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GREGÓRIO CUNHA/LUSA

GREGÓRIO CUNHA/LUSA

Entre sorrisos e lágrimas, os funchalenses resistem

Viram o fogo aparecer-lhes à porta quando menos esperavam. Tiveram de fugir quase só com a roupa que traziam vestida. Num quartel do Exército encontraram refúgio. Por quanto tempo? Logo se vê.

Os olhos não mentem. Vermelhos do cansaço e do choro, sem brilho, incrédulos. O fogo chegou sem aviso, como um convidado indesejado que não pediu licença para entrar e que deixou tudo em pé de guerra. Como é que isto aconteceu? A pergunta martela nas cabeças da família Rodrigues desde a madrugada de terça-feira. Num minuto, as chamas andavam lá longe, nada que preocupasse grandemente. No outro, desapareceu-lhes a vida tal como a conheciam.

Os olhos de Maria José Rodrigues não mentem. “Fui-me deitar às 4h10 e antes das cinco já estava levantada”, conta, de mãos abraçadas à volta da barriga, como ainda a querer proteger-se de uma ameaça que já não existe. Não aqui, no Regimento de Guarnição nº 3 (RG3) do Funchal, a casa improvisada de há dois dias, quando o fogo veio. Foram estas instalações do Exército na ilha da Madeira que receberam grande parte das pessoas a quem o incêndio bateu à porta. Deitada numa esteira militar, das várias dezenas que se alinham num pavilhão do quartel, Maria José faz o relato daquelas horas que tão lentas lhe pareceram. “Estive no quintal a noite inteira e só vi fumo, não vi lume.” Ela, o marido e três filhos vivem na ladeira do Imaculado Coração de Maria, uma das que compõem o anfiteatro do Funchal. O incêndio já lavrava lá para trás, para as zonas do Monte e de São Roque, mas Maria José não acreditava que estivesse em risco.

"Mas o que é que eu vou fazer? Já chorei tanto"

“Nunca pensei que chegasse lá. Só tive tempo de agarrar nos documentos e no meu filhote”, acrescenta, já com a voz a querer falhar. Não consegue mesmo encontrar palavras para descrever o cenário que viu quando acordou do breve sono. Faz uns gestos com as mãos, para cima e para baixo. Olha para cima como se contemplasse o tamanho das labaredas. “Parece que levantou. O vento era muito forte. Não havia hipótese.” O marido, Manuel, não estava em casa àquela hora. Trabalha por turnos na empresa Eletricidade da Madeira e, quando saiu à meia-noite, nada de anormal se passava. “Tranquilamente, fui trabalhar. Qual não é o meu espanto quando recebo uma comunicação da minha filha a dizer que a casa estava em chamas”, diz este homem grande com um tom calmíssimo, impassível ao reboliço que se desenrola na esteira mesmo em frente.

É o Presidente da República. Depois de o fogo ter destruído pelo menos 150 casas na Madeira — muitas delas aqui mesmo, no Funchal –, Marcelo Rebelo de Sousa decidiu vir à região autónoma “dar o abraço de Portugal”. No estilo que lhe é conhecido, sentou-se a conversar com um homem, uma das vítimas que não tiveram outro remédio senão vir para o Regimento de Guarnição, que cedo abriu as portas à população necessitada.

INCENDIO FLORESTAL, PRESIDENTE DA REPUBLICA, Madeira, MARCELO REBELO DE SOUSA,

Marcelo Rebelo de Sousa encetou conversa com um desalojado no RG3 (Fotografia: Homem de Gouveia/Lusa)

“Tudo, tudo, tudo”

Ana Paula Andrade está no quartel na dupla condição de vítima e cuidadora. Ela trabalha na cozinha do Hospital dos Marmeleiros, no Monte, que teve de ser evacuado há dias quando as chamas se começaram a aproximar. Os doentes foram levados para vários pontos da cidade, incluindo o RG3. Na terça-feira à tarde, também ela se viu obrigada a procurar refúgio por aqui. O fogo destruiu-lhe uma “casa nova, acabada de construir”. O relato é parecido com o de Maria José Rodrigues. “Tínhamos a polícia lá, os bombeiros lá.” Estavam a controlar, “a ver se o lume descia” do alto das montanhas. “Um polícia pediu-me uma enxada. Não demorei um minuto a ir buscá-la. Quando voltei não havia nada a fazer.”

O Funchal é uma cidade que se espraia encosta acima, com muitas deformações na geografia e manchas verdes frequentes. O intenso calor e o vento forte ajudaram à situação dramática em que a cidade se viu envolvida. Na quinta-feira da semana passada, Manuel Rodrigues lembra-se de vir do trabalho, pela uma da manhã, e de estar um tempo fresco em Câmara de Lobos, logo ao lado do Funchal. Quando entrou na cidade, a temperatura já era vários graus superior. “O calor era tanto que eu senti que aquilo parecia algo sinistro”, diz. “É uma coisa inacreditável”, acrescenta Maria José, ainda naquela posição defensiva com que começou a falar há bocado.

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Foi neste pavilhão que dezenas de pessoas passaram as noites de terça e quarta-feira, em esteiras montadas para o efeito (Foto: D.R.)

O RG3 tem umas instalações relativamente grandes. Ainda assim, neste momento, não são suficientes para acolher toda a gente. Na terça-feira à noite vieram quase mil pessoas. “Isto estava cheiíssimo”, afirma Maria José, que agora já tem muito menos vizinhos por perto. Foi preciso esvaziar um armazém e uma caserna, e montar seis tendas de campanha no pátio principal para albergar os desalojados e os bombeiros que vieram do Continente para ajudar no combate às chamas.

Há aqui famílias inteiras, idosos sozinhos, muitas crianças. Ana Paula Antunes partilha prédio com os pais e o padrinho. Dos três andares, só um é que não se transformou completamente em cinzas. “Perdemos tudo, tudo, tudo.” Uma situação “desoladora” que lhes deixa “uma incógnita” para o futuro. Até domingo, têm aqui alojamento garantido. Depois disso, logo se vê. “Um dia de cada vez, não vamos fazer planos”, assegura.

Para já, o apoio aqui prestado — tanto pelos militares como pela Cáritas e voluntários — só merece elogios. “Não temos razões de queixa”, apressa-se a dizer Manuel Rodrigues, que diz que todos são de “uma simpatia extrema” e que estão “sempre a ver” do que é que precisam. Enquanto dizem isto, uma psicóloga aproxima-se e informa-os de que a assistente social já está a par do caso e o colocou como “prioritário”. O casal olha cheio de intenção: “Está ver como são gente simpática?”

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Uma das tendas de campanha montadas logo à entrada do RG3 (Fotografia: D.R.)

O sorriso dos funchalenses

No quartel, Ana Paula tem estado responsável pela organização e distribuição da comida. Os carros com bens alimentares não param de chegar à porta do RG3. São os funchalenses que vêm trazer mais uns pacotes de leite, mais uns rolos de papel higiénico, mais umas águas. O movimento é constante e os bens já são tantos que estão a ser distribuídos para outros locais que também precisam de ajuda. Para dar escoamento a tudo isso, Ana Paula Antunes tem dormido “pouco ou nada” nos últimos dias, apesar de isso não a desmotivar. “A população tem sido incansável. Graças a Deus não nos falta nada.” E isso é bem visível: no espaço de quinze minutos, foram mais de dez os automóveis que pararam para descarregar materiais.

“De manhã tivemos de ir à porta [do quartel]…os carros não paravam!”, entusiasmam-se Maria José e Manuel Rodrigues numa frase conjunta. O casal ainda arranja forças para mostrar um sorriso rasgado, de orelha a orelha. “O ser humano afinal é bom”, constata Manuel. “Mas o que é que eu vou fazer? Já chorei tanto. Agora é começar de novo”, atira Maria José com uma despreocupação quase desarmante. Agora que se lhes conhecem os sorrisos, estes funchalenses de trato fácil e rosto cansado não mais os abandonam.

Não querem ser refugiados para o resto da vida, não vão deixar que o fogo os amedronte. Querem voltar para a casa que foi dos avós e dos pais de Manuel, onde vivem desde que se casaram e onde nasceram os filhos Verónica (personagem bíblica por quem Maria José tem devoção), Marcos (evangelista preferido de Manuel) e Diliana (era para ser Daliana, como nos versos de Camões, mas o Registo não deixou). “É o meu ninho, é o meu berço”, afirma Manuel Rodrigues. “A ver se renasce alguma coisa das cinzas.”

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