O mais recente folhetim da política nacional coloca António Costa numa posição de should-i-stay-or-should-i-go em 2024: entre levar o mandato até ao fim ou apanhar o comboio de um alto cargo europeu. Esta quinta-feira, no debate do programa de Governo, a pergunta dificilmente deixará de se cruzar com o primeiro-ministro, que leva a resposta preparada. Resta saber o quão conclusiva e fechada será. Em Bruxelas, a hipótese Costa para liderar o Conselho no próximo ciclo europeu é vista como possível e natural, mas também como difícil e imprevisível. À esquerda e à direita, é reconhecido ao português estatuto para o cargo. O pior é o resto. E, claro, o facto de qualquer das decisões surgir obrigatoriamente em 2024, precisamente a meio do mandato do Governo.

Nada abala o otimismo redobrado do PS nesta fase. O ativo é um António Costa insuflado com uma maioria absoluta ao fim de seis anos de governação — mesmo com a gestão de uma pandemia — que os socialistas na Europa (e não só) garantem poder ser o que quiser em Bruxelas e quando quiser. E ainda acrescentam que o primeiro-ministro português colhe simpatia entre as várias famílias políticas e não apenas na sua, a Aliança dos Socialistas e Democratas (os S&D).

A direita europeia (PPE) reconhece o estatuto que Costa tem entre os socialistas, mas em Bruxelas todos sabem que a mesa roda muitas vezes. O quadro não é garantido, como nenhum está em matéria de cargos europeus à distância de dois anos que sejam, quanto mais quatro, como já pintam alguns socialistas.

No plano nacional, o Presidente da República não só deixou margem zero a Costa para cortar caminho a meio do mandato como, no entender dos socialistas contactados pelo Observador, deixou claro que convocaria eleições se isso acontecesse. “E António Costa não correrá esse risco. Aliás, ele já foi convidado no passado e deu prioridade à governação em Portugal”, comenta uma fonte socialista em Bruxelas. A história foi oficialmente assumida por Costa, depois de fechado o pacote de candidatos ao ciclo europeu 2019-2024, ao mesmo tempo que garantia não tencionar “desertar de Portugal” e estar “muito empenhado em continuar” a governar. As legislativas de 2019 vinham logo de seguida.

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Agora, quanto a 2024, “Costa não será presidente do Conselho Europeu porque não quer”, garante a mesma fonte. O próprio ainda não o disse — aguarda-se que o faça esta quinta-feira no debate do programa do Governo — mas já vários membros do Governo vieram fazer saber que a sua ideia é cumprir como primeiro-ministro.

Costa rodeado de Europa por todos os lados

O facto de Costa ter chamado a si a tutela dos Assuntos Europeus é vista, sobretudo nos corredores do PPE, como um sinal de que estará a preparar terreno para seguir para Bruxelas. Mas os socialistas europeus garantem que este é mais um sinal da tendência centralista de Costa nesta matéria concreta do que outra coisa qualquer. “Não é o ministro dos Negócios Estrangeiros que acompanha o primeiro-ministro ao Conselho Europeu, é o secretário de Estado dos Assuntos Europeus”, aponta um antigo governante conhecedor da pasta.

Aliás, acrescenta a mesma fonte, “quem prepara o Conselho Europeu é o Conselho dos Assuntos Gerais [que é constituído pelos ministros dos Assuntos Europeus de todos os Estados-Membros da União] e quem participa nele por Portugal é o secretário de Estado dos Assuntos Europeus”. Assim, continua, “é natural que este secretário de Estado esteja na dependência direta do primeiro-ministro. Já era assim na prática. É Costa que se empenha sempre diretamente nestes assuntos.”

Quanto à preparação do terreno em Bruxelas, o que os socialistas europeus garantem é que António Costa “já tem essa rede montada, tem muito apoio na rede dos socialistas”, onde já é o líder há mais tempo em funções, e “é bem visto no centro-direita” europeu onde lhe reconhecem “capacidade para fazer contactos e resolver problemas”.

Mas para a direita há um sinal que não é “inocente”, comenta uma fonte do Partido Popular Europeu, numa referência ao secretário de Estado dos Assuntos Europeus e ao secretário de Estado da Modernização Administrativa: “Os dois secretários de Estado que estão na dependência de António Costa têm anos de experiência em Bruxelas, tanto o Tiago Antunes como o [Mário] Campolargo, que tem mais de 30 anos de Bruxelas. Aqui há gato.”

A mesma fonte lembra que “também não é inocente” a escolha de Pedro Lourtie para embaixador de Portugal junto da União Europeia. “Se for preciso montar um gabinete para responder para uma candidatura a seja o que for, naturalmente que é mais fácil com o Lourtie do que com o Nuno Brito, que foi assessor do Barroso, apesar de também ter estado com o [António] Vitorino no Governo do Guterres. Os embaixadores dizem que não têm dessas coisas, mas o Lourtie é, sem dúvida, mais do PS”, acrescenta fonte europeia. Para além de eventuais conspirações, há os factos: Pedro Lourtie foi chefe de gabinete de um primeiro-ministro do PS (José Sócrates), secretário de Estado dos Assuntos Europeus de um Governo PS e a sua nomeação coincide com este novo ciclo de Costa. Foi nomeado três dias antes das eleições.

Uma coisa é certa: entre São Bento a Bruxelas, passando por Estrasburgo, Costa tem quem percebe (e muito) como funciona a política europeia e as suas lógicas muito particulares. Já para não falar da sua própria experiência — seis anos como primeiro-ministro, os meses como eurodeputado (em 2004) não deixaram grande história. Queira ou não queira, Costa tem mesmo hipóteses de lá chegar? E tem de ser mesmo em 2024? Venham os (quase) infinitos cenários.

Conselho: o comboio passa duas vezes para o “encantador de serpentes”?

Na grande confusão da última distribuição de cargos europeus, em 2019, António Costa disse que não queria entrar “na guerra dos tronos dos cargos europeus”, mas quando questionado se tinha sido convidado para presidente do Conselho respondeu de forma seca: “É sabido que sim“.

O lugar mais natural para António Costa seria a presidência do Conselho Europeu — órgão que reúne os líderes dos Estados-membros. “Em Bruxelas o que se fala nos corredores, seja nos S&D seja no PPE, é que é o Conselho [Europeu] que ele quer. Porque é lá que se decide tudo. A Comissão pode ter funções mais executivas, mas o poder está no Conselho”, diz uma fonte europeia bem colocada ao Observador.

Há socialistas que alimentam a esperança que este cargo possa vagar em 2026, mas para tudo bater certo é preciso confiar num grau de sorte similar a ganhar o euromilhões. Mesmo para um 2otimista irritante”, é difícil de acreditar. Antes de irmos às contas, o contexto.

2024, o ano de todas as decisões

Os cargos europeus para o quinquénio entre 2024 e 2029 vão começar ser  todos decididos no logo no verão de 2024. A fragmentação das bancadas do Parlamento Europeu — que no passado era dominada por duas famílias políticas, os socialistas e a direita europeia do PPE — obriga a uma negociação coletiva de cargos entre estas duas famílias e outra que ganhou muito peso nos últimos anos: os liberais. O mais provável em 2024, é que estas três famílias políticas — tal como aconteceu em 2019 — tenham de dividir entre si quatro cargos negociados ao mesmo tempo: a presidência do Conselho Europeu, a presidência do Parlamento Europeu, a presidência da Comissão Europeia e o Alto Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança.

Em 2019, a divisão foi feita da seguinte forma: o PPE ficou com a presidência da Comissão Europeia (Úrsula Von der Leyen), os liberais com o Conselho Europeu (Charles Michel), os socialistas europeus com o Alto Representante (Joseph Borel) e a presidência do Parlamento Europeu foi divida a meio entre socialistas e PPE (David Sassoli, que faleceu em funções antes de concluir os dois anos e meio previstas; e Roberta Metsola, atualmente em funções). “Vai acontecer essa negociação global na mesma, o que será diferente é o equilíbrio de forças”, diz outra fonte europeia ao Observador.

O resultado das eleições europeias vai ser fundamental — como sempre — para definir como se mexe o xadrez europeu. Isto porque há um cargo que todos definem como prioritário: a presidência da Comissão. O partido mais votado nessas eleições vai reivindicar esse posto, o mais alto. Ou seja: se os socialistas europeus tiverem mais eurodeputados (o que não é impossível de acontecer), ficam com a presidência da Comissão e o PPE fica com o Conselho Europeu. Basta esta variável para passar a ser quase impossível António Costa ter um cargo europeu — pelo menos pela via esperada, mas já lá chegaremos.

Caso o PPE, família europeia do PSD e do CDS, vença as eleições de 2024 ficará então com a presidência da Comissão Europeia e a presidência do Conselho Europeu fica livre para socialistas ou liberais. Tal como aconteceu em Portugal em 2015, para Costa o melhor seria que os socialistas ficassem em segundo.

Estando o cargo nas mãos do S&D aumentavam de imediato as probabilidades de Costa. Há uma regra não escrita que o cargo deve ser ocupado por um ex-primeiro-ministro (se estiver em funções, ainda melhor) para dar estatuto ao órgão. Costa preenche este requisito: será primeiro-ministro em 2024.

Por outro lado, para que não fosse vetado na negociação coletiva, Costa precisava de ter acolhimento nas outras duas famílias da negociação (PPE e liberais). Mais um requisito que Costa preenche. “Até o Órban gosta dele. O Costa é um encantador de serpentes, não há ninguém no Conselho Europeu que não goste dele. E, depois, quem manda nos liberais é [Emmanuel] Macron, que também simpatiza com ele. Não é por aí que vêm os problemas”, diz ao Observador uma fonte da maior família europeia, o PPE. “Tem uma relação muito boa com Macron”, assinala uma socialista.

Ter uma maioria de países favoráveis no Conselho Europeu também ajudaria à eleição. “Os nomes têm de ser aprovados pelo Parlamento Europeu, mais saem do Conselho”, explica um diplomata europeu ao Observador. Aí, uma maioria da família política também ajudará. Neste momento o PPE lidera oito países, os socialistas sete e os liberais seis. O contexto não é desfavorável a Costa até porque os sete socialistas incluem a Alemanha e Espanha, dois países grandes. Até 2024 vão existir eleições legislativas em alguns destes países, como é o caso de França ou Espanha, mas isso não deverá alterar eventuais condições de Costa — figura consensual. Mais um requisito com visto.

A isto soma-se o estatuto que, no Conselho Europeu, é muito definido pela antiguidade. E António Costa é, de longe, o socialista há mais tempo no Conselho Europeu. E entre os outros 27, só há cinco que estão naquele órgão há mais tempo que o primeiro-ministro português. Na Europa, a idade é um posto. Mais um requisito para Costa.

Mas nem tudo é simples. Desde logo, a definição do cargo deve ser feita em 2024. E, neste caso, o primeiro-ministro teria de deixar uma maioria absoluta a meio. A agravar a situação, Marcelo Rebelo de Sousa já disse que convocaria eleições se o primeiro-ministro abandonasse o mandato a meio — foi isto mesmo que os socialistas contactados pelo Observador interpretaram das palavras presidenciais na tomada de posse do Governo.

A improvável fezada de 2027

Os socialistas portugueses alimentam a esperança que o cargo no Conselho Europeu possa ser ocupado só em 2027, a segunda metade do mandato que começa em 2024. Esta solução é uma miragem. Um antigo vice-presidente de uma das maiores famílias europeias lembra ao Observador que “todos fizeram dois mandatos: aconteceu com Rompuy, Tusk e agora com Charles Michel, que se fartou de fazer disparates e mesmo assim ficou”. Um lobista europeu, com décadas de Bruxelas, reitera essa ideia. “Ninguém ficará à espera de António Costa durante dois anos. Cabe na cabeça de alguém ganhar a lotaria e depois esperar dois anos em que há um risco real do bilhete sair do bolso?”

Os socialistas portugueses concordam com esta análise, mas esperam que seja possível o melhor de dois mundos. Nesse cenário, a distribuição de cargos seria tão complexa que obrigaria a uma divisão de mandato ao meio entre duas famílias políticas, tal como aconteceu com a presidência do Parlamento Europeu quando foi negociada em 2019.

Nesse cenário idealizado por alguns socialistas, o cargo de presidente do Conselho Europeu ficava vago só a meio de 2027, altura em que Costa já deixou o cargo de primeiro-ministro. Na primeira metade desse mandato, o presidente do Conselho seria um nome de outra família europeia e só em 2027 entrariam os socialistas. Além de nunca ter acontecido um presidente do Conselho Europeu ficar só dois anos e meio no cargo, era preciso que os astros se alinhassem na seguinte configuração: presidente da comissão do PPE ou liberais; PPE ou liberais dispostos a partilharem o ciclo de cinco anos no Conselho Europeu; e por fim, que os três aceitassem isso. Ou seja: para agarrar o cargo, o melhor é mesmo olhar para 2024.

Além disso, também esta solução mais criativa, do cargo dividido a meio entre duas famílias políticas, teria de ficar fechada logo em 2024, altura em que será negociado todo o pacote de altos cargos, com as respetivas partilhas entre famílias políticas. Isso significaria que, logo nesse ano (meio do mandato do Governo português) Costa teria guia de marcha para Bruxelas em assim que deixasse de ser primeiro-ministro. Só aconteceria depois, é certo, mas o pré-anúncio cairia no meio do caminho.

Comissão: difícil ser ‘spitzen’, difícil ser ‘kandidat’

A tese circulava no bas-fond da direita antes da maioria absoluta: Costa teria intenções de ser candidato às Europeias, como cabeça de lista, e depois candidatar-se ao Parlamento Europeu. Parece algo descabido, mas foi algo que o próprio Mário Soares tentou (sem êxito, já que o PPE, na altura, impôs Nicole Fontaine) depois de já ter sido Presidente da República e primeiro-ministro.

Esta tese dos adversários — que circulava, por exemplo, em alguns setores do PSD — está longe da realidade e pode ser excluída já que Costa com maioria absoluta quererá tudo menos ser candidato às Europeias. Além de que o cargo de presidente do Parlamento Europeu não o entusiasma. O cargo de Alto Representante também não colhe entusiasmo junto de António Costa, que nunca se meteu por águas internacionais, nunca foi MNE nem nada parecido (ao contrário de outros ex-primeiros-ministros, como Barroso, que começou desde novo a cultivar essa área nos Governos de Cavaco).

Sobra então um cargo, que, não sendo o fato que melhor serve a Costa não seria impossível: o de presidente da Comissão Europeia. Para isso — como já se viu — era necessário os S&D, os socialistas europeus, ficarem em primeiro lugar nas eleições europeias de 2024.

Há ainda um processo importante, embora não-vinculativo que mexe com este cargo, o do spitzenkandidat (em alemão “candidatos principais”), em que as maiores famílias europeias escolhem um representante, um candidato à Comissão. Após umas eleições internas em que o candidato é escolhido, os votos nos partidos de cada família europeia (em Portugal são PSD e CDS) contam como votos nos candidatos.

Em 2019, depois das Europeias, os Estados-membros desvalorizaram por completo o spitzenkandidat. A direita europeia tinha escolhido Manfred Weber, o PPE foi o partido mais votado, mas os chefes de Governo acabaram por ignorar o alemão na solução final. Weber ficou sem a Comissão Europeia e o PPE escolheu outra alemã da mesma família europeia, Ursula Von der Leyen. Os socialistas bateram-se, no entanto, para que o seu spitzenkandidat, Frans Timmermans, ficasse com o cargo de presidente da Comissão (mais uma vez: que o que ficou em segundo presidisse à Comissão).

Os socialistas europeus são mais defensores do processo (agora ferido) de spitzenkandidat, e por isso — caso fossem o partido mais votado — teriam mais dificuldades do que o PPE para deixar cair o nome que levaram a votos. Isto significa que, se a Comissão cair para os socialistas no próximo ciclo, aquele que for o spitzenkandidat tem mais hipóteses de ocupar o cargo.

O cabeça de lista do PS às europeias e vice-presidente dos S&D, Pedro Marques, está confiante nessa vitória dos socialistas europeus: “Há muito maior probabilidade de ganharmos as eleições [Europeias] e nesse caso teremos o presidente da Comissão”. Um factor que não jogará a favor do puzzle de Costa, com o socialista a lembrar que o português “não será o spitzenkandidat porque teria de ser anunciado um ano antes [2023] e isso não vai acontecer”. Ao Observador, Pedro Marques regista ainda. precisamente, que “um spitzen do S&D tem boa probabilidade de ser eleito”

Ora, para Costa até pode ter estatuto para ser spitzenkandidat dos socialistas europeus, mas teria de começar a preparar a candidatura nos próximos meses. Se a Europa já ficou mais longe com a maioria absoluta, com os altos cargos europeu a reorganizarem-se a meio do mandato — pior ainda seria que daqui a um ano apenas António Costa começasse a trabalhar numa candidatura para esse mesmo voo. Esta solução é, por isso, altamente improvável.