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Faz mais ou menos um ano que todas as ocasiões passaram a ser boas para abrir uma garrafa de vinho. Conseguimos estender uma máquina de roupa sem deixar cair nenhuma mola para o terraço do vizinho, abrimos uma garrafa de vinho. Conseguimos estrelar um ovo sem rebentar a gema, abrimos uma garrafa de vinho. Conseguimos acordar antes do meio-dia, abrimos uma garrafa de vinho. Conseguimos abrir uma garrafa de vinho, abrimos uma garrafa de vinho. Aprendemos também a combinar na perfeição o jantar com a garrafa de vinho certa. “Vou jantar esta garrafa de vinho. Isto irá bem com quê?”. O vinho passou ainda a ser a nossa unidade de tempo. “Ligo-te daqui a duas garrafas de vinho”. Ou “Estou em semi lay-off. Só trabalho quatro garrafas de vinho por dia”.

A 55.ª edição do Festival da Canção ofereceu de bandeja uma dupla oportunidade, pelo menos cá em casa: a de abrir uma garrafa de vinho e a de me vestir um bocadinho melhor, que estas galas na televisão são só uma vez por semana. E foi assim que, com uma camisola sem nódoas, duas meias iguais e uns boxers sem buracos — o cúmulo do chique por estes dias — me sentei à frente da televisão para ver o desfile das dez canções finalistas e saber qual delas mandaremos à Eurovisão. No caso, a Roterdão, a cidade mais feia da Holanda. Estará o vencedor à altura da cidade? Já lá vamos.

Resolvi acompanhar também o festival nas redes sociais — as tabernas do século XXI. Acompanhar o que quer que seja nas redes sociais é sempre péssima ideia, como sabemos. Mas a vida é isso mesmo: uma sequência de péssimas ideias até chegarmos à péssima ideia que há-de matar-nos. Parece Oscar Wilde, mas fui eu que disse.

The Black Mamba vencem Festival da Canção com “Love is on My Side”

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Tentarei responder a algumas das dúvidas e questões levantadas pelos internautas, como agora se chamam as pessoas capazes de bater com os dois indicadores em teclas, juntando letras num ecrã.

Vamos lá então ao 55º Festival da Canção.

A festa começa com alguma tristeza. Num enorme palco vazio e sem público — pandemie oblige — aparecem os dois apresentadores, Vasco Palmeirim e Filomena Cautela. Vasco traz smoking e Filomena um vestido salmão sem ombros salpicado de lantejoulas. Brincam, para quebrar o gelo, com o facto de não estar lá mais ninguém. Indo a milha extra, Filomena chega a operar uma câmara.

No Facebook, Sónia R. comenta: “São sempre os mesmos apresentadores!”

São, Sónia. É isso que fazem os apresentadores. Apresentam coisas. Sempre que há coisas para apresentar. Se a Sónia R. reparar, o Telejornal, por exemplo, também é sempre apresentado pelas mesmas pessoas. É um pouco como os centros de saúde, também é sempre a mesma médica de família. Ou na mercearia. Também é sempre o Sr. Simões. Não digo que não tivesse alguma graça chamar umas caras novas para apresentar o Festival da Canção. A Sónia R. e o namorado, por exemplo. Um casal bonito, segundo a foto de perfil das férias em Torremolinos. Mas a coisa era capaz de perder algum ritmo.

Voltemos ao Festival. Depois de umas quantas brincadeiras com graça, aparece Inês Lopes Gonçalves. Traz vestido preto só com um ombro e uma original borboleta gigante na cabeça. Se fizermos uma Best Dressed List da noite, Inês leva o primeiro prémio.

No Twitter, Pedro T. pergunta: “O que é aquilo que ela tem na cabeça?”.

É um acessório, Pedro T., em boa verdade, um fascinator, e usa-se na cabeça.

Juntos, Palmeirim, Cautela e Lopes Gonçalves cantam uma versão de “Playback” — a música imortal com que Carlos Paião chegou à Eurovisão em 1981 — que nos leva pelos corredores vazios da RTP. Vazios? Não. Não completamente vazios. Passam pelo set do programa de Tânia Ribas de Oliveira, que se junta à música, pelo supostamente luxuoso camarim de Herman, na verdade uma sala do Palácio de Queluz e o ginásio de Malato. Até que chegam ao gabinete da manda-chuva da RTP: Serenela Andrade com gato persa ao colo. A performance de Serenela é irrepreensível, mas o Globo de Ouro vai para o gato. A brincadeira acaba quando Catarina Furtado manda os apresentadores irem mas é trabalhar. E eles vão.

De volta ao palco, e com Inês já na green room, Vasco e Filomena testam as palmas falsas que acompanharão cada atuação. A coisa sem palmas, de facto, ficava um bocado coxa. As pessoas só sabem se gostaram de alguma coisa se alguém bater palmas no fim. Mesmo que sejam falsas.

Seguem-se então as dez canções que, parecendo que não, são o que nos trouxe aqui.

“Saudade”

Karetus e Romeu Bairos

Os Karetus vêm vestidos de caretos, claro. O Romeu vem de Professor Caramba, o que lhe fica bem. A música, como o título deixava adivinhar, é uma coisa assim em fados, mas com uns toques de modernidade. Eu disse modernidade? Queria dizer com uns toques aos arranjos eletrónicos das músicas dos Madredeus dos anos 90. Não digo que não desse para bater o pé, mas não enche as medidas. Pelo menos as minhas. Ainda assim, é provavelmente a música mais original. Mas, já dizia o outro: esta música tem coisas boas e originais. Infelizmente, as coisas boas não são originais e as coisas originais não são boas. Alguém tem de dizer isto, e vou ter de ser eu, está visto. Estamos em 2021. Vamos na 55.ª edição do Festival da Canção. PORQUE É QUE HÁ DUAS MÚSICAS COM A PALAVRA SAUDADE E UMA COM A PALAVRA MAR? Isto dá 30% das músicas. 30% das músicas com a mesma conversa de sempre. Ai filhos já chega! Façam letras com temas atuais! Queremos “A Eutanásia Até Ser Dia”! “Chamar a Interrupção Voluntária da Gravidez”! “A Lusitana Co-adoção”! “Uma Vacina e Tanta Gente”! Qualquer coisa! Mas está na altura de enfiar a Saudade no Padrão dos Descobrimentos e atirarem tudo ao Tejo.

No Facebook, Rodrigo F. pergunta: “Ke bonekos são akeles?”.

São karetos, Rodrigo, ke é uma tradição ke há, em Trás-os-Montes, akho eu.

Classificação do júri: 4
Classificação do público: 6
A minha classificação: 4

“Joana do Mar”

Joana Alegre

Joana vem num vestido-nuvem, com uma bailarina aos pés, deitada e/ou morta. Joana Alegre tem nesta noite qualquer coisa de Grace Kelly. Depois de dois xanax e de chorar uma hora ou duas. Mas, ainda assim, antes do desastre de carro que poria fim à sua vida numa estrada do Mónaco. Não adoro o género, mas é preciso admitir que a música tem sonoridades de Eurovisão. O que, não sendo necessariamente mau, também não é necessariamente bom. E, não sendo necessariamente bom, também não é necessariamente mau. A música é bastante autobiográfica. Não o digo como um insulto, é apenas uma observação. A parte mais engraçada deste Festival foram as votações. As do júri e as do povo — ou do público, não sei como é que eles lá chamam — poucas vezes ou nenhumas coincidiu. A este propósito, as reações nas redes sociais foram diversas. Variaram entre a sugestão de matar os apresentadores a vender a RTP à Coreia do Norte. Isto não se inventa. Uma dessas discrepâncias foi o caso de Joana. O público não ligou nenhuma, mas o júri parece ter achado alguma graça. Aqui, estou com o público.

No Facebook, Teresa L. quer saber: “Ela é filha do Manuel Alegre?”.

É, Teresa. E a menina, é filha de quem?

Classificação do júri: 6
Classificação do público: 3
A minha classificação: 3

“Dia Lindo”

Fábia Maia

No título, o dia estava lindo, mas na voz de Fábia, o dia estava, na melhor das hipóteses, um pouco neurasténico. Estava aquele tipo de dias lindos que começam logo com uma pancada do dedo mindinho num dos pés da cama. Esse tipo de dias lindos. Aquele tipo de dias lindos em que descobrimos da manhã que o café acabou e a torrada nos cai ao chão com a manteiga virada para baixo. Esse tipo de dias lindos. Aquele tipo de dias lindos em que, num parque de estacionamento cheio de chaços conseguimos ir bater no único Jaguar que lá está parado. Esse tipo de dias lindos. Creio que já perceberam a ideia. Fábia escolheu um vestido de lamé preto. Ou talvez tenha sido o vestido de lamé preto que escolheu Fábio. Não sendo a mesma coisa, o resultado é igual. Mas é uma boa questão filosófica. Boa para ficar a pensar no assunto, naqueles dias lindos em que escorregamos e partimos as duas pernas e ficamos quinze dias no hospital. Mas, faites attention! Fábia tem uma voz linda. Mesmo. Mas a Laura Pausini, por exemplo, também. Talvez um dia, Fábia. Mas hoje, como dizia o chefe da Aldeia do Asterix, não é a véspera desse dia.

Nas redes sociais, Lurdes M. comenta: “Foi a minha preferida!”

Também gostámos muito da voz da sua filha, D. Lurdes.

Classificação do júri: 2
Classificação do público: 1
A minha classificação: 1

“Na Mais Profunda Saudade”

Valéria (Hélder Moutinho)

Valéria, para o número de fado da noite — a eterna insistência portuguesa de mandar um fado à Eurovisão — escolheu um vestido amarelo de princesa Disney. Com um bordado de Castelo Branco, explicou depois Valéria a ILG na green room. Vamos por partes. Hélder Moutinho é um grande fadista. A letra é bastante bonita. A voz de Valéria está cheia de fado e não foi, seguramente, a última vez que ouvimos o seu nome (atente-se ao potente final da música). E claro que era engraçado mandar um fado à Eurovisão. Mas houve qualquer coisa em “Na Mais Profunda Saudade” que não funcionou. Não percebo nada de música. Mas, como ganho a vida a falar de coisas de que não percebo, arrisco dizer que talvez tenho sido o arranjo. Nem sei bem o que é que arranjo quer dizer, mas foi disso de certeza. “Os portugueses”, esse conceito vago, gostou muito do fado de Valéria. Mas creio que entrou aqui o velho sonho de ganhar de novo a Eurovisão com uma intérprete da canção nacional vestida de Padrão dos Descobrimentos.

No Facebook, Tiago P. sugere originalmente: “Mandem outra vez a Dulce Pontes com esta música! Limpávamos aquilo outra vez!”

E, já que se fala na carreira da Dulce Pontes, por que não subir um pouco a parada, Tiago P., e mandar logo a Amália? Mas a Amália morreu, está o leitor a pensar. Exato.

Classificação do júri: 3
Classificação do público: 7
A minha classificação: 2

“Por Um Triz”

Carolina Deslandes

Carolina, uma das favoritas da noite, escolheu apresentar o seu tema com um vestido que é ao mesmo tempo um pijama e um fato de baile. Dito assim, parece péssimo, mas em Carolina a coisa fica bem. E quem somos nós, em casa de pijama, para atirar pedras a Carolina. A música é assim mais em clássico, acompanhada com violoncelo e guitarra. E fica já aqui dito que foi a minha preferida. Acabou por ser também a preferida do júri, mas não o do público. Isto deu peixeirada da grossa nas redes sociais. Mas também deu para a piada mais estafada da noite. Fica a lição: nunca se concorre ao Festival com músicas chamadas “Por um triz”, ou “Foi quase”, ou “Mais um bocado e ganhava”, ou “Quase em primeiro”. Já se sabe como são as pessoas, e isto é estar mesmo a pedi-las.

No Twitter, Pedro F. da S. revolta-se: “Os fdp do júri queriam que ganhasse esta! Mesmo à descarada!”.

Não se trata de descaramento, Pedro F. da S.. É o que o júri faz. O júri escolhe a música que gosta mais. Atentemos à definição do dicionário on-line Priberam: “Coletividade encarregada de avaliar a qualidade, o mérito, etc. de algumas pessoas ou de alguma coisa (ex.: o filme ganhou o prémio do júri)”. Quando à questão do seu tweet anterior: “Pessoal, Bimby ou Yammi?”, deixe de ser preguiçoso, Pedro F. da S. e cozinhe com tachos, panelas e frigideiras, seu calão.

Classificação do júri: 12
Classificação do público: 8
A minha classificação: 12

“Dancing in The Stars”

NEEV

Bernardo Neves, ou Neev, que acabaria por ser o preferido do público, canta em inglês. Traz um casaco de inspiração militar e umas calças daquelas que ficam bem com a generalidade das coisas, incluindo o referido casaco. Tudo nesta música resulta: ele é giro, não só canta como ainda por cima toca piano de cauda, e com uma vela em cima e tudo. Mas fiquei com a sensação que esta música já ganhou sete vezes a Eurovisão, pelo menos. Já concorreu pelo Reino Unido, pela França, e até por Andorra. Percebo que seja a preferida do público. E deve ser um prémio de consolação amargo saber que se ganhou o voto do público mas não o Festival. NEEV foi assim a Hillary Clinton desta edição. Toca aos melhores.

No Facebook, Manuel M. nota: “Já repararam que quase todas as músicas deste ano são versões da música da Elisa do ano passado?”.

Já, Manuel M.. Já.

Classificação do júri: 5
Classificação do público: 12
A minha classificação: 7

“Não Vou Ficar”

Pedro Gonçalves

Esta música tem um quê de pop sueca que me ficou no ouvido. Logo saiu, é verdade, assim que a música acabou. É a natureza da pop, nomeadamente da sueca. Pedro veio de calças e t-shirt brancas, e casaco de palhaço-rico, no bom sentido, e que lhe assentava bem. Tinha banda no palco, que é uma coisa que sempre bastante vida. A música é divertida e Pedro fartou-se de saltar. O que foi mesmo uma novidade nesta edição. A maior parte dos cantores escolheu ficar parado no meio do palco, uma moda que lançou Salvador Sobral, creio. Da minha parte, acrescentei esta música à playlist para os desgostos amorosos. E confesso que não percebo a péssima classificação do júri, e a morna classificação do público. Deve ser tudo gente com vidas amorosas ótimas, com certeza. E, Pedro, repito a lição que já dei a Carolina Deslandes. Para evitar piadas fáceis, nunca se concorre ao Festival com músicas chamadas “Não vou ficar”, ou “Mandaram-me embora”, ou “Correram comigo”.

No Facebook, Conceição A. escreveu: “PEDRO! FAZ-ME UM FILHO!”

Conceição A., reparou que esse post teve um like do seu neto?

Classificação do júri: 1 ponto
Classificação do público: 4 pontos
A minha classificação: 6 pontos

“Contramão”

Sara Afonso (Filipe Melo/Teresa Sequeira)

Sara surge de vestido simples e cabelo arrepanhado. Devo dizer que talvez tenha sido a melhor música, mas acabou por não ser a melhor interpretação. Isto é o tipo de frase que não quer dizer nada. Por exemplo, se escrevesse: “devo dizer que talvez tenha sido a melhor interpretação mas acabou por não ser a melhor música”, nem dariam pela diferença. Sara é a maior outsider do Festival. Ficaríamos a saber por Inês Lopes Gonçalves que não tem sequer redes sociais. Em conformidade, o público quis um pouco que ela se lixasse. Merecia mais. Arrisco dizer que esta música sobreviverá ao Festival. Além disso, e porque isso também é importante, Sara e Filipe Melo, o autor da música, foram os mais simpáticos e divertidos da green room. Fiquei cheio de vontade de ser amigo de Filipe Melo. Na verdade, já sou. Por isso, resolvi dizer que gostei mais da música de Carolina Deslandes, para não parecer tendencioso.

No Twitter, a ácida Gertrudes D. diz: “Esta música deu-me sono”.

Gertrudes, dei uma vista de olhos às fotos que tem públicas. Não é esta música. É a sua vida, Gertrudes.

Classificação do júri: 8
Classificação do público: 5
A minha classificação: 10

“Volte-Face”

Eu.Clides (Pedro da Linha/TOTA)

Eu.Clides apareceu todo vestido de branco e cantou sentado num banco que, ficámos a saber na green room de Lopes Gonçalves, veio diretamente da discoteca Lux. Bons tempos. A música começa com um problema de prosódia. “Quero co – pausa — meçar”, diz-nos Eu.Clides, o que dá assim um certo tom de revista do Parque Mayer. Mas o refrão é verdadeiramente orelhudo. Ao contrário do público, que odiou, gostei mesmo bastante. Vá lá a gente perceber o público.

No Facebook, Ruben G. zanga-se: “Eh pah! Cantar sentado? Desrespeito pelo público.”

Aproveito a boleia do desrespeito pelo público: Ruben G., vá pó caraças.

Classificação do júri: 7
Classificação do público: 2
A minha classificação: 8

“Love is on My Side”

The Black Mamba (Pedro Tatanka)

Mais uma música em inglês. Seria a vencedora da noite, o que não deixou de causar sururu nas redes sociais, por ser em inglês e por ter sido a segunda música mais votada pelo público. Acabou portanto por não ser a preferida quer do júri quer do público. Mas — acusam os cibernautas — por causa dos votos táticos do júri, acabou por ter uma pontuação mais alta do que era suposto. Uma espécie de Ana Gomes do Festival. Não adorei, confesso. A banda é divertida e Tatanka veio de fato e chapéu, a sua imagem de marca, com um certo ar de D’Artagnan dos subúrbios, se me permitem. Seja como for, estava escolhida a vencedora da noite, a música que representará Portugal em Roterdão. Veremos como corre a primeira experiência de concorrer com uma música em inglês, logo depois do refrão de “Um Grande, Grande Amor” de José Cid, em 1980.

No Twitter, Vasco C. comenta “Eles são fixes. Vi-os uma vez ao vivo e não sangrei dos ouvidos”.

Se isto não é um elogio, Vasco C., não sei o que será um elogio.

Classificação do júri: 10
Classificação do público: 10
A minha classificação: 5

Mas a noite não foi feita só das canções concorrentes, houve também uma belíssima e justíssima homenagem a Carlos do Carmo. O cantor, que morreu no primeiro dia deste ano, representou Portugal na Eurovisão em 1976, numa edição especial em que cantou todas as músicas.

Um homem, oito músicas e dois partidos: a história de Carlos do Carmo e do Festival da Canção de 1976

Esta homenagem lembrou algumas dessas músicas. O fadista Ricardo Ribeiro começou cantando “Estrela da Tarde”. Veio depois Ana Moura com “Flor de Verde Pinho” — a vencedora em 1976 mas, curiosamente, talvez a menos conhecida das quatro que ouvimos. Camané cantou “No Teu Poema” e, depois, os três cantaram uma versão mais curta de “Lisboa, Menina e Moça”. Estavam todos muito bem, não desfazendo.

Mas Dino D’Santiago elevou a coisa a outra dimensão com uma versão de Os Putos. Queremos já uma versão gravada e a tocar nas rádios.

Já a homenagem seguinte, a José Mário Branco, Sérgio Godinho e José Afonso, Deus me perdoe, não me cantou tanto ao coração, mas isso é problema meu. O pretexto foram três discos gravados em 1971 em Paris: Mudam-se os tempos, Mudam-se a Vontades de José Mário Branco, Os Sobreviventes de Sérgio Godinho, e Cantigas do Maio de José Afonso. As músicas foram recriadas depois pelos Clã, por Cláudia Pascoal e por Filipe Sambado.

Sérgio Godinho, o único que está felizmente vivo e de boa saúde, cantou “Novo Normal”, uma música que fez por estes dias de pandemia.

Seríamos ainda brindados com uma música inédita e bastante boa cantada por Vasco Palmeirim, Filomena Cautela e Inês Lopes Gonçalves. Estiveram os três ótimos, como é costume. E depois, a queridíssima Elisa cantou Medo de Sentir, a música que devia ter levado à Eurovisão o ano passado, não tivesse sido cancelada. Vieram-me as lágrimas aos olhos, confesso. Mas a verdade é que estou fechado em casa há um ano. Os sentimentos andam assim, à flor da pele.

Passava já da meia-noite e os apresentadores lembraram que a RTP faz neste dia 64 anos. E a história do Festival, em boa verdade, confunde-se com a da RTP, desde a primeira participação portuguesa, em 1964, com a “Oração” de António Calvário. Ficámos em último, mas não desistimos. Da Simone ao Paulo de Carvalho, do Carlos do Carmo às Doce, da Adelaide Ferreira à Maria Guinot, do Armando Gama à Dina, da Manuela Bravo à Nucha, dos Da Vinci à Sara Tavares, a história da nossa presença na Eurovisão era a mesma: a contar ficar em último mas a sonhar em ficar em primeiro. Até ao primeiro ameaço com Lúcia Moniz em 1996 e, finalmente, à vitória de Salvador Sobral em 2017. Portugal voltou a apaixonar-se pelo Festival, dizem.

As pessoas zangam-se, ralham, odeiam a música escolhida, odeiam a letra, odeiam a melodia, odeiam o cantor ou a cantora, odeiam que seja em português, odeiam que não seja em português, odeiam o vestido, os sapatos, o cabelo e a cor dos olhos. Odeiam tudo. Algumas até dizem que odeiam o Festival e dizem que não veem. Depois, nos dias da Eurovisão, lá estamos ou colados ao ecrã ou a espreitar pelo rabo do olho, para ouvir a música que odiamos, cantada pelo cantor ou a cantora que odiamos, a sonhar com os douze points. E, mesmo quando levamos zero, afinal adoramos a música, afinal adoramos o cantor ou a cantora, e fomos os melhores, e fomos mas é roubados, como sempre, porque aquilo é tudo uma grande aldrabice. Foi assim 55 vezes. Com 55 músicas de que todos sabemos ao menos um verso do refrão. Como não amar isto tudo?

Hugo van der Ding é autor (“A Criada Malcriada”), apresentador, ilustrador e cómico em geral