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Feytor Pinto, o amigo generoso, envolvido na "ternura maravilhosa de Deus que nos acolhe"

Optimista, afirmando o lado bom da vida, foi uma personalidade destacada na Igreja Católica em Portugal. Jovens, saúde, visita do Papa, droga e uma grande paróquia de Lisboa foram campos de ação.

Ligou-se ao Movimento por um Mundo Melhor (MMM) para promover a renovação proposta pelo Concílio Vaticano II (1962-65); esteve no início do trabalho da Igreja com os jovens, depois da quebra dos movimentos de jovens de Ação Católica, na segunda metade dos anos 1970; organizou a primeira visita do Papa João Paulo II a Portugal, em 1982; e, a seguir, coordenou a “pastoral do domingo”, que pretendia vincar a importância do dia semanal de descanso. Passou ainda pela luta nacional contra a droga, criou as estruturas católicas para a saúde, foi pároco do Campo Grande (Lisboa), onde inovou na liturgia, na catequese e na ação social. O padre Vítor Feytor Pinto, que morreu nesta quinta-feira em Lisboa com 89 anos, foi dinamizador, organizador, formador, num trajeto que uniu a sua entrega aos cristãos, à sociedade e aos amigos, para lá das diferenças. E que não deixava de afirmar em permanência o lado bom da vida e o otimismo perante a realidade.

Sobre a conciliação entre cristianismo e sociedade, escrevia o também recentemente falecido Presidente Jorge Sampaio, no livro “O Caminho Faz-se Caminhando”, de homenagem a Feytor Pinto pelos 50 anos da sua ordenação, em 2005. Figura “notável na síntese entre a fé cristã e o mundo atual”, dizia Sampaio, o padre Vítor sabia “conciliar, de maneira singular, as orientações doutrinárias da Igreja Católica, sobre as delicadas questões da vida e da ‘ordem terrestre’, com a evolução das ciências da saúde e com o imperativo da democracia avançada”.

“Para ele, a amizade e os amigos estiveram sempre num nível o mais alto possível”, recorda João Chamiço Porfírio, professor em Évora e amigo muito próximo de Feytor Pinto.

Também na dimensão pessoal a personalidade de Feytor Pinto era marcante: “Para ele, a amizade e os amigos estiveram sempre num nível o mais alto possível”, recorda João Chamiço Porfírio, professor em Évora, amigo muito próximo, que com ele trabalhou em diversas ocasiões, com destaque para a ligação no MMM. Tanto nesse movimento como na pastoral juvenil, na pastoral da saúde ou noutros âmbitos, tinha uma “doação e entrega no limite máximo possível, com um coração sempre aberto e uma generosidade sem limites”, diz João Porfírio.

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Mesmo se era capaz de fazer pontes com pessoas muito diferentes, isso não o inibia de afirmar as suas convicções. Em 2005, numa entrevista para o Público, dizia-me que o preservativo se podia justificar na luta contra a sida e que “uma mulher não é criminosa quando tudo foi tentado e ela não encontrou outra saída que não o aborto”. A sua posição sobre o preservativo (o Papa Bento XVI diria o mesmo pouco tempo depois), apesar de muito suave em relação à doutrina que predominava, valeu-lhe que católicos “queixinhas” enviassem cartas anónimas para o Vaticano a acusá-lo de divergir da hierarquia…

Renovação da Igreja, Páscoa com jovens e formação de adultos

Nascido em 6 de Março de 1932, em Coimbra, Vítor Francisco Xavier Feytor Pinto ingressou aos 10 anos no Seminário do Fundão (os pais tinham-se mudado para a Guarda, entretanto). Com 23 anos, foi ordenado padre na diocese da Guarda, em 1955. Nove anos depois, em Roma, e logo a seguir em Portugal, envolve-se no MMM, grupo que dinamizava encontros (muito deles multitudinários, enchendo por exemplo o Pavilhão dos Desportos), para difundir as conclusões e a renovação do Concílio Vaticano II.

“Eu sei que a Igreja tem de estar metida dentro do mundo, portanto eu tenho de servir a Igreja, servindo o mundo”, dizia ele ao jornalista Octávio Carmo, no livro-entrevista “A Vida é Sempre um Valor”, (ed. Paulinas). E acrescentava que o seu grande vade-mécum é Gaudium et Spes, o texto conciliar sobre a relação da Igreja com a sociedade atual. “Dignidade humana, comunidade humana, atividade humana e família, vida socioeconómica, cultura, política, paz. É muito simples: os grandes valores estão sempre cá dentro, não posso sacrificá-los, nunca.”

Depois de seis anos intensos, em 1970 passa a dedicar-se, por nomeação dos bispos, à ação junto dos jovens: primeiro, como assistente nacional da Juventude Escolar Católica (JEC) e da Junta Central da Acção Católica, até 1975. A sua visão, no entanto, não era coincidente com a dos jovens que, nessa altura – o “processo revolucionário em curso” do pós-25 de Abril estava no seu auge –, pretendiam uma Igreja socialmente muito mais interventiva.

Os quatro dias do Papa Wojtyla em Portugal foram para Feytor Pinto, diria ele mais tarde, os quatro dias mais felizes da sua vida.

Entretanto, nomeado ainda em 1973 como responsável do Secretariado Nacional da Educação Cristã da Juventude (SNECJ), foi nessa qualidade que organizou dois acontecimentos fundadores do que viria a ser o trabalho da Igreja Católica com os jovens, em Portugal: a Jornada Nacional da Paz em 1976, a Páscoa Jovem 1977 e a Páscoa Libertação 1978.

Aí, contaria com a colaboração e a criatividade de um colega padre de Angra do Heroísmo, Manuel Costa Freitas. Nos três encontros, a música, um horizonte renovado para a intervenção dos jovens na Igreja, as “diretas” de milhares de miúdos a rezar e a cantar em Fátima, tudo isso integrou as diferentes iniciativas, que lançaram também a perspectiva de uma catequese sistemática para os mais jovens. Nos dois anos seguintes, seriam publicados os primeiros resultados desse trabalho, em forma de catecismos de jovens: Levanta-te e Caminha (1979) e Jesus Cristo, um Messias Diferente (1980).

Em 1980, Feytor Pinto foi pregar a mesma dinâmica da catequese para outra freguesia geracional: em 1981, com o Congresso Eucarístico Internacional que decorreu em Lourdes (França), e em 1982, com a primeira visita do Papa João Paulo II; paralelamente, organizou a “pastoral do domingo”, que pretendia revitalizar a ideia do dia de descanso semanal numa sociedade já a viver os primeiros sintomas da secularização. Os quatro dias do Papa Wojtyla em Portugal foram para Feytor Pinto, diria ele mais tarde, os quatro dias mais felizes da sua vida.

Estas três iniciativas foram acontecimentos que pretenderam promover uma dinâmica de catequese de adultos, com centenas de encontros, catequeses, conferências, debates, publicações, que colocaram milhares de católicos num movimento de formação que não se repetiria até hoje.

“Sereno, hábil e inteligente”

Em todos esses trabalhos, era grande a sua capacidade de trabalhar em equipa e de se rodear de pessoas que conseguia entusiasmar. O mesmo se repetiria nas tarefas que lhe seriam pedidas a seguir, incluindo, entre 1991 e 2002, em três organismos públicos: presidente do Secretariado EntreCulturas, do Ministério da Educação (1991-2001); alto comissário do Projecto Vida (1992-97) e membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (1991-2002).

No Projecto Vida, onde trabalhou primeiro com o governo liderado por Cavaco Silva, depois com o que seria chefiado por António Guterres, João Goulão, presidente do então Serviço de Prevenção e Tratamento da Toxicodependência, recorda a “forma serena, hábil e inteligente” com que Feytor Pinto valorizava o que unia os diferentes intervenientes. Nessa altura, entre as medidas adotadas estiveram a distribuição de seringas ou a descriminalização do consumo de drogas, que o padre Vítor via com bons olhos e que terá ajudado a que não houvesse católicos a opor-se a essas decisões.

Na década de 1990, Feytor Pinto lança as bases da pastoral da saúde, promovendo congressos anuais que eram verdadeiros fora de produção de pensamento, de encontro dos diferentes profissionais católicos e de diálogo com os agentes políticos.

Entretanto, a Conferência Episcopal, o Vaticano e o patriarcado não o largam: em 1992, iniciava-se um longo período de ação — que viria praticamente até final da vida — do padre Vítor no campo da saúde, em múltiplos cargos de estruturas católicas nacionais, internacionais ou do Vaticano (onde foi um dos responsáveis por varias conferências internacionais): foi ele, mais uma vez, o grande organizador da estrutura católica das capelanias hospitalares, alargando a perspetiva destas ao trabalho com todos os profissionais de saúde e não apenas com os doentes.

Ao mesmo tempo, Feytor Pinto lança também as bases da pastoral da saúde, promovendo congressos anuais que eram verdadeiros fora de produção de pensamento, de encontro dos diferentes profissionais católicos e de diálogo com os agentes políticos. Simultaneamente, acompanhava médicos, enfermeiros e outros profissionais, mesmo no âmbito internacional. Passava-se de uma ação “de apoio ao doente para a prevenção da doença, uma [visão] muito mais enriquecida”, em que a aposta era “na prevenção, tratamento, acompanhamento e cuidados paliativos, de tal maneira que possamos dar qualidade” de vida às pessoas, dizia, na entrevista já citada.

Brinquedos das crianças nas missas

Estas suas movimentações nacionais e internacionais eram, por vezes, referidas nas homilias das missas da paróquia do Campo Grande, em Lisboa, da qual passou a ser o primeiro responsável em 4 de Outubro de 1997. Aí, aproveitou o que já havia sido deixado pelo antecessor, o padre Armindo Duarte, alargando o trabalho em equipa na liturgia, na catequese ou nas dinâmicas de apoio aos mais desfavorecidos, como aconteceu com a construção e renovação de casas no bairro das Murtas.

No Campo Grande, a linguagem litúrgica aproximava-se da vida das pessoas, dos problemas e alegrias quotidianas, além de permitir o barulho das crianças. Estas eram bem-vindas e havia celebrações e dinâmicas pensadas para elas e os seus pais, nas quais os risos, os choros, os brinquedos e as correrias eram também integrados. De novo, não faltava aqui o trabalho em equipa dos catequistas, coordenados pelo padre João Resina, outro nome incontornável da Igreja Católica em Portugal das últimas décadas.

A paróquia, na nota com que divulgou a notícia, referiu a ideia da ternura de Deus em que Feytor Pinto tanto gostava de insistir: “Foi para tantos o amigo generoso, o companheiro de caminhada, o padre profundo e feliz e um homem de pensamento que deixa um legado extraordinário."

Feytor Pinto era também alguém que, na Igreja, entendia a importância de uma relação transparente com os meios de comunicação.

No ano passado, Feytor Pinto foi atingido pelo novo coronavírus e passou 40 dias no hospital. Depois de recuperado, confessava-se animado e pronto para ajudar no que fosse preciso, nomeadamente na paróquia à qual tinha estado ligado durante largos anos. Não resistiu aos problemas de saúde que se foram agravando. A paróquia, na nota com que divulgou a notícia, referiu a ideia da ternura de Deus em que Feytor Pinto tanto gostava de insistir: “Foi para tantos o amigo generoso, o companheiro de caminhada, o padre profundo e feliz e um homem de pensamento que deixa um legado extraordinário. As saudades são muitas, mas sabemos que ele olha por nós, envolvido na ‘ternura maravilhosa de Deus que nos acolhe’.”

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