796kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

FAYA

FAYA

"Cavalos de Corrida": Marco Leão e André Santos levam bandidos dos anos 80 à RTP para "pôr a televisão a pensar"

À segunda série para a RTP, André Santos e Marco Leão filmam uma história num Portugal que podia ser o de hoje. Estreia-se esta quarta-feira. Os realizadores apresentam-nos a série.

André Santos e Marco Leão, realizadores que se formaram no universo íntimo das curtas-metragens e têm andado a explorar a televisão (“Luz Vermelha” em 2019 e agora “Cavalos de Corrida) estão, neste momento, à procura de casa. Durante a pandemia de Covid-19, escreveram guiões sobre um grupo de assaltantes portugueses que procuravam sobreviver nos turbulentos anos 80, década em que nasceram. Resgate financeiro com a chamada do FMI, pobreza, desemprego, inflação e uma dupla de bandidos a tentar conseguir dinheiro para comprar uma casa. Vamos a ver e os realizadores estão na mesma função, mas sem armas nem bandidagem.

“Depois da apresentação que fizemos na Figueira da Foz, onde gravámos, percebemos que todas as personagens estão quebradas, tal como nós estávamos durante a pandemia. O que fizemos, em grande parte, foi o largar de muita coisa que estávamos a sentir na altura. Durante a pandemia, tivemos de sair da casa onde estávamos. E, neste momento, essa casa está vazia porque o proprietário não queria barulho por cima da sua habitação. Todo este sentimento foi-se instalando nestas personagens porque era essa também a nossa realidade”, dizem em entrevista ao Observador os autores de “Cavalos de Corrida”.

A trama, produzida pela Ukbar Filmes, conta no elenco como nomes como Teresa Tavares, Miguel Guilherme, Soraia Chaves ou Tomás Alves. Domingos é serralheiro, Olinda vende cremes, os dois querem comprar a casa dos seus sonhos. Nesta história falta Orlando, um mafioso de segunda classe à portuguesa, com um gato à secretária e tudo, que quer assaltar a caixa forte de um banco.

[o trailer de “Cavalos de Corrida”:]

Não vale a pena fazer comparações. Não é que os autores não deixem, é só porque a história, em estreia esta quarta-feira, dia 22, na RTP1 e na RTP Play, pertence a André Santos e a Marco Leão. Não há uma investigação profunda sobre o mundo dos assaltos. Há a busca por uma identidade. “Sentimos que podíamos trazer o cinema para a televisão. Quando começámos a trabalhar no ‘Cavalos de Corrida’, a RTP apoiou-nos nesta loucura, decidimos tentar uma abordagem diferente. Não é tanto uma série plot driven, em que a história se vai desenrolando em função de algo muito específico. Optámos por seguir as personagens. Criar uma empatia. Mas há muito enredo, respeitámos todas as regras televisivas”, dizem.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Não comparemos com “A Crónica dos Bons Malandros”, adaptação do livro de Mário Zambujal e outro dos projetos da Ukbar. Nem estabeleçamos paralelos com filmes de ação que os dois realizadores devoraram para se prepararem para esta série. Há influências de gente como Michael Mann ou Tarantino? Há. Mas o aparato, os mega-orçamentos para destruir automóveis e as grandes sequências de ação, deram lugar à psique destes cavalos. Não é insulto apelidar assim as personagens. Porque até André Santos e Marco Leão se veem assim. Sempre a correr. Até na busca por uma casa.

Os dois começaram a parceria em 2007, com uma mão cheia de curtas-metragens, depois de se formarem na Escola Superior de Comunicação de Lisboa. Estudaram publicidade, multimédia, fizeram som, realização e perceberam: é em dupla que isto funciona. Não se enganaram. Estão agora a pegar num antigo projeto: uma longa metragem. Têm vontade de fazer mais. Mais uma temporada de “Cavalos de Corrida”, mais séries para outros canais, mais um desafio, quem sabe para uma plataforma de streaming. É correr, sem palas nos olhos. “As nossas personagens do ‘Cavalos de Corrida’ somos nós, estamos no limite a tentar superar-nos”.

André Santos (à esquerda) e Marco Leão, realizadores e argumentistas da série "Cavalos de Corrida"

Vêm de um meio mais intimista, o das curtas-metragens, mas também já tinham feito o “Luz Vermelha” para a RTP1. Apesar de trabalharem com a Ukbar e a RTP, vocês são figuras relativamente novas na televisão. Que diferença é que existe, agora já num “segundo take” de ficção, do cinema para a televisão?
André Santos (AS) — Fizemos sete curtas-metragens juntos, de 2008 a 2017. Depois de estrearmos a nossa última curta, o diretor de fotografia, o Hugo Azevedo, que na altura estava com a Avenge Films, disse-nos que estavam à procura de realizadores para um produto para televisão. Aceitámos, porque precisávamos de ganhar dinheiro e queríamos ter uma experiência diferente e mais longa. Como não tínhamos ainda trabalhado numa longa, aceitámos. Claro que foi um susto, foi uma experiência diferente, trabalhar com elencos maiores. Mas sim, passámos de fazer curtas de um sistema indie com poucos atores e equipas pequenas para, de repente, um mapa de rodagens infernal, pessoas a fazer perguntas de todos os lados e mais alguns. Ainda assim, gostámos muito de lidar com essa adrenalina porque obrigou-nos a pensar e a ser rápidos. Wntretanto, mudámos de produtora e estávamos a concorrer com projetos de cinema com a Ukbar e perguntaram-nos se queríamos fazer uma série da nossa autoria. Aqui estamos.

Marco Leão (ML) — Devo dizer que não consigo pegar assim nesta questão. Parece que falas como se tivéssemos estado contrariados. Não sinto isso nem acho que tu sintas. Sempre quisemos fazer uma série de televisão. É um bom desafio.

AS — Sentiste isso da minha parte?

ML — Sim.

AS — Estou cansado…

ML — Certo. Acho que veio de uma vontade de trabalhar este espaço episódico que nos permitiu ter arcos de personagens muito mais densos. De haver espaço para confrontos muito maiores. Sentimos que podíamos trazer o cinema para a televisão. Quando começámos a trabalhar no “Cavalos de Corrida”, a RTP apoiou-nos nesta loucura, decidimos tentar uma abordagem diferente. Não é tanto uma série plot driven desde o início, optámos por seguir as personagens. Criar uma empatia. Claro que há muito enredo, respeitámos todas as regras televisivas. Mas a densidade emocional das personagens no cinema está aqui.

AS — Queríamos uma série de ação, mas também trabalhar esta densidade. Somos os dois de 1984, mas as nossas grandes referências são os filmes de ação, repletos de explosões e aparato. Não queríamos esse caminho. Na pesquisa vimos quase cem filmes, de 1940 até 2020. Fomos ao film noir, ao “Thief”, ao “The Killing”, à cinematografia do Michael Mann. Pegámos no Portugal dos anos 80 e nas nossas preocupações de agora. Essa altura foi complicada, houve um resgate financeiro, pobreza geral, e agora a situação não está tão diferente assim. Queríamos encontrar um equilíbrio entre uma série de ação com estas personagens que, no fundo, são os nossos amigos, pessoas que estão à nossa volta. Depois foi criar este “Bonnie and Clyde” lusitano, uma dupla que pega numa arma e tenta angariar fundos suficientes para comprar uma casa. Que é exatamente aquilo que eu e o Marco estamos a tentar fazer agora.

"Quisemos desenhar personagens que não sabem de nada, que estão a passar pela mesma experiência, pelos mesmos processos. Como andam à pancada, como roubam um carro, como abrem uma porta? Queríamos a perspetiva humana: como é que eu faço isto? Quanto pesa um crime na cabeça de uma pessoa?"

Com baixos orçamentos no audiovisual, como é que se filma um género que em princípio é tão caro?
MS — Pensámos: é possível fazer ação bem feita, com bom gosto. É possível fazer como outros exemplos que vemos lá fora. Não é preciso cair em todos os clichés que já vimos na televisão portuguesa. Nós, na nossa carreira, só temos parado quando conseguimos. Se acredito, vou mesmo conseguir fazer. Tem sido assim. Até pode haver um lado ingénuo de acreditar que é possível. Com isto tudo, é difícil, porque os financiamentos são baixos e a ação exige muito mais aparato e tempo para filmar.”Infelizmente”, com as mesmas condições do que os outros, escolhemos este género. Não é um caminho a seguir, não podemos aceitar que tudo se faz com a mesma quantia de dinheiro. Os orçamentos são sempre iguais, sejam pessoas a conversar ou carros a rebentar. São entraves no caminho. Mas nós metemos na cabeça e fomos até ao fim.

AS — Olhámos para o que se fazia nos anos 40, 50, 60, onde era tudo mais acessível. Em Hollywood, desde os anos 80, é quase tudo baseado em cenas inverosímeis, com muitas cenas de automóveis. Quisemos desenhar personagens que não sabem de nada, que estão a passar pela mesma experiência, pelos mesmos processos. Como andam à pancada, como roubam um carro, como abrem uma porta? Queríamos a perspetiva humana: como é que eu faço isto? Quanto pesa um crime na cabeça de uma pessoa? Podemos olhar para “Breaking Bad”, com o Walter White a descobrir que está doente, que começa com uma causa nobre para a mulher e o filho ficarem com algo, e acaba por se corromper.

A vossa influência pende para os Estados Unidos ou para o cinema europeu?
AS — Europa. Muito cinema europeu.

MS — Se bem que o Michael Mann tem um grande peso. Quando vemos o “Heat” ou o “Thief”, há personagens com motivações densas, com sonhos grandes, mas a vida trama-os. O nosso cinema é europeu, claro, é o nosso contexto. Não queremos estar noutro sítio. Somos portugueses, é onde queremos estar.

AS — Não há nenhuma tentativa de americanização.

ML — Nenhuma. Procurámos poucas referências norte-americanas. A nossa mais valia é a visão que temos. Nem fazia sentido tentar fazer uma série norte-americana com todos os seus estereótipos. Foi o que senti quando vi o “Show Girls” do Paul Verhoeven, recentemente. Ou mesmo com o que o realizador Michelangelo Antonioni. Há sempre um olhar de fora.

FAYA

Vocês escrevem? Com funciona o trabalho em dupla?
AS — É a nossa vida. Sempre escrevemos e realizámos. Também estamos juntos há quase 17 anos. É algo indissociável. As nossas vidas cruzam-se.

ML — Para nós é natural, para as pessoas à nossa volta também. Percebem que a dinâmica está bem oleada. Costumamos ter visões parecidas. Quando salta para a equipa temos de ter a certeza que estamos no mesmo caminho. E acho que isso se sente.

AS — Em termos logísticos até ajuda sermos dois. Um está com o diretor de fotografia, outro está com os atores. Pela primeira vez nesta série tivemos de fazer duas equipas. Ou seja, estivemos separados.

ML — Essa parte foi tensa para mim. Comecei a pensar se realmente a conseguia fazer. Se conseguia atingir os mesmos resultados, sozinho. Sair da zona de conforto. Acho que resultou, felizmente. Só aconteceu porque quisemos colocar a qualidade da série acima de tudo. Esta não seria a nossa escolha, queríamos estar a filmar todas as cenas. Até porque os atores também gostam desta dinâmica que criámos. Quando estávamos separados, os atores sentiram. Um estabiliza e o outro faz o contrário.

AS — Um traz o caos, que sou eu, outro traz a ordem, que é o Marco.

ML — Os atores diziam: “está aqui qualquer coisa estranha” quando as equipas eram divididas. Preferia não repetir, mas acho que não funcionou mal. Foram imposições que o modelo trouxe.

AS — Não fizemos quase pré-produção, estivemos numa rodagem de quarenta e sete dias e só tivemos repérage para as primeiras três semanas. Enquanto filmávamos, estávamos a fazer repérage. Era uma máquina sempre a mexer, alguém saía para ir ver décors ao final do dia. Mesmo com os atores, foi muito impulsivo. Não tivemos tempo de fazer ensaios sequer. Quando começámos a filmar, perguntámos se queriam fazer uma leitura. Toda a gente escolheu a segunda opção de ir desbravando caminho. Acho que foi o mais sensato. Tínhamos acabado de escrever, o texto estava todo na cabeça, sabíamos o que queríamos, quem eram as personagens.

"Vimos recortes de jornais de assaltos que aconteceram. Há um assalto que foi parcialmente inspirado mas não posso revelar mais. Nessa pesquisa não saltou nenhum grande nome ou grandes personagens. Isso interessou-nos. Quem seriam, o que as faria sofrer, o que as faria sonhar. As personagens não são inspiradas em ninguém, vêm da nossa cabeça. Não há uma grande base histórica"

Quando foi a rodagem? Li que a série já deveria ter saído.
ML — Filmámos em maio de 2021 e fechamos em julho de 2021. Estivemos em pós-produção, estivemos num hiato, suspendemos durante muito tempo. A série só esteve mesmo pronta em novembro, quando a estreámos num festival em Genebra, onde esteve na competição de séries.

AS — Começámos a filmar de forma muito impulsiva. Depois da rodagem estivemos seis meses parados. A pós-produção foi feita a conta gotas. Tudo ao longo do ano.

[ML] Isto justifica-se com a falta de condições que impede que tudo ande ao ritmo que é preciso. Foi andando devagar, mas chegámos a bom porto. Talvez a série pudesse chegar para o último trimestre, mas a RTP também foi recebendo muito conteúdo porque depois da pandemia produziu-se muito. Há muitas séries em fila de espera.

AS — Sim, por vezes nem havia malta técnica para as nossas equipas. A uma semana de começarmos a filmar faltava-nos um anotador e acabámos por arranjar uma pessoa que estava em Paris. Não havia ninguém.

Há algum episódio histórico dos anos 80 em que se baseiem? Como funcionou a escrita do guião?
ML — Vimos recortes de jornais de assaltos que aconteceram. Há um assalto que foi parcialmente inspirado, mas não posso revelar mais. Nessa pesquisa não saltou nenhum grande nome nem grandes personagens. Isso interessou-nos. Quem seriam, o que as faria sofrer, o que as faria sonhar. As personagens não são inspiradas em ninguém, vêm da nossa cabeça. Não há uma grande base histórica.

AS — A série foi toda escrita em contexto pandémico. Ainda esta semana fomos à Figueira da Foz e viemos a conversar com a Teresa Tavares, uma das atrizes principais deste elenco, no carro. E percebemos que todas as personagens estão quebradas, tal como nós estávamos durante a pandemia. O que fizemos, em grande parte, foi o largar de muita coisa que estávamos a sentir na altura. Durante a pandemia, tivemos de sair da casa onde estávamos. E, neste momento, essa casa está vazia porque o proprietário não queria barulho por cima da sua habitação. Todo este sentimento foi-se instalando nestas personagens porque era essa também a nossa realidade.

Viram a “Crónica dos Bons Malandros”, outro dos mais recentes projetos da Ukbar Filmes? Podemos fazer comparações?
ML — Acho que é impossível. Um é uma comédia, uma adaptação literária. Sabíamos o que queríamos fazer. E a nossa é ação, não é comédia.

AS — Nem pensámos no catálogo da Ukbar como um todo.

ML — Exacto. O que era importante era preservar a nossa identidade. Com um lado moderno que as produções da RTP1 ainda têm pouco. Acho que o José Fragoso está a trabalhar bem, com esse lado, como o “Pôr do Sol”, “Causa Própria” ou o “Da Mood”, que saem desse lugar histórico e referencial, que mexe com tudo o que está ligado à ditadura, de época. Ou mesmo sobre o 25 de Abril. Percebo que seja apelativo para pessoas com mais de 70 anos, mas isso vai ser renovado.

Voltemos ao cinema. Há planos para fazerem uma longa metragem? Ou querem manter-se na televisão?
AS — Agora estamos a escrever uma longa metragem.

ML — Precisamos de um produtor. Esse projeto já vem de trás, agora recuperámo-lo, é antigo. Temos um projeto desde 2016.

AS — Tivemos um filme no Sundance, fomos a um laboratório de escrita, em parceria com uma produtora grega há seis anos. Mas isso foi em 2017, a nossa vida deu uma volta um ano a seguir. Fizemos uma pausa e, entretanto, fomos convidados para fazer uma série de televisão. Portanto, o projeto acabou por ficar congelado. Queremos voltar ao cinema agora.

ML — Também estamos a trabalhar numa curta-metragem, temos ideias para televisão, uma segunda série dos “Cavalos de Corrida”, quem sabe? Temos outros projetos para outros operadores. Acho que este paralelo pode casar bem, porque o cinema precisa de tempo, a escrita é morosa. Vamos ter de andar a balançar.

AS — É preciso de saber ouvir a vida e perceber quando as coisas estão a fluir. Fomos fazendo curtas, fomos parar à televisão e esperamos que nos leve de novo ao cinema. Andar de um lado para o outro. Gosto muito de fazer televisão. Há uma adrenalina qualquer na forma de trabalhar. Mas no cinema dá para ir mais longe. O cinema permite uma transgressão que a nossa televisão não permite.

Qual é a relação dessa pausa de que falaram há pouco?
AS — Bom, não interessa explorar agora. Mas foi um período muito difícil. Tivemos uns meses a avaliar a nossa relação com o cinema. Éramos mais miúdos e imaturos. Ainda por cima somos muito dramáticos.

Se pudessem dar-me um momento que marca a vossa relação com o cinema, que história começavam por contar?
ML — Que pergunta tão difícil…

AS — Acho que consigo responder. Lembro-me que era miúdo e de passar os dias a ver filmes do Jean-Claude Van Damme. O meu padrasto era viciado em filmes de artes marciais e a minha mãe amava filmes como o “Dirty Dancing”. Quando cheguei à adolescência e veio a pirataria, vi “O Quarto da Vanda”. Percebi: “isto é qualquer coisa”. Fui sugado lá para dentro. Pensei que o cinema não era nada do que tinha andado a ver na minha infância. É um espaço para debater questões mais transgressoras, mais profundas. Foi aí que, de repente, houve uma mudança.

ML — Não sei bem que momento é esse, mas cresci a ver o “Speed”, o “Jurassic Park”, o “Assalto ao Arranha Céus”. Mas não é nada disso que quero fazer agora. Só que não consigo situar-me, assim de repente não consigo…

"Encaram a televisão como se fosse só algo para ocupar a cabeça. Mas gostava que a nossa nos obrigasse a pensar. A olhar para o passado, para o futuro e a fazer-nos pensar em questões difíceis. Acabar de ver uma série portuguesa e ficares a pensar sobre algo, ficar com uma crise existencial. Temos de ser obrigados a pensar através da nossa televisão"

Esta é a vossa segunda série, já há uma consolidação do vosso nome. Neste espaço de conteúdos portugueses onde há uma preocupação com a internacionalização, vocês sentem-se bem nesse lugar? Não têm medo de perder algo da vossa identidade?
ML — Acho que já sofremos isso na pele, com esta série.

AS — Os produtores estão sempre a falar da Netflix. Certo, e condições?

ML — Nunca estudei argumento, adoraria fazê-lo. Aprendi com o que vi, com as pessoas com quem me cruzei. Foi tudo intuitivo e continua a ser. É preciso pulso firme e saber o que se quer contar. E como se quer contar. Uma pessoa que vem do cinema é capaz de ter esse pulso mais oleado e um maior distanciamento. Claro que é possível manter a identidade, mas vai ser uma guerra. Toda a máquina à volta vai querer tornar a série mais massificada. Acho que a série “Cavalos de Corrida” destaca-se pela originalidade e não por se encaixar num algoritmo de uma plataforma de streaming. Gostava de pensar que conseguimos passar incólumes e ir para o streaming sem abdicar de nada. Mas sei que é preciso fazê-lo.

AS — Há exceções nessas plataformas, ainda assim. Há imensas séries que conseguem resistir ao algoritmo. A Netflix não é um bom exemplo, mas a HBO é. O “Scenes from a Marriage”, por exemplo, que estamos a adorar, mas tivemos de parar. O espaço de intimidade é tão intenso de tal forma que nada do que vemos é algorítmico. Muito pelo contrário, o espaço de desconforto que cria mata essa ideia.

ML — Ou o “Irma Veep” ou o “Copenhagen Cowboy”. Temos também o “Severance”. Há séries que fogem. Imagino-me mais a fazer algo assim, bem sabendo que é uma ideia distante. Olhando para os nossos exemplos, até com as coproduções que fazemos com Espanha, há muito algoritmo ali. Muita ação, violência e esteróides. Vamos ver se há espaço para outros projetos. Ou se nos podemos agarrar a esses elementos e manter a nossa intensidade. Vamos ver…

É a eterna busca pelo género português?
ML — Estamos a descobrir. Se pensarmos no nosso cinema, não há um género definido. Há alguma identidade, mas qual é o género?

AS — Se falarmos no cinema espanhol, pensamos logo no Pedro Almodóvar.

O nosso não é consensual.
ML — É isso mesmo. A televisão está à procura dessa identidade. Por exemplo, acho que o caminho do “Causa Própria” é bom . As outras séries de ficção ainda vêm de um espaço histórico, de um lado que é o do decalque da novela, com problemas narrativos ou poucos acontecimentos entre episódios.

AS — Estamos mesmo a descobrir ainda.

ML — Quanto mais dinheiro houver, mais se pode fazer. Mas também não seria consensual que todas as séries fossem como o “Causa Própria”, por exemplo. Há mais espaço para inovar e tem de haver mais para quem o quer fazer. Para fazer produtos com mais qualidade e acima da média.

AS — O que sinto, por vezes, é que as pessoas encaram a televisão como se fosse só algo para ocupar a cabeça. Mas gostava que a nossa nos obrigasse a pensar. A olhar para o passado, para o futuro e a fazer-nos pensar em questões difíceis. Acabar de ver uma série portuguesa e ficar a pensar sobre algo, ficar com uma crise existencial. Temos de ser obrigados a pensar através da nossa televisão.

A vossa atitude cria anticorpos, tanto no cinema como na televisão? Ou está a ser bem recebida?
AS — As pessoas têm respondido bem. A nossa atitude é completamente descomplexada. Como vem de um sítio visceral, estamos mesmo a fazer por gosto. Agora, durante a apresentação da série, os atores disseram que, quando se faz por gosto, é diferente. E por isso é que o ambiente de trabalho é bom, porque está tudo a dar o máximo.

ML — No cinema, fomos tendo ideias e não fomos tendo o financiamento. Fomos pedindo ajuda, tivemos esse financiamento, de pessoas a confiar e a acreditar em nós. Em televisão, a nossa visão fresca tem tido boas reações mas assustam-se quando saímos da norma. Temos de convencer, às vezes dá mesmo atrito, não é tão diplomático como esta conversa. Estamos a fazer a nossa ideia e sabemos que funciona. Claro que há segurança porque a RTP vê e recebe os guiões. Ainda estamos a ganhar espaço e temos de lutar pela nossa visão. Só que nunca cedemos.

AS — Quando queremos que algo tenha uma certa aura ou estética, às vezes é difícil ter uma linha reta. Mas quando estás motivado, acabas por chegar lá.

Um pouco como as personagens desta série.
AS — As nossas personagens de “Cavalos de Corrida” somos nós, estamos no limite a tentar a superação.

Assine o Observador a partir de 0,18€/ dia

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Vivemos tempos interessantes e importantes

Se 1% dos nossos leitores assinasse o Observador, conseguiríamos aumentar ainda mais o nosso investimento no escrutínio dos poderes públicos e na capacidade de explicarmos todas as crises – as nacionais e as internacionais. Hoje como nunca é essencial apoiar o jornalismo independente para estar bem informado. Torne-se assinante a partir de 0,18€/ dia.

Ver planos