferente na Bélgica do que tinha no Congo, porque os sistemas eram diferentes. Crê que o sistema democrático continua a ser o melhor a gerir o poder ou está a perder essa capacidade?
Acredito completamente na democracia, é de longe o melhor sistema. Concordo com a frase de Winston Churchill de que “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras”. Tem problemas, mas é melhor do que qualquer outra coisa. E a principal razão para isso é que a democracia tem a capacidade de se auto-corrigir. Neste momento vivo no Reino Unido e ainda há pouco tivemos Liz Truss, que esteve no poder 49 dias. Ela era uma piada, mas o país resolveu-se ao fim de 50 dias, porque tinha um mecanismo para a afastar. Se ela fosse uma ditadora, teríamos ficado com Liz Truss durante décadas. Costumo dizer que as democracias são formas de governo em que os eleitores precisam de ter grandes expectativas.
Não sou especialista em Portugal, mas soube que tiveram agora um escândalo. Aquilo que definirá a democracia portuguesa é a forma como lidará com este escândalo. Se disserem “não toleramos a corrupção, não toleramos qualquer forma de abuso”, isso afetará não só a colheita atual de políticos, mas também a próxima geração. Este vai ser o caso precedente de Portugal, em que o país decide quanto abuso de poder por parte do ambiente político vai tolerar. Se a resposta for “nenhum”, a próxima geração de políticos vai ser menos corrupta. É uma relação muito direta, em que a responsabilização trava ciclos de corrupção e abuso futuros. Nos regimes autoritários isto não é possível, é tudo feito nos bastidores. Nunca se sabe quem é corrupto, porque isso é encoberto e não há jornalistas para os denunciar, acabam mortos. É por isso que a democracia é muito superior, mas os Estados democráticos continuam a ter de fazer escolhas quando enfrentam escândalos de corrupção. Porque essa é a natureza da fera, haverá sempre corrupção até certo ponto. A questão é como se lida com ela.
A propósito de regimes autoritários, parece incontornável falar de Vladimir Putin. Quando ele surgiu na cena mundial, muitos não o viram como um líder autoritário, incluindo no Ocidente. Tendo em conta o que conhece do poder, diria que ele se tornou autoritário com o tempo?
Não, ele já o era. Todo o abuso de poder e corrupção surgem de uma interseção entre o sistema e o indivíduo. O caso de Putin foi o de um diagnóstico errado, com base numa falsa esperança. Toda a gente esperava que, depois da União Soviética, a Rússia se tornasse um Estado “normal”. Havia muito otimismo. E isto é costume. O caso de Aung San Suu Kyi no Myanmar é um ótimo exemplo: como ela se opunha a um regime militar, todos assumiram que ela seria melhor. Mas o sistema continua a estar estragado — e creio que ela sempre teve atitudes problemáticas. Passa-se o mesmo com Putin. Ele foi criado no KGB. Não é possível obter um servidor público democrata quando ele vem do KGB. Não é o tipo de ambiente certo para isso. E, para além disto tudo, temos um sistema em que a única forma de alguém se tornar poderoso é agradando a oligarcas que são um bando de criminosos, que roubaram dinheiro ao Estado durante os anos 90 para fazerem a própria fortuna. É por isso que costumo fazer esta ressalva sobre a Rússia: Putin até pode cair — se a guerra correr suficientemente mal, se os oligarcas se virarem contra ele, o que seja —, mas não vejo razão para acreditar que, a não ser que haja uma revolução, a pessoa que se segue será melhor. Porque o sistema é exatamente o mesmo. Putin é um tipo muito desagradável e está a operar num sistema onde, para se conseguir sobreviver, é preciso ser-se horrível. É por isso que acho que a interpretação de culpar apenas os indivíduos é superficial. É claro que eles são responsáveis, mas a questão mais profunda não é essa.
Veja-se o caso de Portugal: há culpados, mas também é preciso questionar o sistema. Como é que foi possível a corrupção acontecer? Como é que não foi logo detetada? É por isso que defendo que deve haver mais espaço nos regimes democráticos para os jornalistas fazerem trabalhos como infiltrados. Trabalhos em que criam empresas falsas e abordam os políticos com possibilidades de subornos ou tentativas de aceder ao governo através de dinheiro. Sugiro isto no meu livro e espero que tenha tido algum reflexo no Reino Unido, onde há seis meses houve algo deste género. Um órgão de comunicação [o jornal The Times] criou uma empresa falsa, registou-a na Coreia e tentou aliciar políticos, oferecendo-lhes 10 mil libras para marcarem reuniões com o primeiro-ministro. Três deles aceitaram e foi uma vergonha. Não foi ilegal, mas foi uma vergonha. A questão é que qualquer político que seja abordado agora questiona-se se aquilo não será trabalho de um jornalista. E essa é uma forma quase instantânea de limpar o sistema. Da próxima vez que alguém na indústria do lítio andar a fazer coisas erradas, vai preocupar-se: “E se isto aparece numa primeira página?”. Temos uma postura muito deferente em relação aos políticos. Acho que os políticos devem passar um mau bocado, porque estar no poder é suposto ser difícil. E o escrutínio do jornalismo é importante. Dar a estas pessoas um medo saudável de virem a ser expostas é algo bom numa democracia.
Tem outras críticas a fazer aos jornalistas. Na cobertura de políticos populistas, muita gente diz que não se deve dar voz a políticos como Trump, mas também agora Javier Milei, na Argentina, ou Geert Wilders, nos Países Baixos, porque se está a promover as suas ideias. Mas o Brian defende que se deve fazer precisamente o oposto, não é?
Há uma nuance importante aqui. Acho que houve erros graves em 2015 e 2016, quando se amplificou Trump. Ele tinha 1% nas sondagens e teve tempo de antena ilimitada, há uma estimativa que diz que foi o equivalente a cerca de 2 mil milhões de dólares em cobertura televisiva. Portanto a CNN e os outros canais fizeram dele mainstream e creio que isso foi um erro. O argumento que apresento agora é o de que já toda a gente conhece as ideias de Donald Trump. Ele já não é uma surpresa. E quero que as pessoas saibam quão extremista ele é. Sim, 30% a 40% da população dos EUA não tem problema com isso, mas isso não chega para vencer uma eleição. E creio que, porque as pessoas não estão a ver o lado extremista dele todos os dias como acontecia antes, estão a esquecer-se de quão vil e racista e horrível ele é. Quando falamos disto na perspetiva de líderes populistas que são candidatos de uma franja, não creio que devam ser amplificados, devem ser cobertos de forma proporcional ao apoio que têm na população — se têm 1%, não devem ter grande cobertura, certo? Mas, por exemplo, nos Países Baixos não é possível ignorá-los, porque tiveram o maior número de votos. Já agora, quero dizer que acho que quando acompanham estes temas os jornalistas devem ter um enviesamento: o da pró-democracia. Esse enviesamento deve ser-lhes permitido [risos].
Não existe jornalismo sem democracia, isso não é uma imprensa livre. Não me incomoda que os jornalistas digam, por exemplo, que Donald Trump tem ideias anti-democráticas. Não é uma questão de opinião, é um facto objetivo. Os jornalistas têm medo de dizer coisas como “Trump mentiu”, porque parece que estão a entrar na área da opinião. Mas se ele disse repetidamente algo falso, foi-lhe dito que era falso e ele continuou a dizê-lo, então é uma mentira. Toda a gente concorda com isto. Sim, os jornalistas têm de ser equilibrados e objetivos, mas também devem ter um compromisso com a verdade e com a democracia. Caso contrário, corremos o risco de algumas figuras serem vistas com lentes cor-de-rosa, como acho que está a acontecer com Trump, porque algumas coisas que diz não estão a ser reportadas. Anda a chamar “vermes” a pessoas, a dizer que é preciso uma purga, etc. e isso tem de ser noticiado. O ponto que estava a fazer quando escrevi isto a primeira vez é que algum do jornalismo, por ser um negócio, é guiado pela novidade e não pela importância do tema. E estas são coisas muito, muito importantes. Quero que em novembro, cada eleitor que for votar na América saiba exatamente em quem está a votar. Tenho familiares que votam em Trump — não quero que eles possam fingir que não sabiam no que estavam a votar. Se o quiserem fazer à mesma, tudo bem, discordamos fortemente e pronto. Mas não quero que eles possam dizer “ah, não sabia que ele era assim tão mau”. A democracia também pode ser definida como o consentimento informada dos governados. Acho uma ótima definição. E é por isso que a imprensa é tão crucial numa democracia. Um dos maiores problemas do século XXI é o facto de as pessoas estarem a obter informação por fontes não confiáveis. O canal que faz chegar a informação aos eleitores está estragado, está cheio de um lodo tóxico. E surpreendemo-nos que o resultado sejam governos cada vez mais tóxicos?
Mas tudo isto nos faz regressar ao início. É claro que há personalidades corrompíveis pelo poder, mas não temos também um papel quando os elegemos?
É claro que, em parte, a culpa é nossa. Mas a minha pesquisa também tem em conta os enviesamentos cognitivos dos eleitores, com base na psicologia evolutiva. Há quem os questione, mas acho que têm alguma validade. Há enviesamentos que estão entranhados em nós e que nos fazem sentir-nos atraídos por um determinado tipo de líder. Há muita literatura que demonstra, por exemplo, que as figuras de “homens fortes” são atrativas para os eleitores, sobretudo em momentos de crise. E muitos de nós neste momento sentimos que estamos numa crise constante, não é? Junta-se a desigualdade económica e todo este tipo de coisas alimentam o populismo. Mas não se podem resolver estas problemas com uma solução mágica. Melhoramos o jornalismo? Mas as pessoas continuam chateadas com as elites e vão reagir. Culpamos os eleitores? Mas eles não têm políticos melhores para escolher. Temos de resolver tudo isto ao mesmo tempo: temos de ter candidatos melhores, temos de ter mais escrutínio, temos de ter mais jornalismo de investigação, temos de ter melhores sistemas de educação a longo-prazo. Este é o grande desafio do século XXI.
Vivemos num mundo em que a geopolítica nos dividiu entre democracias e autoritarismos, vai ser o Ocidente versus a China e a Rússia, provavelmente. Vamos conseguir estar à altura do desafio ou vamos despedaçar-nos? Quero que os políticos falem abertamente sobre isto. As nossas democracias estão verdadeiramente em crise e em parte por culpa própria; mas temos de falar de reformas. Não é dizer “Vamos aumentar o Orçamento de Estado em 3%”. Essa resposta não chega quando o próprio sistema se está a desfazer. Temos de ter um debate amplo sobre o tipo de sociedade que queremos ter daqui a 20 anos. Muita gente está preocupada, e com razão. Eu também estou. Parte da minha investigação é tentar descobrir por que temos os políticos errados. E não basta dizer “Esta pessoa é má”. Temos de nos olhar ao espelho e perguntar “Como é que o nosso sistema permitiu isto?”. É uma pergunta muito mais difícil de responder, mas é aquela que garante que não se volta a repetir.