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A mais recente obra de ficção do realizador pega num tema muito específico: o que aconteceu às mulheres e viúvas dos jovens que foram recrutados um pouco por todo o mundo pelo Daesh e que ficaram no Iraque, com filhos
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A mais recente obra de ficção do realizador pega num tema muito específico: o que aconteceu às mulheres e viúvas dos jovens que foram recrutados um pouco por todo o mundo pelo Daesh e que ficaram no Iraque, com filhos

A mais recente obra de ficção do realizador pega num tema muito específico: o que aconteceu às mulheres e viúvas dos jovens que foram recrutados um pouco por todo o mundo pelo Daesh e que ficaram no Iraque, com filhos

Entre o Curdistão e o Iraque, Sérgio Tréfaut filmou a tragédia de uma noiva do Daesh

O filme que agora se estreia, "A Noiva", parte das histórias reais de viúvas de recrutados pelo Estado Islâmico. No papel principal, uma surpreendente Joana Bernardo. Entrevistámos o realizador.

Durante as apresentações de “A Cidade dos Mortos” em festivais, Sérgio Tréfaut ganhou uma paixão pelo Iraque. Começou a crescer um filme na sua cabeça que se foi transformando em “A Noiva”. A mais recente obra de ficção do realizador pega num tema muito específico: o que aconteceu às mulheres e viúvas dos jovens que foram recrutados um pouco por todo o mundo pelo Daesh e que ficaram no Iraque, com filhos. Essa pode ser a primeira pergunta, aquela que nos lança para o filme. Mas depois há uma constante quando se vê o filme e isso deve-se muito a Joana Bernardo, a atriz de 22 anos (na altura tinha 20), que interpreta Umm-Bárbara.

O que faz aquela menina inocente ali? A inocência não tem resposta, o espectador nunca sabe as verdadeiras intenções da protagonista. O filme começa com o marido a ser executado. Sabe-se que a mulher é europeia, que fugiu para casar com um homem da Jihad, que tem dois filhos e há um terceiro a caminho. E que está presa. A presença constante de Bárbara no ecrã afasta a moral de inocência vs. culpa, o espectador é transportado pelo ar de neutralidade de Joana Bernardo e vive-se o filme com essas questões (para as quais não há resposta): o que faz ela ali?; e, antes, o que leva a alguém ir para ali? Como nos explica na entrevista, Sérgio Tréfaut econtrou este sentimento em algumas entrevistas que viu de algumas destas viúvas e descobriu um filme aí. Filmado quase todo no Curdistão, e parcialmente no Iraque, “A Noiva” foi um dos filmes da Seleção Oficial no último Festival de Veneza e venceu o New Waves Special Award no Festival de Sevilha.

Sérgio Tréfaut nasceu em São Paulo em 1965 e vive atualmente entre o Brasil e Portugal (para onde veio em finais dos anos 1970, com a família, ele que é filho de pai português e mãe francesa). Desde finais dos anos 1990 que está envolvido no cinema, como realizador, produtor e programador, desempenhando um papel importante no desenvolvimento do Festival Doclisboa na primeira década deste século (dirigiu-o entre 2004 e 2010). Foi também diretor da Apordoc durante vários anos. Nas suas mãos tem também a Faux, produtora que criou em 2003. No meio destas coisas todas, é realizador de documentários e filmes de ficção. Já assinou onze, entre os quais “Lisboetas” (2004), Melhor Filme Português no IndieLisboa 2004, “A Cidade dos Mortos” (2009), vencedor do Grande Prémio do Documenta Madrid 2010, “Viagem a Portugal” (2011), “Treblinka” (2016), Melhor Filme Português no IndieLisboa 2016, e o belíssimo documento pré-pandemia, “Paraíso” (2021). Falámos com o realizador há dias, via Zoom, a propósito deste “A Noiva”.

[o trailer de “A Noiva”:]

Ao longo da carreira tem filmado entre documentário e ficção, mas também capturado realidades diferentes, em países diferentes. De onde vem essa vontade?
Trabalhei na “A Cidade dos Mortos” (2009) no Egito entre 2004 e 2009. Aí foi o primeiro passo de ir para fora. Em termos de percurso, de fazer trabalhos dentro vs. fora, por assim dizer, fiz primeiro filmes que tinham a ver com o meu universo. O “Outro País” (1999) é sobre a revolução portuguesa; o “Fleurette” (2002) é sobre a minha família, mesmo que se desenvolva em quatro países (Alemanha, França, Portugal e Brasil). Depois há o “Lisboetas” (2004), que é centrado em Lisboa, mas tem 14 línguas, que é um pouco essa dimensão dos meus trabalhos: filmes que não são necessariamente muito limitados na geografia humana. Depois do “Lisboetas”, queria ter um grande desafio e havia pessoas que me propunham muitas coisas. Desde a adolescência que sou apaixonado pelo Jori Ivens, cineastas, documentaristas que davam a volta ao mundo e isso me motivava. Mas digamos, faz parte do meu perfil, todos os meus filmes são bastante explosivos a nível de línguas, a nível de culturas. Não me centrei a vida toda a fazer o mesmo filme, a mesma realidade. Cada um tem o seu perfil. Após “A Cidade dos Mortos” era natural que tivesse outros interesses. Quando “passeei” com o filme, por assim dizer, em vários festivais, fui duas vezes ao Iraque em 2012. Fascinei-me pelo país, paixão mesmo. Já tinha estudado árabe – não falo bem, mas este ano, 2023, é o ano em que falarei bem árabe.

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Começou logo a ter ideias para um filme?
Os meus projetos no Iraque tinham a ver com a realidade daquele momento [2012], os americanos tinham acabado de deixar o país e eu ia fazer um filme que tinha a ver com a falsa promessa de estabilidade e de paz que tinha sido dada pelos valores americanos. Com uma imprensa livre e eleições livres, o país entrava numa fase de prosperidade. Foi tudo o contrário, desde então o país está num desastre bastante grande. Naquele momento em particular, existia uma guerra civil. A famigerada imprensa livre não era nada livre, eram dezenas e dezenas de jornais e televisões financiadas por todos os países possíveis, por iranianos, sauditas, turcos, americanos. As notícias, a tal liberdade de imprensa, nada disso existia. Morriam 100 pessoas num atentado num dia, no dia seguinte isso era noticiado e três dias depois ninguém mais falava do assunto. Isso me impressionou. Quis tratar do assunto, passei por vários lugares, por Mossoul e, um ano e meio depois, Mossoul já era capital do Estado Islâmico e o filme mudou.

"Não sou apaixonado pelo John Ford. Não é a minha vida. Respeito muito, amo o “E.T.”, e gosto muito, mas os filmes de aventuras não são a minha história. Os filmes que me interessam são mais de reflexão, emoção, poesia."

Em que sentido?
Estava em Lisboa, morando em Portugal, e me surpreendia com aquelas manchetes, daqueles jovens, não de origem muçulmana, não filhos de uma segunda geração norte-africana ou de outros países, mas portugueses, africanos, que de repente se alistavam no Estado Islâmico. Daí partiu o meu interesse para fazer este filme.

Começou a trabalhar em dois filmes antes de “A Noiva”, um sobre como os americanos deixaram o Iraque e outro sobre os jovens que se alistaram no Daesh. Esses filmes foram abandonados ou são parte de um processo?
É sempre tudo parte de um processo. Quando fizeram a retrospetiva no LEFFEST, houve uma conversa grande, em que eu me confesso, revelo, no meu desastre, na minha maneira de trabalhar, que é sempre mudar, mudar, mudar, os filmes vão sendo um processo longo. Tem razão no que diz, mas há um terceiro filme no meio disso, eu ter sido confrontado com toda essa realidade, enquanto estava terminando de montar o “Treblinka” (2016), que é um filme sobre o extermínio humano, como para os seres humanos fazerem fábricas de mortos é uma coisa normal. Era exatamente o que estava acontecendo no Iraque, na Síria, naquele momento. Éramos confrontados no presente com aquilo que supostamente nunca mais iria acontecer, como se disse em 1945. O segundo filme que deixei de lado era sobre os jovens jihadistas, os heróis. Escrevi um tratado que chegou a ter 70 páginas, em que contava a história de um anti-herói, pseudoherói, uma personagem principal perdido no mundo, ia jogar futebol em Inglaterra, ia ser um campeão, identificava-se com o Cristiano Ronaldo, gostava de música, trabalhava com o hip hop e era seduzido, como aconteceu a muitos deles, por extremistas islâmicos de origem paquistanesa, na região de Londres. Aqueles que queriam criar em Londres bairros em que a Sharia era lei.

Este filme é um trabalho de ficção, mas procurei que tivesse um retrato contemporâneo. Não é realismo, mas é uma tentativa de falar do mundo em que estamos hoje

Teve proximidade com eles?
Vi de perto as entrevistas a esses jovens, ao Fábio Poças, à Ângela Barreto. As pessoas com quem estive perto na pesquisa eram jornalistas do Expresso e da Sábado, que durante algum tempo trocavam muitas mensagens no Facebook. Tive acesso a dezenas de páginas de diálogos entre os jornalistas portugueses e os jovens. Meninos, garotos, de 19, 20 anos, que tinham partido para a Jihad e até tentavam converter os jornalistas, de alguma maneira, ao Islão. Isso entusiasmou-me durante algum tempo, porque era tentar entender essa garotada. Mas quando o tratamento estava bastante adiantado, achei que não era a minha cara, não sou apaixonado pelo John Ford. Não é a minha vida. Respeito muito, amo o “E.T.”, e gosto muito, mas os filmes de aventuras não são a minha história. Esse anti-herói não era o que me interessava, os filmes que me interessam são mais de reflexão, emoção, poesia.

Porque abandonou essa ideia? Em que momento é que isso aconteceu?
Foi quando caiu Mossoul e surgiram todas as informações sobre as viúvas. Aí encontrei uma coisa que era mais a minha cara, o meu universo: o que está na cabeça de uma menina de 20 anos, que passou por esse processo, que fugiu de casa, e que de repente se vê confrontada e tem duas crianças, ou três? Fiz mais pesquisa para isso, havia uma jovem francesa, a Margaux Dubreuil que tinha uma entrevista de uma hora na televisão francesa. É uma viúva do Micael, que era um português, um dos que decapitava e punha o pé em cima da cabeça dos assassinados. Ela era viúva, tinha o ar sorridente, encantadora… um ar de Nastassja Kinski, de grande beleza, e havia duas crianças na entrevista, com um entrevistador que não a ouvia, que a bombardeava e não a ouvia. Essa personagem da menina que passou por tudo isso interessou-me.

"A Joana [Bernardo, atriz protagonista do filme] fez do texto algo seu. Era como se aquela pessoa estivesse a dizer aquilo, sem tiques de novela, sem ser representado. Ela tem aquela característica de neutralidade, conseguimos ter ao longo do filme todo o mistério nela."

Voltando um pouco atrás, chegou a entrevistar algum desses jovens que era recrutado?
Não, tive apenas acesso a quilómetros de páginas de entrevistas, dos jornalistas do Expresso e da Sábado a jovens portugueses. Mas houve várias entrevistas que foram feitas. Ainda agora, no Festival de Veneza, vi um documentário italiano chamado “The Matchmaker” [de Benedetta Argenteri], em que uma jovem anglo-francesa, de origem paquistanesa, ou seja, muçulmana, é entrevistada. A conversa dura mais de uma hora, num campo sírio. Ela está presa num campo e o que senti é que ela está a falar para salvar a pele. No meu filme, quando a protagonista tem a conversa com o general e o coronel que a capturou, dizendo que o Daesh é um bando de assassinos, criminosos, aquilo acontece, mas eu não sei o que ela pensa. Recuso ter opiniões taxativas sobre isso: porque há pessoas que se arrependem, há fanáticos e há quem tenha dúvidas.

E falou com alguma noiva/viúva?
No Iraque não tive acesso porque as prisões eram inatingíveis. Mas alguns diálogos no filme, por exemplo, a cena no tribunal, ou o já mencionado diálogo com o general e o coronel, são transcrições de conversas relatadas em entrevistas que encontrei na internet. Este filme é um trabalho de ficção, mas procurei que tivesse um retrato contemporâneo. Não é realismo, mas é uma tentativa de falar do mundo em que estamos hoje.

"Há um lado realista no filme, que é conseguido através da passagem de conhecimento das pessoas com quem falei e não pela minha escrita: ou seja, não inventei como as pessoas se sentam e comem"

Pedro Rocha / Global Imagens

Quando decidiu fazer uma obra de ficção e não um documentário sobre este tema?
Até pensei em fazê-lo, mas as prisões foram vedadas. Ou seja, fui convidado a fazer a ficção. E também há a situação de perigo. Não sou repórter de guerra, gosto de pensar nos filmes de outra maneira. Não tenho a necessidade de estar à frente do perigo. Já me aconteceu no passado, mas foi ocasional. Queria fazer o retrato do que está na cabeça desta menina, sem oferecer grandes respostas. Isso corresponde mais ao meu universo do que fazer uma reportagem. Mas o filme tem características de documentário, uma vez que mostra alguns lugares, realidades. O tribunal é um tribunal, a prisão é uma prisão, o campo de prisioneiros é um campo de refugiados, que é igual a um campo de prisioneiros. Convidei refugiadas sírias e curdas para ensinar como elas se vestem, sentam, como comem, como tratam dos bebés. Há um lado realista no filme, que é conseguido através da passagem de conhecimento de outras pessoas e não pela minha escrita: ou seja, não inventei como as pessoas se sentam e comem.

A Joana Bernardo é muito convincente no papel. Ela tinha 20 anos, mas parece muito mais nova, o que lhe dá uma inocência que nunca se questiona. Como a descobriu?
De facto, ela parece muito mais nova. Aquela sensação de menina, de como ela foi parar ali, resultava muito bem. Outro fator é que ela tem uma capacidade de aprendizagem muito grande, é muito determinada. Desde o primeiro teste, quando apareceu com três páginas aprendidas – o diálogo com o pai, que era maior do que o que está no filme… Não estava só aprendido, estava interiorizado. A Joana fez do texto algo seu. Era como se aquela pessoa estivesse a dizer aquilo, sem tiques de novela, sem ser representado. Ela tem aquela característica de neutralidade, conseguimos ter ao longo do filme todo o mistério nela. O espectador nunca fica distraído por uma menina que é mais bela do que outra coisa. Se ela fosse uma modelo de revista, o espectador pensaria: que menina tão bonita. A Joana é bonita, interessante, misteriosa, mas há sempre aquela dimensão de tentarmos perceber quem é ela e era isso que queria que o filme fosse.

 
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