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Entre o brilho e a sombra de David Bowie: há 50 anos morria Ziggy Stardust

Música, moda, sexualidade, identidade de género e uma mensagem apocalíptica fazem o universo do mais conhecido alter ego de David Bowie, uma personagem que teve de morrer em palco para ser imortal.

Foi uma fantasia extravagante que durou um ano e meio, mas viverá para a eternidade. Ziggy Stardust nasceu, ou desceu à Terra, em 1972, morreu em cerimónia pública a 3 de julho de 1973, mas rivaliza em notoriedade com o seu próprio criador. Ziggy Stardust é, provavelmente, o único alter ego musical cuja morte é assinalada (por isso escrevo sobre ele), mas também é o único que atingiu uma dimensão tão grandiosa que lhe garantiu a emancipação. Depois da sua “morte”, a vida artística de Bowie continuou com vários disfarces, mas a sombra Ziggy Stardust permaneceria e ainda hoje o personagem é celebrado como herói.

Bowie já tinha uma carreira quando criou Ziggy Stardust, até já tinha tido outro alter ego, o Major Tom de “Space Oddity”, e também já tinha brincado com ambiguidade de género nas capas de The Man Who Sold The World e Hunky Dory. Nesse sentido, a personagem Ziggy Stardust não parecia particularmente disruptiva. Nem sequer a temática sci-fi era novidade. O que tornou Ziggy especial foi a exímia concretização do conceito e o eco que teve, e continua a ter, no público.

Ziggy era uma estrela rock alienígena, um “Starman” andrógino que chega à Terra para anunciar o apocalipse iminente e que acaba por sucumbir, vitima do seu próprio ego e da adulação dos fãs. Era suposto ser um comentário à sociedade do espectáculo e ao culto das estrelas, também uma tentativa de fazer uma afirmação artística que combinasse teatro e rock, e estivesse nos antípodas do universo hippie e das calças de ganga que se tinham tornado num insosso uniforme da juventude. Bowie queria ser excessivo, provocador, diferente e queria dizer aos outros que também podiam sê-lo. A mensagem passou no momento em que atuou com os Spider From Mars no “Top Of the Pops”, em 1972, mudando a vida de milhares de adolescentes e jovens adultos que, tendo já sido iniciados nos brilhos do glam rock por Marc Bolan e T Rex, viram em Ziggy Stardust o profeta de um novo mundo, colorido, pleno de liberdade e sem tabus. Nesse momento, na TV, o conceito de Ziggy Stardust enquanto figura mítica com poderes galvanizadores, estava cumprido, mas, para isso resultar, a personagem criada por Bowie tinha sido construída e depurada ao pormenor.

[a canção “Ziggy Stardust” ao vivo na voz do protagonista pela última vez, no Hammersmith Odeon em Londres, a 3 de julho de 1973:]

Bowie sabia que palavras a música não chegavam, a imagem e atitude tinham que fazer sentido. Ziggy Stardust tinha que ser real, por isso encarnou-o em absoluto, ao ponto de se confundir com ele e não ter alternativa a não ser (ex)terminá-lo, algo que estava indiciado, profeticamente, nas canções de The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars (que terminava com “Rock And Roll Suicide”), mas que ninguém parecia prever antes de ter sido declarado em palco, no final do último concerto da digressão, no Hammersmith Odeon, em Londres — um concerto que deu um filme que agora regressa aos cinemas para assinalar precisamente os 50 anos da morte de Ziggy Stardust.

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As reações foram de surpresa e consternação, naturalmente, mas Ziggy era uma construção teatral, começada depois de David Bowie ter ido à América, em 1971, descoberto Iggy Pop e os Velvet Underground e decidido que iria fazer música desafiante em formato opera rock. O fim de Ziggy era inevitável, por muito que tenha sido sentido pelos fãs. A grande questão será: por que razão Ziggy Stardust provocou reações tão intensas? O que tinha de tão especial para ter sobrevivido, de forma quase autónoma, ao seu criador?

Com uma imagem impactante, entre o humano e o extraterrestre, o feminino e o masculino, a alta costura e a rua, Ziggy Stardust garantia a atenção e traçava o seu estatuto de trendsetter provocador, junto de uma geração que não queria ser como os pais, e não se revia na contracultura hippie, mas gostava de brincar com roupa e identidade.

As roupas eram importantes. Bowie afirmou numa entrevista à revista Q, em 1990, que toda a ideia do projeto era sobre roupas. Esta afirmação foi feita para explicar o nome escolhido, Ziggy, que lembrava Iggy (Pop), mas que, na verdade, foi roubado de um alfaiate por onde passou numa viagem de comboio (“Stardust” vinha de Vince Taylor, o Legendary Stardust Cowboy, um músico a quem o LSD convenceu que um era misto de Jesus Cristo e extraterrestre). Bowie queria que o seu personagem combinasse a estética de Laranja Mecânica, sobretudo os fatos de macaco com calças dentro das botas, com elementos do teatro Kabuki japonês, de onde vêm também a maquilhagem pesada e a androginia, e que ele conhecia desde as aulas de expressão teatral com Lindsay Kemp. No teatro Kabuki, os homens representam todos os papéis, masculinos e femininos, isso servia os propósitos de Bowie, empenhado em desafiar noções de género, e a quem maquilhagem e roupas de mulher assentavam como a uma modelo de alta costura. A então mulher, Angie, terá sido a grande impulsionadora desta feminização abraçada por Bowie, especialmente enquanto Ziggy Stardust.

Kansai Yamamoto, criador japonês, foi fundamental no desenvolvimento e concretização de Ziggy. Bowie começou por ficar encantado com a cor laranja de uma peruca usada numa produção de moda de Yamamoto para a Harpers And Queen, com roupas inspiradas, precisamente, no teatro Kabuki. Foi por isso que decidiu ter o cabelo laranja. Pintura e corte, um proto-mullet que ficaria icónico, foram feitos por Susie Fussey, futura namorada de Mick Ronson, o guitarrista dos Spiders From Mars. Yamamoto acabaria por criar alguns dos modelos mais emblemáticos de Ziggy Stardust, nomeadamente o fato de macaco de vinil preto com calças de balão, os bodies em tricot e os quimonos. A ligação de Bowie à moda, que sempre reconhecemos como forte, começou com Ziggy Stardust a fazer estrondo e a querer distanciar-se dos hippies e dos preconceitos de género.

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David Bowie chega ao Hammersmith Odeon, antes daquele que seria o último concerto como Ziggy Stardut

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A maquilhagem também era fundamental na construção da personagem. Bowie sabia o que fazer, mas pediu ajuda a Pierre de La Roche, um maquilhador que trabalhava na Elizabeth Arden, mas vivia frustrado com o que fazia. La Roche acabaria por tornar-se num maquilhador de artistas como Mick Jagger e criou, por exemplo, toda a imagem para o “Rocky Horror Picture Show”, mas começou com Ziggy Stardust. Foi La Roche que teve a ideia da sombra pesada nos olhos e do globo no centro da testa e também do raio pintado na cara de Aladdin Sane, o sucessor de Ziggy Stardust. A caracterização tornou-se tão elaborada que, no final da digressão, David Bowie demorava mais tempo a maquilhar-se como Ziggy Stardust do que passava em cima do palco.

Com uma imagem impactante, entre o humano e o extraterrestre, o feminino e o masculino, a alta costura e a rua, Ziggy Stardust garantia a atenção e traçava o seu estatuto de trendsetter provocador, junto de uma geração que não queria ser como os pais, e não se revia na contracultura hippie, mas gostava de brincar com roupa e identidade. À medida que a personagem Ziggy tomava conta do criador Bowie, tudo ganhava ainda mais expressão, através de entrevistas provocadoras que davam voz a uma espécie de rebelião hedónica contra o sistema e o conservadorismo dos mais velhos. Ziggy Stardust cultivou o excesso visual e comportamental, e a ambiguidade, ou fluidez de género, e afirmou ser gay e bissexual numa altura em que a maioria dos adolescentes não sabia bem o que significavam essas palavras mas ainda assim gostou de as ouvir e ler.

Pode argumentar-se que Ziggy Stardust foi mais uma operação de marketing do que uma personalidade com verdadeiras convicções, mas ninguém pode negar que a personagem abriu o espectro da discussão sobre sexualidade, algo que ecoa hoje nos discursos sobre identidade género.

No meio de todo o excesso e liberdade dos 70, Ziggy Stardust foi extravagante a todos os níveis e deixou um rasto profundo. Ditou tendências de moda, aproximou a moda da música e a música do teatro e tornou-se modelo para outros artistas, muitos atuais. Encontramos pedaços de Ziggy nos “monstros” extravagantes de Lady Gaga, nas ideias conceptuais de música e imagem de Bjork ou até nas etapas de transição de género de Arca divulgadas em imagens no Instagram.

No rescaldo da morte de Ziggy Stardust, quem primeiro assimilou a sua herança foram alguns punks, sobretudo os que depois dariam em góticos (por vezes definidos como “os punks que nunca deixaram o glam rock”, o que tem muito a ver com as roupas e a maquilhagem usadas), mas muito especialmente os neo românticos, com quem Bowie, aliás, manteve uma relação de proximidade. Várias personagens que frequentavam o clube Blitz, o centro nevrálgico do movimento em Londres, aparecem no videoclip de “Ashes to Ashes”, feito em 1980. Steve Strange, dos Visage, fundador do Blitz, que terá pintado cabelo de cor de laranja depois de ver Ziggy Stardust na televisão quando era miúdo, é uma das pessoas no videoclip.

Ziggy Stardust paira também como um fantasma sobre os Bauhaus, por culpa da versão que fizeram de Ziggy Stardust, certamente, mas também porque Peter Murphy soa sempre mais Ziggy do que o próprio Bowie (e talvez por isso os Bauhaus tenham sido escolhidos para aparecer no filme “The Hunger”, com Bowie e Catherine Deneuve).

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O guitarrista Mick Ronson e David Bowie no palco do Hammersmith Odeon a 3 de julho de 1973

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Mas o legado não se limita à música. Todo o universo de Ziggy Stardust está relacionado com questões de género, um assunto muito presente na realidade atual. Em 2023, 50 anos depois da morte, Ziggy tem tudo para ser um poster boy não binário (como sempre foi, embora não se usasse a expressão), servindo de modelo estético e até existencial para os que não se reconhecem nas categorias habituais. Pode argumentar-se que Ziggy Stardust foi mais uma operação de marketing do que uma personalidade com verdadeiras convicções, mas ninguém pode negar que a personagem abriu o espectro da discussão sobre sexualidade, algo que ecoa hoje nos discursos sobre identidade género.

Embora quase nunca se pense nisso, há uma outra questão, mais sombria, em que Ziggy Stardust tem eco no presente: a mensagem de apocalipse ecológico. Na mitologia de Ziggy Stardust, a Terra está condenada devido à escassez de recursos, a função de Ziggy é entreter-nos até ao fim do mundo. Este sentimento de ansiedade pelo futuro, que hoje reconhecemos como manifestação da crise climática atual, já se manifestava em 1972, em plena Guerra Fria, depois da ida do homem à Lua, com as preocupações ambientais a fermentar e a criar revolta. Joni Mitchell tinha cantado sobre isso em “Big Yellow Taxi” em 1970, Marvin Gaye também, no ano seguinte, no álbum What’s Going On. Até os Beach Boys já tinham uma canção ecológica chamada “Don’t Go Near The Water” (1971) e Bo Diddley, o lendário guitarrista de blues, gravou “Pollution”, em 1971. Ziggy Stardust, nunca sendo abertamente ecológico no discurso, fala de catástrofe ambiental logo na canção de abertura do álbum, “Five Years”, que anuncia a morte do planeta devido à falta de recursos.

Essa ideia de futuro fatídico que hoje também reconhecemos, tinha em Ziggy Stardust o profeta de uma possível salvação pela fantasia. Sabemos que não será ela a salvar-nos do desastre ambiental, mas Ziggy Stardust continua a fascinar-nos com a sua fantasia escapista e a forma como, em pouco mais de um ano, conquistou o mundo e mudou a ideia de rock star.

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