Em fim de semana de Páscoa, o Observador olha para cinco grandes questões à volta da época pascal, ajudando a desmontar algumas ideias antigas, que ainda hoje têm eco nas redes sociais. E até o famoso coelho  — muitas vezes usado por esta celebração com o objetivo de criar uma relação com os mais novos —  acabou verificado: será que, nos textos sagrados, este animal assume uma relevância significativa? E quanto à abstinência nesta época, não devemos mesmo comer carne por imposição da Igreja Católica? E Jesus Cristo foi morto pelo povo judeu? Ou terá sido crucificado às mãos das autoridades romanas?

As respostas, mais uma vez, são muito mais complexas do que as simples perguntas. Recorremos à letra daquilo que foi escrito nos Evangelhos, documentos históricos que permitiram diferentes interpretações ao longo dos séculos da história desta religião, e estudado por diferentes especialistas.

Relativamente à Páscoa, há várias hipóteses para contextualizar e explicar os ritos desta época, que até pode ser celebrada em datas diferentes, seguindo calendários distintos. Mas há algo que une milhões de fiéis: a importância da celebração da morte e da ressurreição de Cristo, após três dias — desta sexta-feira santa ao Domingo de Páscoa.

Sem este episódio, nada seria igual.

Fact Check. Foram os judeus que mataram Jesus?

Ora, um dos motivos mais importantes para assinalar a Páscoa é precisamente a morte e ressurreição de Jesus Cristo, que foi executado na cruz na chamada “sexta-feira santa”. É nesta altura que se celebra a vida de Cristo, o que acabou por se transformar no mistério central do cristianismo. Ou seja, “sem a Páscoa, não existia cristianismo”, tal como dito pelo padre Anselmo Borges ao Observador, noutro especial sobre fact-checks, lançado em dezembro 2020.

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Fica a pergunta: quem mandou matar Jesus? Terá sido o povo judeu ou o império romano, que o considerava uma ameaça ao poder instalado? Vamos por partes. Em primeiro lugar, é importante olhar para a pergunta, já que, feita assim, remete para uma culpabilização de toda a comunidade judaica ao longo da história, o que não corresponde, de todo, à verdade. Sim, a crucificação de Cristo foi em Israel, um território judaico; e, sim, apesar de o governo da época pertencer aos romanos — ou seja, ser uma entidade dita estrangeira a governar –, o plano da morte de Jesus surge num contexto em que a sua presença se estava a tornar uma suposta ameaça à própria religião dominante, segundo os evangelhos e outros documentos históricos, citados pelos especialistas escutados pelo Observador.

Isto porque no judaismo apenas um Deus era aceite e Jesus era apresentado como sendo um. Mas culpar um povo inteiro durante séculos por um episódio isolado que marca esta celebração pode induzir as pessoas em erro. Ou seja, esta pergunta é enganadora, porque precisa de um contexto específico para ser devidamente respondida. “Isso seria atribuir a todo o povo judeu o fardo de serem aqueles que mataram Cristo. Se assim fosse, Cristo, que era judeu, seria o próprio rei, assim como Maria e os seus apóstolos”, garante o padre Miguel Pedro Melo.

Depois, quem, de facto, executou a sua morte foram as autoridades romanas. “De acordo com os evangelhos, Jesus Cristo foi sentenciado à morte por Pôncio Pilatos [governador romano responsável pela ordem de execução], representante do poder ocupante de Roma, a pedido dos alto-responsáveis do povo judeu, que não teriam autoridade legal para decretar a execução”. É assim que o padre José Maria Brito, da Companhia e Diretor do Portal de Jesuítas (Ponto SJ), começa por enquadrar historicamente o evento.

Portanto, esta foi uma execução tanto política como religiosa, mas exigida e delineada por quem governava. Não estávamos perante um território onde o Estado estava separado da Igreja (laicismo), havia um entendimento entre ambos. Mesmo assim, foi o império romano que acabou por ter a responsabilidade prática de executar o chamado Salvador.

Ou seja, não se pode afirmar, de forma correta, que “foram os judeus” que sentenciaram Jesus Cristo à morte, mas sim o poder político combinado com o poder religioso. Até porque a insistência na morte desta figura por parte dos chefes do povo judeu levou à criação da ideia do povo deicida [o que mata Deus], que esteve “presente no imaginário cristão durante séculos”. “Depois do Concílio Vaticano II, essa imagem e referência foi banida do discurso e da liturgia católicos, recuperando a ideia do povo judeu como o ‘povo da aliança’ e ‘irmãos mais velhos de fé’ “, afirma o padre José Maria Brito. O que até levou até à reformulação de algumas orações próprias da sexta-feira santa, data em que se celebra morte de Jesus Cristo.

É nesse sentido que é importante distinguir o povo judeu do poder político que o governava na altura em que ocorreu a crucificação. Sobretudo porque, olhando para um contexto histórico mais recente, esse conflito entre cristãos e judeus foi usado, anos mais tarde e em diferentes ocasiões, para diabolizar o povo judeu. Um dos momentos mais significativos dessa manipulação histórica que visava prejudicar o judaísmo foi feita pelos nazis, como justificação para perseguir o povo judeu durante a Segunda Guerra Mundial. “Quem matou Jesus Cristo não foi um povo em especial, mas sim um poder que foi afrontado no seu modo de estar, que foi posto em causa pela ação de Jesus. Quem matou foi o poder religioso e civil instituído”, afirma D. Jorge Pina Cabral, bispo da Igreja Lusitana, ao Observador.

É nesse sentido que o padre Miguel Pedro Melo argumenta que, olhando para o lado da materialidade histórica — e para o que está escrito nos evangelhos –, “foram os judeus que fizeram a acusação que levou à morte de Jesus”. Mas isso também acontece porque a execução ocorreu em Israel, território maioritariamente judaico. Se tivesse acontecido noutro país, imagine-se Portugal, seria acertado culpar todos os cristãos portugueses pela morte de Cristo? Não. Não é correto, portanto, falar no povo como autor, tal como sugere a pergunta inicial.

Para um melhor entendimento, convém recorrer ao evangelho de São Paulo, que tem outra mensagem: por um lado, todos nós levamos Jesus à morte; por outro, essa responsabilização moral por parte dos judeus levou a que, anos mais tarde, fossem vistos como “pecadores por natureza”. “Quem matou Cristo foi o pecado. Primeiro, o das autoridades e dos seguidores de Jesus que o abandonaram. Mas não é um pecado como conceito de fazer mal, é o de achar que a salvação só se podia realizar através daquilo que se pensava ser a interpretação correta da escritura: o Messias tinha de ser glorioso, e só se atinge a glória não se sendo humilhado. Se Jesus estava na cruz, era porque não era filho de Deus”, afirma.

Mas, segundo São Paulo, “todos nós levamos Jesus à morte”, argumenta o padre jesuíta. Lendo os evangelhos de São João e de São Paulo, percebe-se então que o pecado cometido perante Cristo é, na verdade, culpa de todos. “Cristo vai à morte pelo pecado universal, não foi só pelos judeus”, termina. Há, portanto, uma culpa — e uma redenção — espalhada por todos os fiéis ao longo dos séculos, que é sempre assinalada e relembrada na altura da Páscoa.

Consultando os evangelhos, há várias passagens que confirmam que, de facto, foram os líderes religiosos a ter a pretensão de executar Jesus Cristo, mas que essa execução foi levada a cabo pelas autoridades romanas. No evangelho Segundo São Mateus (26, 3:4), Jesus Cristo anunciou aos seus discípulos que o “Filho do homem será entregue para ser crucificado”. Logo a seguir, surge esta passagem: “Depois, os príncipes dos sacerdotes, e os escribas e os anciãos do povo, reuniram-se na sala do sumo sacerdote, o qual se chamava Caifás. E consultaram-se mutuamente, para prenderem Jesus com dolo e o matarem.”

Noutro evangelho, de São João (11, 47:48), encontramos a justificação que se prende à explicação tanto de D. Jorge Pina Cabral como do padre José Maria Brito: Jesus Cristo representava uma ameaça aos poderes instalados. “Os principais dos sacerdotes e os fariseus formaram conselho e diziam: Que faremos? Porquanto este homem faz muitos sinais // Se o deixarmos assim, todos crerão nele, e virão os romanos, e tirar-nos-ão o nosso lugar e a nação”, lê-se.

A verdade é que, segundo a Bíblia, parte do povo judaico da altura também não era inocente na vontade de ver Jesus morto, ainda que nada tenha a ver com o plano engendrado. Mas aqui o povo está representado especialmente pelas suas figuras mais relevantes. Segundo São Lucas (23:21), o povo chegou mesmo a gritar pela crucificação, durante o julgamento de Jesus Cristo: “Falou, pois, outra vez, Pilatos, querendo soltar Jesus. Mas eles clamavam em contrário dizendo: crucifica-o, crucifica-o!” Isto porque, na altura da Páscoa, era habitual perdoar-se um criminoso. O tribunal liderado por Pôncio Pilatos acabou aliás por perdoar Barrabás, depois dos presentes — povo, sacerdotes, escribas, etc — terem concordado na pretensão em crucificar Cristo.

É ainda importante dar nota do seguinte: o corte entre o judaísmo e o cristianismo não ocorreu logo após a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. “Nos evangelhos, vemos várias vezes, já depois destes episódios, que São Pedro vai visitar a sinagoga. Houve, de facto, uma manipulação do poder político pelo poder religioso, uma aliança momentânea, para que não existisse um foco de tensão. A acusação de Cristo era a de poder ser uma insurreição política que pudesse desafiar o poder romano”, finaliza o padre José Maria Brito.

Holy Week Processions Are Held In Zamora

Representação da crucificação de Jesus Cristo.

Conclusão

É enganador — e até perigoso, tendo em conta diferentes episódios da história — considerar, de forma simplista, que foram “os judeus que mataram Jesus Cristo”. Quando ocorreu a crucificação de Cristo na altura da Páscoa, o império romano liderava Israel, território onde ocorreu o evento que marca a época pascal. Ou seja, ainda que diferentes líderes judaicos tenham planeado a morte desta figura, que supostamente ameaçava os poderes instalados, bem como a própria definição da religião judaica (existência de apenas um Deus, por exemplo), foram as autoridades romanas a crucificá-lo.

No tribunal de Pôncio Pilatos, o responsável por ordenar essa mesma execução, chegou a existir a hipótese de perdoar Cristo, o que não aconteceu, tendo sido preterido para Barrabás, um criminoso. É certo que o povo presente também assim o pretendia, mas considerar que “foi o povo judeu que matou Cristo” leva a que se crie uma leitura enganadora dos eventos, que “justificou” depois a perseguição dos judeus nos anos seguintes, ou seja, o anti-semitismo. Foi por isso que no Concílio Vaticano II a referência ao “povo deicida” (o que mata um Deus) foi banida do discurso e da liturgia católicos, para que o povo judeu pudesse ser integrado como “irmão mais velho na fé”.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ENGANADOR

Fact Check. Jesus foi mesmo crucificado na sexta-feira santa?

A resposta é sim, se tomarmos como exemplo os evangelhos, mas nem aí os dados batem certo entre si, até porque os mecanismos para medir o tempo eram inexistentes na época. Mas, tal como acentuado pelos especialistas escutados pelo Observador, as histórias contadas nos textos bíblicos não tinham a preocupação pela factualidade tal como a temos hoje em dia. São narrações teológicas de factos e não cronologias de efemérides religiosas. É por isso que foram feitas, ao longo dos séculos, tantas interpretações diferentes dos mesmos documentos. E esse é o motivo pelo qual é seguro afirmar que Cristo foi sacrificado na sexta-feira, ainda que o ano, a semana e a hora exata sejam objeto de discordância.

“Segundo os dados que temos dos evangelhos, os três sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) e São João, os quatro são unânimes em colocar a crucificação na sexta-feira às 15h00”, começa por referir o bispo D. Jorge Pina Cabral ao Observador.

A diferença é que no de São João, o início da festa da Páscoa judaica é celebrada no sábado, e os restantes evangelhos colocam essa festa na sexta-feira. Mas no caso de João, essa festa começa ao final do dia de sexta-feira, quando o sol se põe. Nos restantes, tem início na noite de quinta-feira. A festa dura, ao todo, oito dias. Confuso? É tudo uma questão de cálculos.

Consideremos então o dia seguinte. O sábado era dia de descanso para os judeus [Sabath], onde não ocorriam historicamente crucificações. É por isso que os representantes do povo judeu, presentes na crucificação de Jesus Cristo, terão pedido a Pôncio Pilatos para que abreviasse o evento. “Na sexta-feira em que Cristo foi crucificado, que era imediatamente anterior ao sábado em que os judeus celebravam a Páscoa, foi pedido para que se abreviasse o suplício, já que os condenados à cruz podiam demorar horas ou dias a morrer”, conta o padre José Maria Brito ao Observador.

E tendo em conta que os corpos sepultados não poderiam estar expostos no dia santo, quis-se evitar o prolongar da crucificação. “Para que os corpos de Jesus e dos malfeitores crucificados com ele não ficassem expostos durante o sábado, já que o contacto ou a vista de um cadáver tornava o judeu impuro, impossibilitando a deslocação ao Templo, abreviou-se”, afirma José Maria Brito. Isto porque a religião judaica tem rituais que giram à volta da questão da pureza e da impureza. Se um judeu ficasse impuro, ficava impossibilitado de se purificar e entrar no Templo.

Mas se a escolha do dia é aparentemente consensual, a hora nem tanto. Há um evangelho que poderá referir outro tempo cronológico, o evangelho segundo João, que dava mais importância ao contexto teológico. O final de tarde em que Cristo foi crucificado corresponde à altura em que os cordeiros eram sacrificados no Templo de Jerusalém, tal como explicado pelo padre José Maria Brito. Essa hora é ligeiramente mais tarde do que as 15h00 inicialmente referidas. “Eram usados na ceia tradicional hebraica. Isto é, provavelmente, uma adaptação do evangelista, para sublinhar a simbologia de Jesus como ‘Cordeiro de Deus'”, conta o padre jesuíta.

A dita imolação dos cordeiros é uma das chaves deste evangelho, bastando olhar para o início do texto bíblico: João Batista chama  a Jesus “o Cordeiro de Deus”. Dá-se então um sentido novo ao sacrifício dos cordeiros. Até porque Cristo representava uma renovação relativamente à religião judaica. Portanto, segundo João, Cristo foi morto no dia de preparação da Páscoa como cordeiro pascal.

Também é necessário olhar para o dia do mês. E é aqui que os evangelhos sinóticos “discordam” de João. “Estamos no mês de Nisan, o mês da Primavera, que era considerado como o primeiro mês do ano para os judeus. Os sinóticos dão a entender que Jesus comeu a ceia pascal com os discípulos, na noite do dia 14 de Nisan — que já era dia 15. No dia 15 acabaria crucificado. Já João diz que Cristo foi crucificado no dia da preparação da Páscoa, ou seja, no dia 14 de Nisan, durante o dia. Comeu com os seus discípulos, mas um dia antes: na noite de 13 de Nisan — que já seria dia 14. Não seria, portanto, uma ceia pascal no sentido estrito do termo”, explica o padre Francisco Martins, recorrendo a Raymond E. Brown, influente padre católico norte-americano que morreu nos anos 90, e investigou e publicou investigações sobre o dia, a hora e o mês da crucificação no livro “The Death of the Messiah” (1994), a obra de referência nesta matéria.

Hoje em dia, pensa-se que João terá razão. Mas as continuas investigações podem sempre apresentar outro resultado num futuro próximo. Quanto ao dia escolhido (sexta-feira) não há dúvidas.

A dificuldade na compreensão dos dias explica-se de forma simples: o dia judaico começa no pôr-do-sol do dia anterior e termina no pôr-do-sol do próprio dia. Ou seja, um dia dito normal no ocidente tem, na sua essência, dois dias judaicos. E como a Páscoa é uma festa móvel, não dependia propriamente do dia da semana, mas sim do dia do mês de Nisan. Ainda assim, não é possível saber o ano exato da crucificação.

Mas para o padre Edgar Clara, segundo São João, Cristo foi mesmo crucificado na véspera da Páscoa, que era celebrada pelos judeus ao Sábado. Ou seja, morreu sexta-feira. “Trata-se, segundo Armand Puig, professor de escrituras de Barcelona, de apresentar Jesus como ‘o novo cordeiro pascal’, ao qual, tal como é preceituado, não é partido nenhum osso, e que morre trespassado, dando a vida e dando-se completamente como instaurador de uma aliança nova entre Deus e a Humanidade”, afirma. Portanto, o simbolismo e o dia são os mesmos, só não corresponde à mesma hora.

O versículo citado para comprovar que este é o dia certo é o seguinte (João, 19:31): “Os judeus, pois, para que no sábado não ficassem os corpos na cruz, visto que era a preparação (pois era grande o dia de sábado), rogaram a Pilatos que se lhes quebrassem as pernas e fossem tirados”. Ou seja, tudo foi feito na sexta-feira, de forma mais antecipada do que o habitual.

Como explicado, a verdade é que existem versões diferentes para a semana pascal que passam inclusivamente pela última refeição de Cristo, a chamada “Última Ceia”, que terá ocorrido entre Cristo e os seus  apóstolos.

A conclusão sobre as datas diferentes da última ceia foi igualmente destacada pelo britânico Colin Humphreys, da Universidade de Cambridge, que escreveu o livro “The Mystery of the last Supper” (“O Mistério da Última Ceia”). Segundo Humphreys, esse evento terá ocorrido numa quarta-feira, no primeiro dia de abril do ano 33. E que a detenção, interrogatório e execução de Cristo não podem ter ocorrido todos no mesmo dia.

Mas, no fundo, segundo Colin Humphreys, todos têm razão: é, na verdade, um problema de calendário. Mateus, Marcos e Lucas usaram um calendário mais antigo (adaptado dos egípcios) que o judaico, o calendário lunar.

No entanto, quanto à sexta-feira santa, e mais uma vez, “é relativamente consensual que todos os evangelhos apontem para a sexta-feira”, tal como afirma o padre Miguel Pedro Melo. “Alguns autores levantaram a possibilidade da quarta-feira e da quinta feira, mas não há grande evidência absoluta, ou seja, várias fontes com objetivos independentes a afirmar o mesmo”, diz.

Por outro lado, quanto à falta de consenso relativamente às horas de crucificação, o padre Miguel Pedro Melo é mais pragmático: “São detalhes, tendo em conta que na altura não existiam grandes mecanismos de medição do tempo”, conta.

Mas o debate à volta do dia da crucificação de Cristo chega ao ponto de se discutir a famosa citação “ao terceiro dia, Ele ressuscitou”, que surge nos evangelhos, descrita de forma diferente. Há ainda outra, segundo São Mateus (12:40): “Pois como Jonas esteve três dias e três noites no ventre da baleia, assim estará o Filho do homem três dias e três noites no seio da terra”.

À luz da contagem dos dias da era moderna, de sexta-feira a Domingo, não se cumprem três dias nem três noites. Se Jesus foi sepultado ao final do dia de sexta-feira, distando apenas duas noites e um dia da data em que ressuscitou, como é que poderia ter morrido no dia destacado por diferentes evangelhos? Fica a pergunta, reforçando a tal ideia de que o rigor não foi um dos critérios aplicados naquela época, sendo que, por um lado, faltavam meios para calcular o tempo, e, por outro, a Bíblia apresenta os eventos de forma teológica e não científica.

Com as várias interpretações existentes e com o debate que a vida e a morte de Cristo originou ao longo dos séculos, convém dizer que “a sexta-feira santa” é, sobretudo, uma data simbólica que é comummente utilizada hoje em dia pela fé cristã. Aliás, em Portugal, esta sexta-feira é feriado (religioso) por ser sexta-feira santa, tal como acontece sempre antes do domingo de Páscoa.

Até porque os textos bíblicos são também simbólicos, tal como também explicado nos diferentes artigos de fact-checking do Observador sobre o Natal, levando a que se façam diferentes interpretações de um determinado episódio da vida de Jesus.

O Cardeal-Patriarca de Lisboa, Dom Manuel Clemente, presidiu o ano passado na Sé de Lisboa, à celebração da Paixão do Senhor (sexta-feira Santa). A Sé esteve fechada aos fiéis devido à pandemia do Covid-19 (coronavírus), 10 de Abril de 2020. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Conclusão

É relativamente consensual que Jesus Cristo foi sacrificado na sexta-feira santa, mas há diferentes interpretações para o que está espelhado na Bíblia. Basta olharmos para os evangelhos onde apenas um deles, o de São João, coloca, sim, a sua crucificação no mesmo dia, mas aponta para horas diferentes. Até porque, segundo esse evangelho, a cronologia não era uma preocupação. Nesse dia, os cordeiros eram sacrificados no Templo de Jerusalém, e seriam depois usados na ceia tradicional hebraica. É por isso que, simbolicamente, Jesus passa a ser o Cordeiro de Deus. Portanto, a hora seria um pouco mais tarde do que as 15h00 referidas pelos outros três evangelhos.

Mas tudo poderá estar relacionado com o dia do mês e com a forma como os dias judeus eram calculados: um dia começa ao final do dia anterior — ou, se quiser, ao pôr-do-sol. Portanto, na véspera. Sendo o mês de Nisan, o da Primavera, e que na altura seria, para os judeus, o início do ano, Cristo, segundo João, terá morrido  no dia de preparação da Páscoa como cordeiro Pascal. Ou seja, no dia 14 de Nisan, durante o dia. A sua última refeição com os seus discípulos não foi, portanto, pascal no sentido estrito da celebração. Quanto aos restantes evangelhos, Cristo terá sido crucificado no dia 15 de Nisan, comendo a última ceia na quinta-feira à noite, que já seria dia 15.

Por outro lado, Cristo terá sido crucificado na sexta-feira porque o sábado era dia de descanso para os judeus, um dia santo segundo aquela religião. Foi por isso que foi aberta uma espécie de exceção por parte de Pôncio Pilatos, para abreviar todo o evento: além de o sábado ser um dia de descanso para os judeus, também não era conveniente que o corpo de Cristo ficasse sepultado nesse período, algo que costumava acontecer a quem era crucificado (horas ou até dias). É que os judeus, nesse dia santo, não podiam estar próximos de um cadáver pois tornar-se-iam impuros, segundo a sua fé, impossibilitando a entrada no Templo.

Vários países, como Portugal, celebram a sexta-feira santa e o domingo — que será este ano a 4 de abril — como o apogeu da época pascal.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

PRATICAMENTE CERTO

Todos os cristãos celebram a Páscoa no mesmo dia?

Nem todos. Mas a questão justifica-se com os diferentes calendários utilizados. Essa é, pelo menos, a explicação dada pelo bispo D. Jorge Pina Cabral ao Observador. “A igreja do oriente segue o calendário juliano e a do ocidente segue o calendário gregoriano. Isso faz com que o dia da Páscoa, para os ortodoxos, calhe sempre depois do dia da Páscoa celebrado pelas igrejas do Ocidente”. Ou seja, esta semana, no início do mês de abril, mais propriamente este domingo, “a seguir à primeira lua cheia do equinócio”.

Mas isso não significa que exista um desacordo relativamente à importância desta celebração. “É uma questão de calendário, não é por estarem desunidos na celebração da ressurreição. Infelizmente, ainda não celebram todos no mesmo dia. Mas todos festejam a verdade da fé cristã”, afirma.

No entanto, nos primeiros séculos da Igreja católica, este tema foi alvo de múltiplas discussões. Só no ano 325 d.C, no I Concílio de Niceia, é que chegou a decisão definitiva. E tudo está ligado, mais uma vez, à Lua. “A Páscoa foi fixada para o domingo após a primeira Lua cheia de Primavera, depois de 21 de março. Apesar do critério único, hoje nem todos os cristãos celebram a Páscoa no mesmo dia por causa das diferentes formas de contabilizar o equinócio de Primavera”, explica o padre José Maria Brito ao Observador.

Num artigo do The Washington Post, que também se debruçou sobre o tema, é referido o tal Concílio de Niceia. O consenso chegou, mas não na forma de calcular a data, o que resultou em mais uma divisão. Os católicos e protestantes celebravam a Páscoa no primeiro domingo depois da primeira Lua cheia, após o equinócio primaveril, que decorre entre 22 de março e 25 de abril. Então, a maior parte das igrejas segue o tal calendário gregoriano, criado pelo Papa Gregório XIII. Quanto às igrejas ortodoxas, usam o calendário juliano criado por Júlio César, celebrando a Páscoa entre 4 de abril e 8 de maio.

Já o padre Edgar Clara corrobora a ideia de que, de facto, nem todos os cristãos celebram a época pascal no mesmo dia por causa da contagem das Luas cheias e a forma como essa contagem é feita. Dá até o exemplo da Páscoa Judaica: “O mesmo ocorre nessa celebração que, em teoria, deveria ser no sábado santo, mas que muitas vezes não é assim”, refere ao Observador.

epa08371460 A handout photo made available by the Moscow Patriarchate press service shows Patriarch Kirill of Moscow (L) taking part in the Orthodox Easter holiday service in the Christ the Savior Cathedral in Moscow, Russia, 19 April 2020. Kirill called for believers to watch Easter services on television and not to visit churches, in line with authorities regulations on social distancing during the coronavirus pandemic. EPA/OLEG VAROV / HANDOUT HANDOUT EDITORIAL USE ONLY/NO SALES HANDOUT EDITORIAL USE ONLY/NO SALES

Igreja Ortodoxa a celebrar a época pascal numa altura diferente da que se celebra, por exemplo, em Portugal.

Conclusão

Não é verdade que todos os cristãos celebram a Páscoa no mesmo dia, mas tudo está relacionado com uma questão de calendário. Há quem celebre esta semana, e quem o faça na semana seguinte. A questão prende-se com a contagem das luas cheias e como é essa contagem é feita. Ou seja, a contagem do equinócio da Primavera, que é variável. A discussão da celebração das datas foi feita no início da Igreja Católica, mas no Concílio de Niceia, ficou decidido que a Páscoa seria fixada para o domingo após a primeira lua cheia da Primavera, depois de 21 de março. O critério é único, sim, mas por causa das tais diferentes formas de contabilizar o equinócio, há cristãos a celebrar a época pascal em datas diferentes.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

Não se pode comer carne à sexta-feira durante a quaresma?

“Na Igreja, em memória da morte de Jesus, tradicionalmente todas as sextas-feiras do ano são de abstinência, em que os crentes são convidados a uma maior contenção e frugalidade, nomeadamente abstendo-se de comer carne”, começa por referir o padre José Maria Brito ao Observador. Mas essa regra pode ser adaptada de acordo com as tradições e costumes de cada lugar: a abstinência da carne pode ser substituída por uma ação simbólica de penitência ou de caridade.

Durante a quaresma, essa indicação torna-se mais forte, porque é o tempo de preparação da Páscoa, onde se recomenda um “maior recolhimento e sobriedade”. Apesar de a abstinência não dizer respeito apenas ao consumo de carne — que era antigamente entendido como um luxo — mas de tudo o que possa ser vivido desregradamente (álcool, tabaco ou relações sexuais). “Popularizou-se o não comer carne como, por vezes, o único ‘sinal’ da sobriedade a que os cristãos são convidados, mas há ocasiões em que se perde o seu sentido quando esta é substituída por alimentos igualmente luxuosos ou mais”, refere o diretor do Portal de Jesuítas.

Ora, portanto, não é uma obrigação ou imposição da Igreja Católica, mas sim um convite ou indicação.

Quanto à igreja lusitana e anglicana, não existe “nenhum preceito ou imposição que se faça aos fiéis nesse sentido”, argumenta o bispo Jorge Pina Cabral. “As pessoas comem carne à sexta-feira, eu próprio como, não tenho problema nenhum. Não a impomos, as pessoas devem ser livres de a seguir. Essa abstinência é mais de natureza espiritual, o mais importante é não pecar ao longo da quaresma”, diz.

Segundo D. Jorge Pina Cabral, as pessoas podem não comer carne nesse período precisamente para uma “vivência espiritual interior”. Ou seja, como Cristo foi crucificado a uma sexta-feira, o não comer carne remete “para o respeito por esse sacrifício carnal”, conta.

Em relação às igrejas anglicanas, existe o jejum quaresmal ligado ao meio ambiente. Durante os 40 dias de quaresma, os cristãos são, assim, “convidados a fazer uma ação que ajude a preservar a terra”. E pode ir desde ver um filme sobre o planeta azul, praticar uma dieta à base de legumes ou plantar uma árvore.

O padre José Maria Brito concorda então que, hoje em dia, a questão da abstinência possa estar mais ligada a um ponto de vista mais ecológico. Até porque há mesmo movimentos ecológicos que pedem os tais dias sem comer carne para diminuir a pegada ecológica. Mas, no fundo, a mensagem é que se mantenha um convite a uma “distribuição mais justa dos bens, a um despejamento, reconhecendo a responsabilidade da necessidade do outro”, diz.

É ainda importante referir que estes tais 40 dias de quaresma são uma data simbólica que representa os 40 dias em que Jesus Cristo passou no deserto, bem como os 40 anos que o povo judeu esteve exilado e fez depois a travessia pelo Egito até à Terra Santa, tal como relembrado por D. Jorge Ortiga ao Observador. “Sendo um período de purificação, de alguma austeridade, para se ‘fugir ao normal’, foram-se descobrindo modos. Hoje, damos atenção à leitura de Deus, medita-se sobre ela, vamos ao encontro dos outros, fazemos obras de caridade”, afirma.

No passado era diferente: a penitência estava ligada, sim, à alimentação. “Era o jejum, tal como Jesus Cristo o fez. Nesses quarenta dias também jejuou. Essa tradição foi entrando, onde se pedia um dia sem refeição ou passado com refeições ligeiras. A quarta-feira de cinzas [a seguir à terça-feira de Carnaval] e a quinta-feira santa [antes da sexta-feira santa] são dias de jejum. E todas as sextas-feiras são de abstinência”, termina.

Convém também referir que o sentido inicial do Jejum era uma forma de oração na Bíblia, uma espécie de greve de fome diante Deus. Ou seja, a pessoa queria que Deus escutasse a sua súplica, colocando-se na posição de desgraçado, para chamar a sua atenção.

D. Jorge Ortiga deixa ainda outra nota, em jeito de curiosidade: para os portugueses, abster-se de comer carne pode não significar muito, já que em Portugal o peixe — que pode ser visto como carne e, portanto, também poderia não ser ingerido nesta época — é muito consumido.

Já o Padre Edgar Clara argumenta que, em Portugal, a abstinência de carne remete só para as sextas-feiras da quaresma. “Segundo a tradição, deveria ser em todas as sextas-feiras do ano, mas em Portugal está regulado só para essa altura”, diz.

Mas há um problema: a Igreja Católica fala para diferentes comunidades um pouco por todo o mundo e nem todas cumprem a abstinência da mesma forma. “A Igreja Católica vê-se no difícil serviço de falar para muitas igrejas em todo o mundo. Há comunidades na América latina em que o frango é uma carne austera, logo, os bispos latino-americanos, quando falam da abstinência, não referem o frango”, revela o padre Miguel Pedro Melo.

Só que o não comer carne não é o “grande ponto” à volta da Páscoa, para os diferentes especialistas escutados pelo Observador. A grande mensagem é o de recordar Cristo também através do corpo e não só como uma lembrança. “Mais do que nos sacrificarmos no sentido estoico, de infligir dor, o que seria inglório porque não sabemos o que o outro sofreu, o importante é este exercício de espírito, do coração. Cristo amou-me neste dia, e eu quero recordá-lo de tal maneira que não seja só uma recordação na minha cabeça”, afirma.

Nada o impede de se deslocar ao talho mais próximo para comprar carne na próxima sexta-feira santa.

Conclusão

Mais do que uma imposição católica, a abstinência da carne é um convite da Igreja aos seus fiéis nesta altura pascal. Mas essa abstinência pode, hoje em dia, ganhar diferentes formas: a igreja anglicana, por exemplo, faz um convite aos seus fiéis para uma reflexão ecológica, e que pode passar por múltiplas tarefas, tal como plantar uma planta, praticar uma dieta à base de vegetais ou até ver um filme ligado às questões ambientais. Segundo os especialistas escutados pelo Observador, esta altura é um tempo de recolhimento, de mais sobriedade e de olhar para os outros, que pode ser praticado de diferentes maneiras. O sentido de abstinência é, portanto, bastante mais alargado. No passado, a penitência estava muito mais ligada à alimentação, como o jejum, que chegou a ser uma oração praticada diante Deus.

Todas as sextas-feiras do ano deveriam ser de abstinência de carne, mas, em Portugal, a sexta-feira santa é a única onde é suposto os fiéis não comerem carne. Já a quarta-feira de cinzas e a quinta-feira santa, que precedem esse dia na Páscoa, são dias de jejum. Mas isso não quer dizer que todos os cristãos tenham de a seguir estas indicações à letra hoje em dia, até porque essa prática depende do povo, do país, das tradições e costumes em que a Igreja está inserida. A abstinência da carne pode então ser substituída por uma ação simbólica de penitência ou de caridade.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ENGANADOR

O coelho da Páscoa tem alguma relevância na Bíblia?

Não e nem tem qualquer tipo de relevância bíblica como símbolo. Por outro lado, nem existem certezas sobre a sua real origem. Aliás, tanto quanto foi possível apurar, grande parte das explicações não tem qualquer evidência documental. Todos os especialistas escutados pelo Observador confirmam que, de facto, este animal não tem relevância em qualquer um dos evangelhos.

Trata-se, sim, de um mito urbano que depois foi aproveitado por diferentes culturas na hora de celebrar a Páscoa, mercantilizando a época — e tornando-a mais atrativa também para as gerações mais novas. Pode-se equiparar até ao Natal, onde a origem do Pai Natal também não é 100% conhecida, tendo várias histórias e crenças à sua volta.

Porém, curiosamente, surge numa passagem bíblica, em Levítico (11:5 e 11:6), sobre os animais que se devem ou não comer, num diálogo entre Moisés e Aarão: “E o coelho, porque remói, mas não tem as unhas fendidas; este vos será imundo // E a lebre, porque remói, mas não tem as unhas fendidas, esta vos será imunda”. Esta figura querida dos mais novos vê-se associado a uma imagem negativa, se tomarmos por referência apenas estas duas passagens. Ainda assim, nunca é referido como “coelho da Páscoa”.

Se não é referido na Bíblia com o sentido que hoje em dia lhe damos, como é que se tornou num símbolo da época pascal? A hipótese mais forte é a de que o coelho se tenha tornado mais uma das adaptações das celebrações pagãs — neste caso da Primavera — por parte da Igreja Católica. A verdade é que a origem do coelho pascal não é completamente clara, não tendo, por isso, evidência histórica. Há quem aponte para uma adaptação da mitologia nórdica, mas mesmo essa tese carece de uma base histórica mais acertada. No entanto, depois de consultados vários artigos sobre o tema, é possível dizer que uma das razões para que este animal tenha permanecido ligado à Páscoa é pela evocação simbólica da fertilidade. Como se sabe, o coelho é um animal muito fértil. Ora, fertilidade pode representar uma nova vida — uma ideia que, neste caso, tem relação com o sentido dado às comemorações pascais.

Olhando para a atualidade, esta figura acaba também por ser usada como forma de aproximar as crianças à Páscoa. “Penso que será uma tradição pagã mas que se pratica em algumas igrejas como forma de envolver as crianças nos rituais pascais. Nas nossas, por exemplo, escondemos o coelho de chocolate nos jardins para as crianças o procurarem. Ou seja, os ritos cristãos assumiram ritos pagãs e deram-lhes um sentido. Cristo é a vida nova, o coelho remete para Cristo”, começa por referir o bispo D. Jorge Pina Cabral ao Observador.

Como a origem é incerta, é preciso olhar para os países e as culturas em que o coelho teve algum tipo de influência simbólica. Por exemplo, no antigo Egito, o “coelho simbolizava a vida e o nascimento, era um símbolo de fertilidade”, afirma D. Jorge Pina Cabral. Há também quem aponte para a Alemanha como território onde foi criada a lenda por detrás do coelho para se celebrar a Páscoa. Ou seja, nem o país de origem é possível saber neste caso.

Quanto à Bíblia, de facto, o coelho não surge com nenhuma relevância teológica, tal como evidenciado pelos diferentes especialistas ao Observador. “Há outros animais ligados à paixão de Cristo, como o galo. No episódio da traição de Pedro: durante a noite, quando Jesus estava a ser julgado, Pedro confessou que nem era discípulo nem O conhecia”, disse D. Jorge Ortiga. Essa história está ligada a uma passagem bíblica onde se diz o seguinte: “Em verdade te digo que esta noite, antes de cantar o galo, três vezes me negarás”, refere Jesus a Pedro. E assim foi.

O Coelho da Páscoa tornou-se tão famoso que passou a surgir até no meio de políticos.

Consultando diferentes artigos, encontra-se a tal possível relação entre o coelho e as festividades pagãs. Praticamente todos os textos consultados pelo Observador referem esta ligação, ainda que não esteja devidamente documentada. Olhemos para um da revista Time de 2015, que traça a suposta cronologia deste animal. O festival de Ostara, a deusa germânica da fertilidade, que poderá ter sido também a deusa da primavera, tinha o símbolo do coelho, animal muito fértil. Ora: primavera, fertilidade, a adaptação pagã da Igreja Católica e o coelho, tudo junto, deram origem às tradições da Páscoa tal como as conhecemos.

Mais tarde, há também referências quer aos coelhos quer às lebres, animal semelhante. Em 1835, no livro “Deutsche Mythologie”, Jacob Grimm escreveu, citado por um artigo do The Conversation: “A lebre pascal é incompreensível para mim, mas provavelmente será o animal sagrado da Ostara, que poderá ter sido a Deusa do Sol radiante, da luz primaveril, um espetáculo que traz felicidade, benção, cujo significado pode ser facilmente adaptado ao dia da ressurreição do Deus cristão.” Poderá ter sido a partir deste mito que se fabricou a teoria em torno do coelho da Páscoa.

A verdade é que a Igreja acolheu imagens não bíblicas precisamente porque, segundo o Padre Miguel Pedro Melo, Deus assumiu e encarnou toda a natureza humana e não só as práticas de Israel. “Assumiu a nossa cultura, o nosso dia-a-dia. A evangelização parte disto. No início, os padres eram muito dados a isto: se há um simbolismo pagão que de alguma maneira tenta expressar uma realidade da fé, esse sinal bonito expressa-se plenamente em Jesus”. Ou seja, tudo pode falar de Cristo, segundo o padre jesuíta. Portanto, pode concluir-se que esta foi uma forma transitória da Igreja Católica integrar os costumes e rituais dos diferentes povos que foi doutrinando, dando liberdade religiosa aos fiéis.

A simbologia cristão do coelho é semelhante em relação ao ovo: um símbolo do nascer da vida, que se liga à ressurreição de Jesus Cristo. Aliás, por vezes, o ovo pode mesmo estar ligado ao retorno à vida, já que a ressurreição não é tanto um regresso à vida, mas sim um surgir de uma vida nova e eterna. “O ovo é sinal de uma vida que nasce, alguém que rompe a casca e vem cá para fora. Esse foi outro sinal que foi adotado”, conta D. Jorge Ortiga ao Observador.

É por isso que — tal como explicou o antropólogo francês, Philippe Matthey, do Departamento de Ciências da Antiguidade da Universidade de Genebra, a uma criança de sete anos que questionou a origem das referências ao ovo e ao coelho — o primeiro pode até remontar à Idade Média, onde se tornou um símbolo perfeito da ressurreição. Jesus “saiu do túmulo” como um pintainho sai do ovo, quebrando a sua casca. As respostas, em francês, podem ser encontradas no site da Radio Télévision Suisse.

Consultando o “Dicionário dos Símbolos — Mitos, Sonhos, Costumes, Gestos, Formas, Figuras, Cores, Números”, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, não existe qualquer referência ao coelho, mas sim ao ovo. “O nascimento do mundo a partir de um ovo é uma ideia comum a celtas, gregos, egípcios, fenícios, cananeus, tibetanos, hindus, vietnamitas, chineses, japoneses, povos siberianos e indonésios, bem como a muitos outros”, lê-se logo no parágrafo inicial dedicado a este alimento.

Ora, o ovo, que assume diferentes significados, contém “em germe a multiplicidade dos seres”, podendo ser também “uma representação do poder criador da luz”, mas também o símbolo do renascimento e da repetição. Pode até representar, então, um ciclo biológico.

A sua decoração com diferentes cores e outros efeitos que se estabeleceu como tradição até aos dias de hoje poderá remontar ao século XIII. Durante a quaresma, chegou-se mesmo a indicar que não se podiam comer ovos nesse período, estando reservado o seu consumo para a Páscoa. De acordo com o site History.com, citado pela Time, muitos anos mais tarde, já no século XIX, a alta sociedade russa começou a partilhar ovos ornamentados — e até peças de joalharia, os famosos ovos de Fabergè– na época pascal.

Tal como no especial de fact-checks sobre o Natal, os Estados Unidos da América têm também aqui um papel importante na construção da mitologia à volta do coelho e dos ovos — em concreto, os povos emigrantes, neste caso alemães, depois de cruzarem o oceano Atlântico até chegarem a terras do ‘Tio Sam’. Os imigrantes alemães chegaram no início do século XVIII à Pensilvânia e levaram consigo uma tradição: as crianças faziam ninhos onde uma criatura depositava os seus ovos coloridos. Essa criatura era uma lebre. A tradição expandiu-se pelo país, dando-lhe um toque cada vez mais guloso, onde o chocolate seria também introduzido, tal como outro tipos de doces ou prendas. As vendas começaram a surgir em 1890, quando um homem decidiu fazer um coelho de chocolate de grandes dimensões. Um pouco antes, tanto no século XVI como no seguinte, também surgiram textos com referências ao coelho pascal como uma espécie de fábula antiga.

Conclusão

Tratando-se de um mito, o coelho da Páscoa não é, em primeiro lugar, um símbolo bíblico. Ou seja, não tem qualquer tipo de relevância nos evangelhos. Existe, portanto, a hipótese de ter existido uma adaptação de tradições pagãs por parte da Igreja Católica, mas essa teoria tem pouca ou nenhuma evidência histórica, ainda que seja a mais referida nos artigos consultados.

No entanto, a origem do coelho pascal pode ter diferentes “pais”, num misto de suposições, lendas e rumores mediáticos: julga-se que foi a partir do festival pagão em homenagem à deusa da fertilidade, Ostara, que se começou a estabelecer associações com este animal, já que também é muito fértil. E fertilidade significa vida. Sendo a Páscoa uma época em que se celebra e comemora, entre outras coisas, a ressurreição de Cristo — ou seja, a sua vida eterna –, este animal acabou por fazer parte do imaginário pascal.

Há também quem o ligue aos povos germânicos ou aos imigrantes alemães que partiram para a Pensilvânia no século XVIII. Aí, as crianças construíam ninhos para que uma criatura, a lebre, fosse depositar os ovos coloridos. Mas, como se sabe, nem a lebre nem o coelho depositam ovos. É, por isso, uma tradição como tantas outras, sem qualquer rigor científico.

É também importante referir que tanto os ovos como os coelhos fazem parte de uma adaptação desta época que pode ajudar os mais novos a compreendê-la, através de diferentes fábulas contadas ao longo do tempo, mas que também favorece a mercantilização destes tempos festivos.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, esta afirmação é:

ERRADO